6 Ao atravessarem a ilha inteira, até Pafos, encontraram um homem judeu, mago, falso profeta, cujo nome [era] Barjesus, 7 que estava com o procônsul Sérgio Paulo, homem inteligente. Ele, convocando Barnabé e Saulo, buscava ouvir a palavra de Deus. 8 Elimas, o mago - pois assim é traduzido o seu nome - se opunha a eles, buscando desviar o procônsul da fé. 9 Todavia Saulo, que também [se chama] Paulo, cheio do Espírito Santo, fitando-o, 10 disse: Ó filho do diabo, cheio de todo ardil e de toda malícia, inimigo de toda injustiça, não cessarás de desviar os retos caminhos do Senhor? 11 E agora, vede a mão do Senhor sobre ti, ficarás cego, sem ver o sol até o momento [oportuno]. Imediatamente caiu sobre ele nebulosidade e treva; perambulando, buscava quem o guiasse pela mão. 12 Então, vendo o que sucedera, o procônsul creu, estando maravilhado sobre o ensino do Senhor. — (Atos 13:6-12)
41 […] Depois de grandes esforços, chegaram a Nea-Pafos, † onde residia o Procônsul. A sede do Governo provincial era uma formosa cidade cheia de encantos naturais e que se assinalava por sólidas expressões de cultura. O discípulo de Pedro, porém, estava exausto. Nunca tivera labores apostólicos tão intensos. 42 Conhecendo a deficiência do verbo de Saulo nos serviços da igreja de Antioquia, temia confiar ao ex-rabino as responsabilidades diretas do ensinamento. Não obstante sentir-se cansadíssimo, fez a pregação na sinagoga, no sábado imediato à chegada. Nesse dia, entretanto, ele estava divinamente inspirado. A apresentação do Evangelho foi feita com raro brilhantismo. O próprio Saulo comoveu-se profundamente. O êxito foi inexcedível. 43 A segunda assembleia reuniu os elementos mais finos; judeus e romanos aglomeravam-se ansiosos. O ex-levita fez nova apologia do Cristo, bordando conceitos de maravilhosa beleza espiritual. O ex-doutor da Lei, com os trabalhos informativos da missão, atendia prazerosamente a todas as consultas, pedidos, informações. Nenhuma cidade manifestara tamanho interesse, quanto aquela; os romanos, em grande número, iam solicitar esclarecimentos quanto aos objetivos dos mensageiros, recebiam notícias do Cristo, revelando júbilos e esperanças; desfaziam-se em gestos de espontânea bondade. 44 Entusiasmados com o êxito, Saulo e Barnabé organizaram reuniões em casas particulares, especialmente cedidas para esse fim pelos simpatizantes da doutrina de Jesus, onde encetaram formoso movimento de curas. Com alegria infinita, o tecelão de Tarso viu chegar a extensa fileira dos “filhos do Calvário”. Eram mães atormentadas, doentes desiludidos, anciães sem nenhuma esperança, órfãos sofredores, que agora procuravam a missão. A notícia das curas julgadas impossíveis encheu Nea-Pafos de grande assombro. Os missionários impunham as mãos, fazendo preces fervorosas ao Messias Nazareno; de outras vezes, distribuíam água pura, em seu nome. 45 Extremamente cansado e achando que o novo auditório não requeria maior erudição, Barnabé encarregou o companheiro das pregações da Boa Nova; mas, com grande surpresa, verificou que Saulo se modificara radicalmente. Seu verbo parecia inflamado de nova luz; tirava do Evangelho ilações tão profundas que o ex-levita o escutava agora sem dissimular o próprio espanto. Notava, particularmente, o carinho do ex-doutor no apresentar os ensinamentos do Cristo aos mendigos e sofredores. Falava como alguém que houvesse convivido com o Senhor, por largos anos. Referia-se a certos lances das lições do Mestre com um manancial de lágrimas nos olhos. Prodigiosas consolações derramavam-se no espírito das turbas. Dia e noite, havia operários e estudiosos copiando as anotações de Levi.
