1.
Ia dirigir-me a Otávio novamente, quando alguém se aproximou e falou
ao ex-médium, com voz forte:
2 — Não chore, meu caro. Você
não está desamparado. Além disso, pode contar com o devotamento materno.
Vivo em piores condições, mas não me faltam esperanças. Sem dúvida,
estamos em bancarrota espiritual; no entanto, é razoável aguardarmos,
confiantes, novo empréstimo de oportunidades do Tesouro Divino. Deus
não está pobre.
3 Voltei-me surpreendido e
não reconheci o recém-chegado.
Dona Isaura fez o obséquio das apresentações.
Estávamos diante de Acelino, que partilhara a mesma experiência.
Fitando-o, triste, Otávio sorriu e advertiu:
— Não sou um criminoso para o mundo, mas sou um falido para Deus e para “Nosso Lar”.
4 — Sejamos, porém, lógicos,
— revidou Acelino, parecendo mais encorajado, — você perdeu a partida
porque não jogou, e eu a perdi jogando desastradamente. Tive onze anos
de tormento nas zonas inferiores. Sua situação não reclamou esse drástico.
Mesmo assim, confio na Providência.
5 Nesse instante, interveio
Vicente, acrescentando:
— Cada um de nós tem a experiência que lhe é própria. Nem todos ganham nas provas terrestres.
E voltando-se de modo especial, para mim, aduziu:
— Quantos de nós, os médicos, perdemos lamentavelmente na luta?
6 Depois de concordar, trazendo
à baila o meu próprio caso, objetei:
— Seria, porém, muitíssimo interessante conhecer a experiência de Acelino. Teria sofrido o mesmo acidente de Otávio? Creio de grande aproveitamento penetrar essas lições. No mundo, não compreendia bem o que fossem tarefas espirituais, mas aqui a nossa visão se modifica. Há que cogitar do nosso futuro eterno.
2.
Acelino sorriu e obtemperou:
— Minha história é muito diferente. A queda que experimentei apresenta características diversas e, a meu ver, muito mais graves.
2 E, atendendo-nos a expectativa,
prosseguiu, narrando:
— Também parti de “Nosso Lar”, no século findo, após receber valioso patrimônio
instrutivo dos nossos assessores. Segui enriquecido de bênçãos. Uma
de nossas beneméritas Ministras da Comunicação presidiu, em pessoa,
as medidas atinentes à minha nova tarefa. 3
Não faltaram providências para que me felicitassem a saúde do corpo
e o equilíbrio da mente. Após formular grandes promessas aos nossos
maiores, parti para uma das grandes cidades brasileiras, em serviço
de nossa colônia. O casamento estava em meu roteiro de realizações.
Ruth, minha devotada companheira, incumbir-se-ia de colaborar comigo
para melhor desempenho das tarefas.
4 Cumprida a primeira
parte do programa, aos vinte anos de idade fui chamado à tarefa mediúnica,
recebendo enorme amparo dos benfeitores invisíveis. Recordo ainda a
sincera satisfação dos companheiros do grupo doutrinário. A vidência,
a audição e a psicografia, que o Senhor me concedera, por misericórdia,
constituíam decisivos fatores de êxito em nossas atividades. 5
A alegria de todos era inexcedível. Entretanto, apesar das lições maravilhosas
de amor evangélico, inclinei-me a transformar minhas faculdades em fonte
de renda material. Não me dispus a esperar pelos abundantes recursos
que o Senhor me enviaria mais tarde, após meus testemunhos no trabalho,
e provoquei, eu mesmo, a solução dos problemas lucrativos. 6
Não era meu serviço igual a outros? Não recebiam os sacerdotes católicos-romanos
a remuneração de trabalhos espirituais e religiosos? Se todos pagávamos
por serviços ao corpo, que razões haveria para fugir ao pagamento por
serviços à alma? Amigos, inscientes do caráter sagrado da fé, agravavam-me
as conclusões egoísticas. 7
Admitíamos que, no fundo, o trabalho essencial era dos desencarnados,
mas também havia colaboração minha, pessoal, como intermediário, pelo
que devia ser justa a retribuição.
