1.
Seguindo Calderaro, fomos, em plena noite, atender infortunada irmã
quase suicida.
2 Penetramos a residência
confortável, conquanto modesta, percebendo a presença de várias entidades
infelizes.
O Assistente pareceu-me apressado. Não se deteve em nenhuma apreciação.
3 Acompanhei-o, por minha
vez, até humilde aposento, onde fomos encontrar jovem mulher em convulsivo
pranto, dominada por desespero incoercível. A mente acusava extremo
desequilíbrio, que se estendia a todos os centros vitais do campo fisiológico.
— Pobrezinha! — Disse o orientador, comovidamente, — não lhe faltará a Divina
Bondade. Tudo preparou de modo a fugir pelo suicídio, esta noite; entretanto,
as Forças Divinas nos auxiliarão a intervir…
4 Colocou a destra sobre a
fronte da irmã em lágrimas e esclareceu:
— É Antonina, abnegada companheira de luta. Órfã de pai, desde muito
cedo, iniciou-se no trabalho remunerado aos oito anos para sustentar
a genitora e a irmãzinha. Passou a infância e a primeira juventude em
sacrifícios enormes, ignorando as alegrias da fase risonha de menina
e moça. 5 Aos vinte
anos perdeu a mãezinha, então arrebatada pela morte, e, não obstante
seus formosos ideais femininos, foi obrigada a sacrificar-se pela irmã
em vésperas de casamento. 6
Realizado este, Antonina procurou afastar-se, para tratar da própria
vida; muito cedo, verificou, porém, que o esposo da irmãzinha se caracterizava
por nefanda viciosidade. Perdido nos prazeres inferiores, entregava-se
ao hábito da embriaguez, diariamente, retornando ao lar, em hora tardia,
a distribuir pancadas, a vomitar insultos. 7
Sensibilizada ante o destino da companheira, nossa dedicada amiga permaneceu
em casa, a serviço da renúncia silenciosa, aliviando-lhe os pesares
e auxiliando-a a criar os sobrinhos e a assisti-los. 8
Corriam os anos, tristes e vagarosos, quando Antonina conheceu certo
rapaz necessitado de arrimo, a sustentar pesado esforço por manter-se
nos estudos. Identificavam-se pela idade e pela comunhão de ideias e
de sentimentos. 9 Devotada
e nobre, correspondeu-lhe à simpatia, convertendo-se em abnegada irmã
do jovem. A companhia dele, de algum modo, projetava abençoada luz em
sua noite de solidão e sacrifício ininterruptos. Repartindo o tempo
e as possibilidades entre a irmã, quatro pequenos sobrinhos e o copartícipe
de sonhos fulgurantes, consagrava-se ao trabalho redentor de cada dia,
animada e feliz, aguardando o futuro. 10
Idealizava também obter, um dia, a coroa da maternidade, num lar singelo
e pobre, mas suficiente para caber a felicidade de dois corações para
sempre unidos diante de Deus. 11
Todavia, Gustavo, o rapaz que se valeu de sua amorosa colaboração durante
sete anos consecutivos, após a jornada universitária sentiu-se demasiado
importante para ligar seu destino ao da modesta moça. Independente e
titulado, agora, passou a notar que Antonina não era, fisicamente, a
companheira que seus propósitos reclamavam. 12
Exibindo um diploma de médico e sentindo urgente necessidade de constituir
um lar, com grandioso programa na vida social, desposou jovem possuidora
de vultosa fortuna, menosprezando o coração leal que o ajudara nos instantes
incertos. 13 Fundamente
humilhada, nossa desditosa irmã procurou-o, mas foi recebida com escarnecedora
frieza. Gustavo, com presunção repulsiva, transmitiu-lhe a novidade,
asperamente: Necessitava pôr em ordem os negócios materiais que lhe
diziam respeito, e, por isto, escolhera melhor partido. Além disso,
declarou, sua posição requeria uma esposa que não procedesse de um meio
de atividades humilhantes; pretendia alguém que não fosse operária de
laboratório, que não tivesse mãos calejadas, nem fios prateados na cabeça.