46 Os acontecimentos abalaram a opinião da cidade em peso. Os resultados eram os mais confortadores. Foi quando enorme surpresa chegou ao espírito dos missionários.
A manhã ia alta. Saulo atendia a numerosos necessitados quando um legionário romano se fez anunciar.
Barnabé e o companheiro deixaram os serviços entregues a João Marcos e foram atender.
— O Procônsul Sérgio Paulo † — disse o mensageiro, solene — manda convidar-vos a visitá-lo em palácio.
A mensagem era muito mais uma ordem que simples convite. O discípulo de Simão compreendeu de pronto e respondeu:
— Agradecemos de coração e iremos ainda hoje.
47 O ex-rabino estava confuso. Não só o conteúdo político do fato surpreendia-o, sobremaneira. Em vão procurava recordar-se de alguma coisa. Sérgio Paulo? Não conheceria alguém com esse nome? Buscou relembrar os jovens de origem romana, do seu conhecimento. Afinal, veio-lhe à memória a palestra de Pedro sobre a personalidade de Estêvão e concluiu que o Procônsul não podia ser outro senão o salvador do irmão de Abigail.
Sem comunicar as íntimas impressões a Barnabé examinou a situação em sua companhia. Quais os objetivos da delicada intimação? Segundo a voz pública, o chefe político vinha sofrendo pertinaz enfermidade. Desejaria curar-se ou, quem sabe, provocar um meio de expulsá-los da ilha, induzido pelos judeus? A situação, entretanto, não se resolveria por conjeturas.
48 Incumbindo João Marcos de atender a quantos se interessassem pela doutrina, no referente a informes necessários, os dois amigos puseram-se a caminho, resolutamente.
Conduzidos através de galerias extensas, foram dar com um homem relativamente moço, deitado em largo divã e deixando perceber extremo abatimento. Magro, pálido, revelando singular desencanto da vida, o Procônsul entremostrava, todavia, uma bondade imensa na suave irradiação do olhar humilde e melancólico.
Recebeu os missionários com muita simpatia, apresentando-lhes um mago judeu de nome Barjesus, † que de longa data o vinha tratando. Sérgio Paulo, prudentemente, mandou que os guardas e servos se retirassem. Apenas os quatro se viram a sós, em círculo muito íntimo, falou o enfermo com amarga serenidade:
— Senhores, diversos amigos me deram notícia dos vossos êxitos nesta cidade de Nea-Pafos. † Tendes curado moléstias perigosas, devolvido a fé a inúmeros descrentes, consolado míseros sofredores… Há mais de um ano venho cuidando de minha saúde arruinada. Nestas condições, estou quase inutilizado para a vida pública.
Apontando Barjesus que, por sua vez, fixava o olhar malicioso nos visitantes, o chefe romano prosseguiu:
— Há muito contratei os serviços deste vosso conterrâneo, ansioso e confiante na ciência de nossa época, mas os resultados têm sido insignificantes. Mandei chamar-vos, desejoso de experimentar os vossos conhecimentos. Não estranheis minha atitude. Se pudesse, teria ido procurar-vos em pessoa, pois conheço o limite de minhas prerrogativas; como vedes, porém, sou antes de tudo um necessitado.
49 Saulo ouviu aquelas declarações, profundamente comovido pela bondade natural do ilustre enfermo. Barnabé estava atônito, sem saber o que dizer. O ex-doutor da Lei, entretanto, senhor da situação e quase certo de que a personagem era a mesma que figurava na existência do mártir vitorioso, tomou a palavra e disse convictamente:
— Nobre Procônsul, temos conosco, de fato, o poder de um grande médico. Podemos curar, quando os enfermos estejam dispostos a compreendê-lo e segui-lo.
— Mas quem é ele? — perguntou o enfermo.
