“Para o estado atual do Brasil não se enquadra outro regime fora da democracia liberal!”
PEDRO LEOPOLDO, † 14 (Especial para O GLOBO por Clementino de Alencar) — Numa das nossas últimas correspondências de abril, fizemos referência vaga a um “segredo”, num certo ponto deste nosso inquérito sobre o qual não desejamos, ou melhor, não podíamos ainda falar.
Esse “segredo” era apenas, no momento, uma intenção da reportagem: uma prova a que desejávamos chegar de improviso.
Por isso, daquela vez, ao pé da referência ao segredo, escrevíamos: “Calemos por enquanto”.
Sucedeu, porém, que motivos imperiosos nos afastaram, por alguns dias, de Pedro Leopoldo, e assim, também por alguns dias mais devíamos calar.
Agora, de volta ao campo de nossas observações, conseguimos atingir enfim o ponto almejado.
O “segredo” não tem mais razão de ser. Já não há o que calar. A reportagem volta a trilhar uma estrada sensacional e surpreendente.
O jornalista e o mistério
Tudo o que passaremos a expor poderá parecer nada — empregando o “natural” com o sentido de exprimir o “que segue a ordem regular dos fatos” — aos adeptos e iniciados na doutrina; mas não aqueles que ainda encaram com dúvidas o dogma da comunicação com o Além. E foi por isso que usamos acima a imagem da “estrada sensacional e surpreendente”.
Agora, trilhemo-la.
A intenção
Desde que entráramos em contato com o médium de Pedro Leopoldo e entráramos na apreciação de seu vasto arquivo de mensagens atribuídas a escritores, pensadores e poetas mortos, uma intenção se fora sorrateiramente insinuando no ânimo do jornalista: a ideia de participar também dessas comunicações sensacionais, não simplesmente como um observador, mas com um gesto mais decidido de indagação e de pesquisa. Se nós vivemos a levantar, diante dos “vivos” — tão imperfeitos, frágeis e defeituosos — as nossas perguntas que poderão parecer impertinentes, mas pelas quais costumam falar e indagar as ansiedades, os desejos, as desconfianças das coletividades, seria acaso demais que nos lembrássemos de levar também — a esse mundo de lá dos “Planos intangíveis”, de onde ainda nos chegam o canto dos poetas e a advertência dos pensadores — as indagações das nossas incertezas e ansiedades?
Pareceu-nos que não seria demais esse apelo às luzes do Além. E firmou-se em nós a intenção. Dir-se-ia que o hábito da entrevista, como um “tic” irremediável da profissão, ressurgia mesmo ali, diante do grande enigma sobre o qual se escancaravam nossos olhos humanos. A intenção, através do processo cerebral inevitável, concretizou-se na vontade. E as perguntas ficaram armadas sob a expectativa muda dos nossos lábios.
Precipitam-se os acontecimentos
Foi ontem à noite. Reencontramos, à mesa do Hotel Diniz, o Sr. Washington Floriano de Albuquerque, promotor público da comarca, e a quem já fizemos referência em correspondências anteriores.
O distinto magistrado, bela mentalidade aberta a todos os estudos e pesquisas, acompanha-nos mais uma vez numa palestra em torno do caso Chico Xavier. Findo o jantar, saímos juntos, sustentando ainda a palestra.
O repórter, a certa altura, comunica-lhe sua intenção, ou melhor, já agora sua vontade.
O espírito de observação e pesquisa do magistrado e do estudioso deixa-se seduzir pela ideia de uma consulta aos “amigos do Espaço”. E resolvemos procurar José Cândido para sabermos a viabilidade de uma consulta daquela ordem.
A dificuldade
Encontramos, na sua humildade de trabalhador, o mesmo José Cândido, amável e acolhedor de sempre. Enquanto ali encetamos com ele a palestra, chega Chico Xavier, trazido por imprevista circunstância. O médium acaba de despedir-se de algumas visitas que recebera, ao anoitecer, vindas de Belo Horizonte. Vinha provavelmente comunicar o fato ao irmão [v. foto do repórter com Chico e seu irmão]. Dando conosco, entra na conversa. E foi então que expusemos a nossa intenção de consulta ao José Cândido: não uma dessas chamadas “consultas médicas”, mas uma indagação qualquer apanhada no ambiente. Não nos é feita restrição quanto à viabilidade. Unicamente, diz-nos José Cândido, aquilo só poderia ter lugar na quarta-feira, o único dia agora reservado às sessões e assim fixado por determinação dos próprios Espíritos-protetores do médium.
Um motivo, porém, nos leva à ligeira resistência. Talvez o Sr. Washington Floriano não possa ficar aqui até quarta-feira próxima. Mas isso não demove José Cândido. As sessões só poderão ter lugar nas quartas-feiras. Os “amigos do Espaço” não podem ser desobedecidos.
A amável possibilidade
Enquanto assim falávamos, Chico Xavier, do outro lado da mesa, silenciava; e havia uma expressão vagamente triste no seu rosto. Num relance vem ao repórter a impressão nítida de que aquela alma boa, sensível e humilde se desgostava um pouco com a necessidade daquela resistência imposta, pelos imperativos citados, às nossas solicitações humanas.
Talvez lhe ocorresse, naquele momento, por maravilhosa intuição, a palavra de Jesus:
— Bate que a porta se abrirá. (Mt)
Ali viéramos nós bater.
Sua tristeza como que se acentuou. E, diante da impossibilidade surgida, baixamos os olhos no silêncio.