14 A moça tudo ouviu
debulhada em lágrimas, sem reação, e tornou à residência, ontem, minada
pelo anseio de morrer, fosse como fosse. Sente que as esperanças se
lhe esvaneceram, esfaceladas pelo golpe inopinado, que a existência
se reduz em cinza e poeira, que a renúncia abre as portas da ruína e
da morte. Conseguiu certa dose de substância mortífera, que pretende
ingerir ainda hoje.
15 Dando pequeno intervalo
às elucidações, recomendou-me:
— Examina-a, enquanto administro os socorros iniciais.
2.
Detive-me em perquirição minuciosa, por longos minutos.
2 Dos olhos de Antonina, caíam
pesadas lágrimas; no entanto, da câmara cerebral partiam raios purpúreos,
que invadiam o tórax e envolviam particularmente o coração. Torturantes
pensamentos baralhavam-lhe a mente. Registando-lhe os secretos apelos,
compungia ouvir-lhe os gritos de desespero e as súplicas ardentes.
3 Seria crime, — pensava,
— amar alguém com tal excesso de ternura? Onde jazia a Justiça do Céu,
que lhe não premiava os sacrifícios de mulher dedicada à paz doméstica?
Aspirava a ser alegre e feliz, como as venturosas companheiras de sua
meninice; anelava a tranquilidade do matrimônio digno, com a expectativa
de receber alguns filhinhos, concedidos pela Bondade Infinita de Deus!
4 Seria aspiração condenável
sonhar com a edificação de modesto lar, com a proteção de um companheiro
simples e bondoso, quando as próprias aves possuíam seus ninhos? Não
trabalhara sempre pela felicidade dos outros? 5
Por que desconhecidas razões a relegara Gustavo ao abandono? Os calos
das mãos e os sinais do rosto não lhe roboravam a dedicação ao serviço
honesto? Teria valido a pena sofrer tantos anos, perseguindo uma realização
que se lhe afigurava, agora, impossível? 6
Não! Não pretendia demorar-se num mundo onde o vício triunfava tão facilmente,
espezinhando a virtude! Não obstante a fé que lhe alentava o coração,
preferia morrer, enfrentar o desconhecido… Sentia-se desajustada, sem
rumo, quase louca. Não seria mais razoável, — inquiria a si própria,
— buscar as trevas do sepulcro de que apodrecer num catre de hospício?
7 Estirada no leito, a infeliz
mergulhava o rosto nas mãos, soluçando sozinha, inspirando-nos piedade.
Calderaro interrompeu o serviço de assistência, fitou-me com significativa expressão e comunicou:
— Tenho instruções para impor-lhe o sono mais profundo, logo depois da meia-noite.
8 E, verificando que o relógio
informava não estar distante o momento prefinido, o Assistente começou
a ministrar-lhe aplicações fluídicas ao longo do sistema nervoso simpático.
A vasta rede de neurônios experimentou a influência anestesiante. Antonina tentou levantar-se, gritar, mas não conseguiu. A intervenção era demasiado vigorosa para que a enferma pudesse reagir.
9 O orientador prosseguiu
atento, envolvendo-a mansamente, em fluidos calmantes. Dentro em pouco,
cedendo à irresistível dominação, a moça recostou-se vencida nos travesseiros,
no estado a que o magnetizador comum chamaria “hipnose profunda”.
3.
Manteve-a Calderaro em completo repouso por mais de meia hora. Decorrido
esse tempo, duas entidades, aureoladas de intensa luz, deram entrada
no recinto. Abraçaram meu instrutor, que me apresentou cordialmente.
2 Estavam, agora, junto de
nós, Mariana, que fora dedicada genitora de Antonina, e Márcio, iluminado
Espírito ligado a ela, desde séculos remotos.
3 Agradeceram, sensibilizados,
a atuação de meu orientador, que passou a doente à direção materna.
A simpática senhora desencarnada inclinou-se sobre a filha e chamou-a,
docemente, como o fazia na Terra. Parcialmente desligada do envoltório
grosseiro, Antonina ergueu-se, em seu organismo perispirítico, encantada,
feliz…
— Mamãe! Mamãe! — Gritou, desabafando-se, a refugiar-se entre os braços maternais.
4 Mariana recolheu-a, carinhosa,
estringiu-a de encontro ao peito, pronunciando palavras enternecedoras.