— Chama-se Cristo Jesus. Sua fórmula é sagrada — continuava o tecelão, com ênfase — e destina-se a medicar, antes de tudo, a causa de todos os males. Como sabemos, todos os corpos da Terra terão de morrer. Assim, por força de leis naturais inelutáveis, jamais teremos, neste mundo, absoluta saúde física. Nosso organismo sofre a ação de todos os processos ambientes. O calor incomoda, o frio nos faz tremer, a alimentação nos modifica, os atos da vida determinam a mudança dos hábitos. Mas o Salvador nos ensina a procurar uma saúde mais real e preciosa, que é a do espírito. Possuindo-a, teremos transformado as causas de preocupação de nossa vida, e habilitamo-nos a gozar a relativa saúde física que o mundo pode oferecer nas suas expressões transitórias.
50 Enquanto Barjesus, irônico e sorridente, escutava o intróito, Sérgio Paulo acompanhava a palavra do ex-rabino, atento e comovido:
— Contudo, como encontrar esse médico? — perguntou o Procônsul, mais preocupado com a cura do que com o elevado sentido metafísico das observações ouvidas.
— Ele é a bondade perfeita — esclareceu Saulo de Tarso — e sua ação consoladora está em toda parte. Antes mesmo que o compreendamos, cerca-nos com a expressão do seu amor infinito!…
Observando o entusiasmo com que o missionário tarsense falava, o chefe político de Nea-Pafos buscou a aprovação de Barjesus com olhar indagador.
O mago judeu, evidenciando profundo desprezo, exclamou:
— Julgávamos que estivésseis aparelhados de alguma ciência nova… Não quero acreditar no que ouço. Acaso me supondes um ignorante, relativamente ao falso profeta de Nazaret? Ousais franquear o palácio de um governador, em nome de um miserável carpinteiro?
51 Saulo mediu toda a extensão daquelas ironias, respondendo sem se intimidar:
— Amigo, quando eu afivelava a máscara farisaica, também assim pensava; mas, agora, conheço a gloriosa luz do Mestre, o Filho do Deus Vivo!…
Essas palavras eram ditas num tom de convicção tão ardente que o próprio charlatão israelita se fizera lívido. Barnabé também empalidecera, enquanto o nobre patrício observava o ardoroso pregador com visível interesse. Depois de angustiosa expectativa, Sérgio Paulo voltou a dizer:
— Não tenho o direito de duvidar de ninguém, enquanto as provas concludentes não me levem a faze-lo.
E procurando fixar a fisionomia de Saulo, que lhe enfrentava o olhar perquiridor, serenamente continuou:
— Falais desse Cristo Jesus, enchendo-me de assombro. Alegais que sua bondade nos assiste antes mesmo de o conhecermos. Como obter uma prova concreta de vossa afirmativa? Se não entendo o Messias de que sois mensageiros, como saber se sua assistência me influenciou algum dia?
52 Saulo lembrou repentinamente as palestras de Simão Pedro, ao lhe narrar os antecedentes do mártir do Cristianismo. Num instante alinhou os mínimos episódios. E valendo-se de todas as oportunidades para destacar o amor infinito de Jesus, como aconteceu nos menores fatos da sua carreira apostólica, sentenciou com singular entono:
— Procônsul, ouvi-me! Para revelar-vos, ou melhor, a fim de lembrar-vos a misericórdia de Jesus de Nazaret, o nosso Salvador, chamarei vossa atenção para um acontecimento importante.
Enquanto Barnabé manifestava profunda surpresa, em face da desassombrada atitude do companheiro, o político aguçava a curiosidade.
— Não é a primeira vez que experimentais uma grave enfermidade. Há quase dez anos, ao tentardes os primeiros passos na vida pública, embarcastes no porto de Cefalônia † em demanda desta ilha. Viajáveis para Citium, † mas, antes que o navio aportasse em Corinto † fostes acometido de febre terrível, o corpo aberto em feridas venenosas…
53 Brancura de cera estampava-se no semblante do chefe de Nea-Pafos. Colocando a mão no peito, como a conter as pulsações aceleradas do coração, ergueu-se extremamente perturbado.
— Como sabeis tudo isso? — murmurou aterrado.