8 Debalde, movimentaram-se
os amigos espirituais aconselhando-me o melhor caminho. Em vão, companheiros
encarnados chamavam-me a esclarecimento oportuno. Agarrei-me ao interesse
inferior e fixei meu ponto de vista. 9
Ficaria definitivamente por conta dos consulentes. Arbitrei o preço
das consultas, com bonificações especiais aos pobres e desvalidos da
sorte, e meu consultório encheu-se de gente. Interesse enorme foi despertado
entre os que desejavam melhoras físicas e solução de negócios materiais.
10 Grande número
de famílias abastadas tomou-me por consultor habitual, para todos os
problemas da vida. As lições de espiritualidade superior, a confraternização
amiga, o serviço redentor do Evangelho, as preleções dos emissários
divinos ficaram a distância. 11
Não mais a escola da virtude, do amor fraternal, da edificação superior,
e sim a concorrência comercial, as ligações humanas legais ou criminosas,
os caprichos apaixonados, os casos de polícia e todo um cortejo de misérias
da Humanidade, em suas experiências menos dignas. 12
Transformara-se completamente a paisagem espiritual que me rodeava.
À força de me cercar de pessoas criminosas, por questões de ganho sistemático,
as baixas correntes mentais dos inquietos clientes encarceraram-me em
sombria cadeia psíquica. 13
Cheguei ao crime de zombar do Evangelho de Nosso Senhor Jesus, esquecido
de que os negócios delituosos dos homens de consciência viciada contam
igualmente com entidades perniciosas, que se interessam por eles nos
Planos invisíveis. E transformei a mediunidade em fonte de palpites
materiais e baixos avisos.
3.
Nesse momento, os olhos do narrador cobriram-se de súbita vermelhidão,
estampando-se-lhe fundo horror nas pupilas, como se estivesse revivendo
atrozes dilacerações.
2 — Mas a morte chegou,
meus amigos, e arrancou-me a fantasia, — prosseguiu mais grave. — Desde
o instante da grande transição, a ronda escura dos consulentes criminosos,
que me haviam precedido no túmulo, rodeou-me a reclamar palpites e orientações
de natureza inferior. Queriam notícias de cúmplices encarnados, de resultados
comerciais, de soluções atinentes a ligações clandestinas.
3 Gritei, chorei, implorei,
mas estava algemado a eles por sinistros elos mentais, em virtude da
imprevidência na defesa do meu próprio patrimônio espiritual. Durante
onze anos consecutivos, expiei a falta, entre eles, entre o remorso
e a amargura.
4 Acelino calou-se, parecendo
mais comovido, em vista das lágrimas abundantes. Fundamente sensibilizado,
Vicente considerou:
— Que é isso? Não se atormente assim. Você não cometeu assassínios, nem alimentou a intenção deliberada de espalhar o mal. A meu ver, você enganou-se também, como tantos de nós.
5 Acelino, porém, enxugou
o pranto e respondeu:
— Não fui homicida nem ladrão vulgar, não mantive o propósito íntimo de ferir
ninguém, nem desrespeitei alheios lares, mas, indo aos Círculos carnais
para servir às criaturas de Deus, nossos irmãos, auxiliando-os no crescimento
espiritual com Jesus, apenas fiz viciados da crença religiosa e delinquentes
ocultos, mutilados da fé e aleijados do pensamento. 6
Não tenho desculpas, porque estava esclarecido; não tenho perdão, porque
não me faltou assistência divina.
E, depois de longa pausa, concluiu gravemente:
— Podem avaliar a extensão da minha culpa?
André Luiz
Os capítulos do n.º 5 ao 12, dizem respeito às observações e estudos efetuados por André Luiz em uma reunião no Centro de Mensageiros.