Parecia-nos, até certo ponto, explicável a dificuldade; nenhum dos três visitantes, o jornalista, o promotor e o fotógrafo, era propriamente um adepto, um crente, um doutrinado. Não poderíamos por certo negar que houvesse, no fundo de nossa atitude, um sutil reflexo dos eternos anseios da alma humana. Mas, o que nos movia também era uma intenção de pesquisa, de constatação mais convincente, aquilo que poderíamos chamar a busca, não isenta de leve malícia, das evidências.
E foi no meio dessa meditação que nos surpreendeu a voz do médium.
— Emmanuel atende…
A porta abre-se
Por um instante o nosso silêncio ainda se apoia num certo pasmo. Emmanuel atende… O guia, o Espírito protetor do médium, abre-nos, pois, uma concessão?
Enfim, a porta abrira-se.
Tudo foi tão imprevisto que, em verdade, ainda nem tínhamos preparado as nossas perguntas. Apenas, meia hora antes, ao sairmos do hotel, havíamos grafado um rascunho de indagações gerais com que pretendíamos compor as perguntas. Mas não se podia hesitar.
José Cândido ocupa rapidamente o lugar ao lado do médium. Pede que façamos a nossa consulta. O promotor Albuquerque faz um sinal ao jornalista. Este tira do bolso uma das páginas rascunhadas.
A pergunta
Na folha quase amarrotada lemos isto, numa das perguntas que grafáramos às pressas para ulterior escolha:
— Que possibilidades existem e que vantagens ou desvantagens adviriam da implantação de um regime extremista no Brasil?
Estendemos o papel a José Cândido que o põe, por sua vez, diante do médium já em transe.
Fornecemos, ao mesmo tempo, nosso próprio bloco de papel e lápis para a grafia da mensagem que porventura viesse, pois não houvera nenhuma preparação para isso.
A seguir José Cândido pede que nos concentremos numa prece ao Senhor e ao Espírito dos nossos mortos bem-amados.
A resposta
Nem um minuto chegou a passar e ouvimos o ruído característico do deslizar do lápis sobre o papel. Inicia-se a grafia da mensagem, rapidamente, como de costume. Ainda uns doze ou quinze minutos de concentração, e o lápis estacou ao fim de uma assinatura.
Imobilidade.
José Cândido pede que o acompanhemos agora em sua oração. Finda esta, estão findos os trabalhos.
A mensagem que recebêramos, em resposta àquela nossa pergunta, é a seguinte:
“Amigos, que Deus ilumine o vosso entendimento.
Avesso à política, me sentiria mais à vontade se fosse inquerido acerca do Evangelho. Todavia, opiniões são coisas que pouco se custa a fornecer; contudo os meus pareceres são igualmente pessoais, como os vossos, sem o caráter da infalibilidade.
As mais extravagantes teorias políticas têm sido veiculadas no Brasil, cujo povo, guardando tradições de raças diversas, ainda se encontra longe da linha decisiva de sua evolução racial. Tudo aí se mistura e todas as ideias se propagam sem que sejam devidamente estudadas, ponderadas no cadinho da análise mais rigorosa. A implantação de um regime extremista seria um grande erro que o sofrimento coletivo viria certamente expiar.
De um lado prevalecem as doutrinas dos governos fortes, como a política do “sigma” copiando o fascismo em suas bases; da outra margem, se encontra o comunismo, inadaptável ainda à existência da nacionalidade, levando-se em conta o problema da necessidade de braços para o trabalho em uma terra vastíssima à espera das iniciativas e cometimentos de progresso preciso. É verdade que a Rússia atual fornece exemplos ao mundo inteiro, porém os homens que inauguraram violentamente os seus novos regimes não se fizeram de um dia para outro. Eles representavam muitos séculos de opressão, de martírios, de tormentos nefandos. Não saíram do proletariado que se compraz na incultura, mas da energia coordenadora que busca conciliar o labor operário com o trabalho intelectual das academias. O Brasil necessita, antes de tudo, combater o magno problema do analfabetismo. É necessário que se solucione o enigma pedagógico que implica toda essa mocidade sem entusiasmo e sem energia para estudo; para o estado atual não se enquadra outro regime fora da democracia liberal, até que o povo se eduque convenientemente para as grandes iniciativas do porvir. Fora disso é a ilusão portadora dos desenganos trágicos que empobrecem a economia e roubam a paz social. Infelizmente, a ambição, o personalismo, infestam os bastidores da política brasileira, eminentemente prejudicada pela sua visão mesquinha, concernente aos problemas da coletividade. Mas o que quereis? O trabalho é dos homens, e a eles compete a realização do progresso necessário. Longe do cenário do mundo não nos é lícito influenciar sobre questões distantes da nossa esfera de ação.
A nossa atividade unicamente se circunscreve ao esclarecimento das almas, pugnando para que as construções da crença sejam novamente reedificadas no templo dos corações humanos, trabalhados pelas concepções amargosas e destruidoras do negativismo. Para atingirmos semelhante desiderato só no Evangelho buscamos os nossos programas de ação. O nosso labor intenso é todo realizado com esse objetivo.
Que os homens resolvam de entendimento posto no código da perfeição, legado à Terra por Jesus e estarão de acordo com a evolução que deve presidir todas as manifestações das nossas atividades nos setores do trabalho humano. A Deus elevemos, assim, os nossos votos humildes para que os governantes do Brasil se acautelem com a infiltração de ideias contrárias ao bem-estar social e em desacordo com a sua vida de nacionalidade nova e apta a desempenhar um papel muito preponderante no seio da humanidade.”
Emmanuel
Estava conseguida a primeira entrevista com o Além.
Clementino de Alencar
[1] Essa reportagem foi publicada primeiramente em 1935 pela LAKE e é a 10ª da 3ª Parte do
livro “Palavras do Infinito”