— Não é só — disse o missionário, sereno —, esperai o resto. Vários dias permanecestes entre a vida e a morte. Debalde os médicos de bordo comentaram vossa enfermidade. Vossos amigos fugiram. Quando ficastes de todo abandonado, não obstante o prestígio político do vosso cargo, o Messias Nazareno vos mandou alguém, no silêncio de sua misericórdia divina.
54 O Procônsul, com o despertar das velhas reminiscências, sentia-se profundamente comovido.
— Quem teria sido o mensageiro do Salvador? prosseguia Saulo, enquanto Barnabé o contemplava com inaudito assombro. — Um de vossos íntimos? Um amigo eminente? Um dos colegas ilustres que presenciavam vossas dores? Não! Apenas um escravo humilde, um serviçal anônimo dos remos homicidas. Jeziel velou por vós, dia e noite! E o que a Ciência do mundo não conseguiu fazer, fê-lo o coração empossado pelo amor do Cristo! Compreendeis agora? Vosso amigo Barjesus fala de um carpinteiro sem-nome, de um Messias que preferiu a condição da humildade suprema para nos trazer as torrentes preciosas de suas graças!… Sim, Jesus também, como aquele escravo que vos restabeleceu a saúde perdida, fez-se servo do homem para conduzi-lo a uma vida melhor!… Quando todos nos abandonam, Ele está conosco; quando os amigos fogem, sua bondade mais se aproxima. Para forrarmo-nos das míseras contingências desta vida mortal, é preciso crer nele e segui-lo sem descanso!…
55 Ante as lágrimas convulsivas do Procônsul, Barnabé, aturdido, considerava: Onde fora o companheiro colher tão profundas revelações? A seu ver, naquele instante, Saulo de Tarso estaria iluminado pelo dom maravilhoso das profecias.
— Senhores, tudo isso é a verdade pura! Trouxestes-me a santa notícia de um Salvador!… — exclamou Sérgio Paulo.
Reconhecendo a capitulação do generoso patrício que lhe recheava a bolsa de fartos recursos, o mago israelita, apesar de muito surpreso, exclamou com energia:
— Mentira!… São mentirosos! Tudo isso é obra de Satanás! Estes homens são portadores de sortilégios infames do “Caminho”! Abaixo a exploração vil!…
56 A boca lhe espumava, os olhos rebrilhavam de cólera. Saulo mantinha-se calmo, impassível, quase sorridente. Depois, timbrando forte:
— Acalmai-vos, amigo! A fúria não é amiga da verdade e quase sempre esconde inconfessáveis interesses. Acusai-nos de mentirosos, mas nossas palavras não se desviaram uma linha da realidade dos acontecimentos. Alegais que nosso esforço procede de Satanás, no entanto, onde já se viu maior incoerência? Onde encontraríamos um adversário trabalhando contra si mesmo? Afirmais que somos portadores de sortilégios; se o amor constitui esse talismã, nós o trazemos no coração, ansiosos por comunicar a todos os seres sua benéfica influência. Finalmente, lançais a nós outros a pecha de exploradores salazes, quando aqui viemos chamados por alguém que nos honrou com sinceridade e confiança e, de modo algum, poderíamos oferecer as graças do Salvador a título mercatório.
57 Seguiu-se acalorada discussão: Barjesus fazia empenho em demonstrar a inferioridade dos intuitos de Saulo, enquanto este se esforçava em timbrar nobreza e cordialidade.
Embalde o Procônsul tentava dissuadir o judeu de continuar na requesta e naquele diapasão. Barnabé, por sua vez, confiando muito mais nos poderes espirituais do amigo, acompanhava o discrime sem ocultar admiração pelos infinitos recursos que o missionário tarsense estava revelando.
A polêmica já durava mais de hora, quando o mago fez uma alusão mais ferina à personalidade e feitos de Jesus-Cristo.