— Mãezinha, ajude-me! Não quero mais viver na Terra! Não me deixe voltar ao corpo pesado… O destino escorraça-me. Sou infeliz! Tudo me é adverso… Arrebate-me daqui… para sempre!
5 A nobre matrona contemplava-a,
triste, quando Márcio se aproximou, fazendo-se visto pela estimada enferma.
A moça abriu desmesuradamente os olhos e ajoelhou-se instintivamente, amparada pela mãe. Parecia esforçar-se por trazer à lembrança alguém que ficara em pretérito longínquo… Observava-se-lhe a extrema dificuldade para recordar com precisão. Contemplava o emissário, banhada em pranto diferente: não vertia as lágrimas lutuosas de momentos antes; tocava-se, agora, de sublime conforto, de júbilo místico, que lhe nascia, inexplicavelmente, das profundezas do coração.
6 Acercou-se Márcio mais intimamente,
pousou-lhe a luminosa destra sobre a fronte e falou com ternura:
— Antonina, porque esse desânimo, quando a luta redentora apenas começa? Olvidaste,
acaso, que não somos órfãos? Acima de todos os obstáculos paira a Infinita
Bondade. Recusas a “porta estreita”, ( † )
que nos proporcionará o venturoso acesso ao reencontro?
7 Talvez porque a interlocutora
estivesse de si mesma postulando excessivo trabalho para reavivar paisagens
perdidas no tempo, o mensageiro advertiu, fraternal:
— Não forces a situação! Acalma-te! Não nos bastará o presente, cheio
de abençoado serviço e renovadora luz? Um dia, reconquistarás o patrimônio
da memória total; por ora, contenta-te com as dádivas limitadas. 8
Aproveita os minutos na recomposição do destino, vale-te das horas para
reconduzir tuas aspirações a Esferas superiores. Que motivos te sugerem
esse crime, que é o provocar a morte? Que razões te conduzem os passos
na direção do precipício tenebroso? 9
Tua mãe e eu sentimos, de longe, o perigo, e aqui estamos para ajudar-te…
Fez longa pausa, fixando-a amorosamente, e continuou:
— Ó minha abençoada amiga, como abriste assim o coração aos monstros do desespero? Dize-me! Não te mantenhas silenciosa… Não sou teu juiz, sou teu amigo da eternidade. Não terei o consolo de ouvir-te?
10 A enferma desejava falar;
entretanto, os suaves raios de luz, emitidos por Márcio, cercavam-na
toda, sufocando-lhe a garganta, no êxtase daqueles instantes inesquecíveis.
Ele, porém, desejando evidentemente proporcionar-lhe oportunidade a mais amplo desabafo, levantou-a, cuidadoso, e insistiu:
— Fala!…
11 Animada, Antonina balbuciou,
tímida:
— Estou exausta…
— Contudo, jamais foste esquecida. Recebeste mil recursos diversos da Providência, indispensáveis ao valioso serviço de redenção. O corpo terreno, as bênçãos do Sol, as oportunidades de trabalho, as maravilhas da Natureza, os laços afetivos e as próprias dores da experiência humana não serão inestimáveis dons do Divino Suprimento? Ignoras, querida, a felicidade do sacrifício, renegas a possibilidade de amar?
12 Foi então que vi a jovem
mulher contemplá-lo mais confiadamente. Sentindo-se forte, ante a insofismável
demonstração de carinho, abriu-se com franqueza fraternal:
— Tenho sonhado com a posse de um lar…, desejo viver para um homem que, a seu
turno, me auxilie a levar a existência…, idealizo receber de Deus alguns
filhinhos que eu possa acariciar! 13
Será pecado, celeste mensageiro, anelar tais coisas? Será delinquente
a mulher que busca santificar os princípios naturais da vida? Depois
de mourejar anos a fio pela felicidade dos que me são caros, noto que
o destino escarnece de minhas esperanças. Será virtude viver entre pessoas
alegres e felizes, quando nosso coração queda morto?