Em atitude mais enérgica, o Apóstolo sentenciou:
— Tudo fiz por convencer-vos sem demonstrações mais diretas, de maneira a não ferir a parte respeitável de vossas convicções; todavia, estais cego e é nessa condição que podereis enxergar a luz. Como vós, também já vivi em trevas e, no instante do meu encontro pessoal com o Messias, foi necessário que as trevas se adensassem em meu espírito, a fim de que a luz ressurgisse mais brilhante. Tereis igualmente esse benefício. A visão do corpo fechar-se-vos-á, para que possais divisar a verdade em espírito!…
58 Nesse comenos, Barjesus deu um grito.
— Estou cego!
Estabeleceu-se alguma confusão no recinto. Barnabé adiantou-se, amparando o israelita que tateava aflito. O tecelão e o governador aproximaram-se surpreendidos. Foram chamados alguns servos que atenderam as necessidades do momento, carinhosos e solícitos. Por quatro longas horas, Barjesus chorou, mergulhado na sombra espessa que lhe invadira os olhos cansados. Ao fim desse tempo, os missionários oraram de joelhos… Branda serenidade estabeleceu-se no vasto aposento. Em seguida, Saulo impôs-lhe as mãos na fronte e, com um suspiro de alívio, o velho israelita recobrou a vista, retirando-se confuso e sucumbido.
59 O Procônsul, porém, vivamente interessado nos fatos intensos daquele dia, chamou os missionários em particular e falou sensibilizado:
— Amigos, creio nas verdades divinas que anunciais e desejo sinceramente compartilhar do Reino esperado. Nada obstante, conviria inteirar-me dos vossos objetivos de trabalho, dos vossos planos enfim. Estou ciente de que não mercadejais os dons espirituais de que sois portadores, e proponho-me auxiliar-vos com os meus préstimos em tudo que me for possível. Poderia saber os projetos que vos animam?
Os dois missionários entreolharam-se, surpresos. Barnabé ainda não havia saído do espanto que o companheiro lhe causara. Saulo, por sua vez, mal dissimulava o próprio assombro pelo auxílio espiritual que obtivera no afã de confundir os maliciosos intuitos de Barjesus.
60 Reconhecendo, contudo, o elevado e sincero interesse do chefe político da província, esclareceu com jubilosos conceitos:
— O Salvador fundou a religião do amor e da verdade, instituição invisível e universal, onde se acolham todos os homens de boa vontade. Nosso fim é dar feição visível à obra divina, estabelecendo templos que se irmanem nos mesmos princípios, em seu nome. Avaliamos a delicadeza de semelhante tentame e estamos crentes de que as maiores dificuldades vão surgir em nosso caminho. É quase impossível encontrar o cabedal humano indispensável ao cometimento; mas é forçoso movimentar o plano. Quando falhem os elementos da instituição visível, esperaremos na igreja infinita, onde, nas luzes da universalidade, Jesus será o chefe supremo de todas as forças que se consagrem ao bem.
— Trata-se de sublime iniciativa — aparteou o Procônsul evidenciando nobre interesse. — Onde encetastes a construção dos santuários?
— Nossa missão está começando precisamente agora. Os discípulos do Messias fundaram as igrejas de Jerusalém e Antioquia. Por enquanto, não temos outros núcleos educativos, além desses. Há muitos cristãos em toda parte, mas suas reuniões se fazem em domicílios particulares. Não possuem templos, propriamente, que os habilitem a mais eficiente esforço de assistência e propaganda.
— Nea-Pafos terá, então, a primeira igreja, filha do vosso trabalho direto.
61 Saulo não sabia como traduzir sua gratidão por aquele gesto de generosidade espontânea. Profundamente comovido, adiantou-se, então, e, com o cidadão cíprio, agradeceu a dádiva que vinha prestigiar e facilitar a obra apostolar.
Os três falaram ainda largo tempo sobre os empreendimentos em perspectiva. Sérgio Paulo pediu-lhes indicassem as pessoas capazes de construir o novo templo, enquanto Barnabé e o companheiro expunham suas esperanças.
Somente à noite os missionários puderam voltar à tenda humilde das pregações.
— Estou impressionado! — dizia Barnabé, recordando o ocorrido. — Que fizeste? Tenho para mim que hoje é o dia maior da tua existência. Tua palavra tinha um timbre sagrado e diferente; anima-te, agora, o dom das profecias… Além disso, o Mestre agraciou-te com o poder de dominar as ideias malignas. Viste como o charlatão sentiu a influência de energias poderosas quando fizeste o teu apelo?
62 Saulo ouviu atento e com a maior simplicidade acentuou:
— Também não sei como traduzir meu espanto pelas graças obtidas. Foi pelo Cristo que nos tornamos instrumentos da conversão do Procônsul, pois a verdade é que de nós mesmos nada valemos.
— Nunca esquecerei os acontecimentos de hoje — tornou o ex-levita, admirado.
E depois de uma pausa:
— Saulo, quando Ananias te batizou não chegou a sugerir a mudança do teu nome?
— Não me lembrei disso.
— Pois suponho que, doravante, deves considerar tua vida como nova. Foste iluminado pela graça do Mestre, tiveste o teu Pentecostes, † foste sagrado Apóstolo para os labores divinos da redenção.
63 O ex-doutor da Lei não dissimulou a própria admiração e concluiu:
— É muito significativo para mim que um chefe político seja atraído para Jesus, por nosso intermédio, mesmo porque, nossa tarefa conclama os gentios ao Sol Divino do Evangelho de Salvação.
Intimamente recordou os laços sublimes que o ligavam à memória de Estevão, a generosa influência do patrício romano que o libertara dos trabalhos duros da escravidão e, invocando a memória do mártir, num apelo silencioso, falou comovido:
— Sei, Barnabé, que muitos dos nossos companheiros trocaram de nome quando se converteram ao amor de Jesus; quiseram assinalar desse modo sua separação dos enganos fatais do mundo. Não quis valer-me do recurso de qualquer modo. Mas a transformação do governador, a luz da graça que nos acompanhou no curso dos acontecimentos de hoje, levam-me, igualmente, a procurar um motivo de perenes lembranças.
Depois de longa pausa, dando a entender quanto refletira para tomar aquela resolução, falou:
— Razões íntimas, absolutamente respeitáveis, obrigam-me a reconhecer, doravante, um benfeitor no chefe político desta ilha. Sem trocar formalmente meu nome, passarei a assinar-me à romana.
— Muito bem — respondeu o companheiro —, entre Saulo e Paulo nenhuma diferença existe, a não ser a do hábito de grafia ou de pronúncia. A decisão será uma formosa homenagem ao nosso primeiro triunfo missionário junto dos gentios, ao mesmo tempo que constituirá agradável lembrança de um espírito tão generoso.
64 Nesse fato baseou-se a mudança de uma letra no nome do ex-discípulo de Gamaliel. Caráter íntegro e enérgico, o rabino de Jerusalém, nem mesmo transformado em modesto tecelão, quis modificar, portas a dentro do Cristianismo, a sua fidelidade inata. Se servira a Moisés como Saulo, com o mesmo nome haveria de servir igualmente a Jesus-Cristo. Se errara e fora perverso, na primeira condição, aproveitaria a oportunidade dos Céus, corrigiria a existência e seria um homem bom e justo na segunda. Nesse particular, não chegou a considerar qualquer sugestão dos amigos. Fora o primeiro perseguidor da instituição cristã, verdugo inflexível do proselitismo alvorecente, mas fazia questão de continuar como Saulo, para lembrar-se de todo o mal e envidar esforços para fazer todo o bem ao seu alcance. Mas, naquele instante, a lembrança de Estêvão falava-lhe brandamente ao coração. Ele fora o seu maior exemplo para a marcha espiritual. Era o Jeziel bem-amado de Abigail. Para procurá-lo, ambos se haviam prometido ir sem vacilações, fosse aonde fosse. Os dois irmãos de Corinto estavam vivos, de tal modo, em sua alma sensível, que não era possível apagar na memória os mínimos fatos de sua vida. A mão de Jesus o encaminhara ao Procônsul, o libertador de Jeziel dos grilhões do cativeiro; o ex-escravo demandara Jerusalém para tornar-se discípulo do Cristo! o ex-rabino sentia-se ditoso, por ter sido auxiliado pelas forças divinas, tornando-se por sua vez libertador de Sérgio Paulo, escravizado ao sofrimento e às ilusões perigosas do mundo. Era justo gravar na memória uma lembrança indelével daquele que, vítima dele em Jerusalém, era agora irmão abençoado, o qual não conseguia esquecer nos mais fugazes instantes da vida e do seu ministério.
Daí por diante o convertido de Damasco, em memória do inolvidável pregador do Evangelho, que sucumbira a pedradas, passou a assinar-se Paulo, até ao fim de seus dias.
65 A notícia da cura e da conversão do Procônsul encheu Nea-Pafos de grande assombro. Os missionários não mais tiveram descanso. Embora o protesto quase apagado dos israelitas, a comunidade cresceu extraordinariamente. Integrado nos bens da saúde, o chefe provincial forneceu o necessário à construção da igreja. O movimento era extraordinário. E os dois mensageiros do Evangelho não cessavam de render graças a Deus.
O triunfo cercava-os de profunda consideração, quando Paulo foi procurado por Barjesus que lhe solicitava uma palavra confidencial. O ex-rabino não hesitou. Era uma boa ocasião para provar ao velho israelita os seus propósitos generosos e sinceros. Recebeu-o, pois, com toda a afabilidade.
Barjesus parecia tomado de grande acanhamento. Após cumprimentar o missionário, atencioso, exprimiu-se com certo embaraço:
— Afinal precisava desfazer o mal-entendido, no caso do Procônsul. Ninguém, mais do que eu desejava tanto a saúde do enfermo, e, por conseguinte, ninguém mais agradecido à vossa intervenção, libertando-o de enfermidade tão dolorosa.
— Sou muito grato ao vosso parecer e regozijo-me com a vossa compreensão — disse Paulo, com gentileza.
— Entretanto…
66 O visitante vacilava se devia ou não expor seus objetivos mais íntimos. Atento às reticências sem presumir-lhes a causa, o ex-rabino adiantou-se benévolo.
— Que desejais dizer? Com franqueza. Nada de cerimônias!
— Acontece — retrucou mais animado — que venho afagando a ideia de consultar-vos a respeito dos vossos dons espirituais. Penso que não haverá maior tesouro para triunfar na vida…
Paulo estava confundido, sem saber que rumo tomaria a conversação. Mas, focando o ponto mais delicado da pretensão, Barjesus continuou:
— Quanto ganhais no vosso ministério?
— Ganho a misericórdia de Deus — disse o missionário, compreendendo, então, todo o alcance daquela visita inesperada —, vivo do meu trabalho de tecelagem e não seria lícito mercadejar com o que pertence ao Pai que está nos Céus.
— É quase incrível! — murmurou o mago arregalando os olhos. — Eu estava convicto de que trazíeis convosco certos talismãs, que me dispunha a comprar por qualquer preço.
67 E enquanto o ex-rabino o contemplava cheio de comiseração pela sua ignorância, o visitante prosseguiu:
— Mas, será crível que façais semelhantes obras sem contribuição de sortilégios?
O missionário fixou-o mais atento e murmurou:
— Só conheço um sortilégio eficiente.
— Qual é? — interrogou o mago de olhar faiscante e cobiçoso.
— É o da fé em Deus com sacrifício de nós mesmos.
68 O velho israelita demonstrou não entender toda a significação daquelas palavras, objetando:
— Sim, mas a vida tem suas necessidades urgentes. É indispensável prever e amealhar recursos.
Paulo pensou um minuto e disse:
— De mim mesmo, nada tenho com que vos esclarecer. Mas Deus tem sempre uma resposta para nossas preocupações mais simples. Consultemos suas eternas verdades. Vejamos qual a mensagem destinada ao vosso coração.
Ia abrir o Evangelho, conforme seu costume, quando o visitante observou:
— Nada conheço desse livro. Para mim, portanto, não poderá trazer advertência alguma.
O missionário compreendeu a relutância e acentuou:
— Que conheceis então?
— Moisés e os Profetas.
69 Tomou do rolo de pergaminhos onde se podia ler a Lei Antiga e o deu ao velho malicioso, para que o abrisse em alguma sentença, ao acaso, segundo os hábitos da época. No entanto Barjesus, com evidente má-vontade, acrescentou:
— Só leio os Profetas, de joelhos.
— Podeis ler como quiserdes, porque o ato de compreender é o que nos interessa, antes de tudo.
Assinalando suas presunções farisaicas, o charlatão ajoelhou-se e abriu solenemente o texto, sob o olhar sereno e perquiridor do ex-rabino. O velho israelita fez-se pálido. Esboçou um gesto para se abstrair da leitura; mas Paulo percebeu o movimento sutil e, aproximando-se, falou com alguma veemência:
— Leiamos a mensagem permanente dos emissários de Deus.
70 Tratava-se de um fragmento dos Provérbios, que Barjesus pronunciou em voz alta, com enorme desapontamento:
“Duas coisas te pedi; não mas negues, antes que eu morra. Afasta de mim as vaidades e as mentiras. Não me dês a pobreza, nem a riqueza. Concede-me apenas o alimento de que necessito, para não acontecer que, estando farto, eu te negue e pergunte: — Quem é Jeová? — ou que, estando pobre, me ponha a furtar e profane o nome de meu Deus.” n
O mago levantou-se atarantado. O próprio missionário estava surpreso.
— Vistes, amigo? — interrogou Paulo — a palavra da verdade é muito eloquente. Será grande talismã, na existência, o sabermos viver com os nossos próprios recursos, sem exorbitar do necessário ao nosso enriquecimento espiritual.
— Efetivamente — respondeu o charlatão — este processo de consultas é muito interessante. Vou meditar seriamente na experiência de hoje.
Logo em seguida se despedia, depois de mastigar alguns monossílabos que mal disfarçavam a perturbação que todo o empolgara.
71 Impressionado, o tecelão consagrado ao Cristo anotou as profundas exortações, para consolidar o seu programa de atividades espirituais, isento de interesses inferiores.
A missão permaneceu em Nea-Pafos ainda alguns dias, sobrecarregada de muito trabalho. João Marcos colaborava com os recursos ao seu alcance; todavia, de vez em quando, Barnabé surpreendia-o entristecido e queixoso. Não esperava encontrar tão vultosa cota de trabalho.
— Mas, assim é melhor — acentuava Paulo —, o serviço do bem é a muralha defensiva das tentações.
O rapaz conformava-se; contudo, sua contrariedade era evidente.
Além disso, fiel observador do judaísmo, não obstante a paixão pelo Evangelho, o filho de Maria Marcos sentia grandes escrúpulos, com a largueza de vistas do tio e do missionário, relativamente aos gentios. Desejava servir a Jesus, sim, de todo o coração, mas não podia distanciar o Mestre das tradições do berço.
72 Enquanto as sementes lançadas em Chipre começavam a germinar na terra dos corações, os trabalhadores do Messias abandonavam Nea-Pafos, absorvidos em vastas esperanças. […]
Emmanuel
[1] O relato de Atos registra os episódios na cidade de Pafos, na ilha de Chipre, até o momento da conversão do procônsul Sérgio Paulo. O Texto de Emmanuel registra eventos além desse acontecimento, sendo o mais importante, o momento de alteração no nome do Apóstolo dos Gentios de Saulo para Paulo. Dada a importância desses eventos, a equipe os incluiu no texto paralelo de Paulo e Estêvão.
[2] Provérbios, 30:7 a 9.
(Paulo e Estêvão, FEB Editora. Segunda parte. Capítulo 4, pp. 294 a 307. Indicadores 41 a 72)