14 Márcio ouviu-a fraternalmente,
afagando-lhe as mãos, e, evidenciando suas altas aquisições de verdadeiro
amor, acrescentou, mais compreensivo e mais terno:
— “Abnegada amiga, não permitas que a sombra de algumas horas te empane
a luz dos séculos porvindouros. 15
É possível, Antonina, que te sintas tão lamentavelmente só, quando o
Supremo Senhor te concedeu o sublime lar do mundo inteiro? A Humanidade
é nossa família, os filhinhos da dor nos pertencem. 16
Reconheço que transitórias humilhações do sentimento te laceram a alma,
que desejarias arrimar-te ao carinhoso braço de um companheiro digno
e fiel. No entanto, querida, é da Vontade Superior que recebas, por
enquanto, as vantagens que podem ser encontradas na solidão. 17
Se há períodos de florescimento nos vales humanos, dentro dos quais
nos inebriamos em plena primavera da Natureza, existências se verificam,
aparentemente isoladas e desditosas, nas culminâncias da meditação e
da renúncia, a cuja luz nos preparamos para novas jornadas santificadoras.
18 “Não suponhas que a fatal
passagem do sepulcro nos abra portas à liberdade: segue-nos a Lei, a
toda parte, e o Supremo Senhor, se exerce a infinita compaixão, não
despreza a justiça inquebrantável. Dá-nos, invariavelmente, a Eterna
Sabedoria o lugar onde possamos ser mais úteis e mais felizes.
19 “Declaras-te
deserdada e infeliz, e, no entanto, ainda não recenseaste as possibilidades
sublimes que te rodeiam. Dizes-te incapacitada de abraçar os pequeninos
de Deus, mas, porque tamanho exclusivismo para os rebentos consanguíneos?
Não enxergaste, até hoje, as crianças abandonadas, nunca viste os filhinhos
da miséria e da privação? Se não podes ser mãe de flores da própria
carne, por que motivo não te fazes tutora espiritual dos pequenos necessitados
e sofredores? 20
Acreditas, Antonina, que possamos ser absolutamente felizes, escutando
gemidos à nossa porta? Haverá perfeita alegria num coração que pulsa
ao lado de um coro de lágrimas? O mundo não é propriedade nossa. Nós,
os filhos do Altíssimo, é que fomos trazidos a cooperar nas obras que
nos cercam. 21 É verdadeira
infelicidade acreditar-se alguém favorito dos Céus, como se o Pai Compassivo
e Sábio não passasse de frágil e parcial ditador! Sacode a consciência
adormecida… Lembra-te de que o Todo Poderoso não se adstringe ao nosso
particularismo de criaturas falíveis, e não te esqueças de que nos pesam,
perante a universalidade d’Ele, inalienáveis deveres de trabalho, exercitando
os preciosos recursos que nos concedeu, a fim de alcançarmos, um dia,
a perfeição da sabedoria e do amor.
22 “Sofres em tua
organização, que orientaste para o personalismo, porque um homem, cujo
padrão psíquico se harmonizou com o teu em muitos aspectos, modificando
depois seu rumo de vida, te relegou ao esquecimento. Choras, porquanto
esperavas encontrar em sua companhia algo da Divina Presença, que traria
serenidade às tuas angustiosas esperanças de mulher delicada e sensível…
23 As inquietações do
sexo tomaram vulto na intimidade do teu santuário, e padeces longo assédio
de tribulações. Mas… dar-se-á que presumas no sexo a fonte exclusiva
do amor? Serás também vítima desse fatal engano? O amor é sol divino
a irradiar-se através de todas as magnificências da alma.
24 “Por vezes, somos
privados de sensações que ansiáramos, inibidos de usar as energias criadoras
das formas físicas, a fim de buscarmos patrimônios mais altos do ser;
nem por isso, contudo, tais percalços nos impedem a exteriorização do
sublime sentimento; represar-lhe o curso redundaria em extinguir o Universo.
25 O que tortura a mente
humana, em tais ocasiões é o clima do cárcere organizado por nós mesmos;
amurados no egoísmo feroz, não sabemos perder por alguns dias, para
ganhar na eternidade, nem ceder valores transitórios, para conquistar
os dons definitivos da vida.”
26 Ante a moça que o contemplava,
embevecida, através de espesso véu de lágrimas, o mensageiro prosseguiu:
— “Efetivamente, se não podes partilhar a experiência do homem escolhido,
em face das circunstâncias que te compelem à renúncia, porque não lhe
consagrar o puro amor fraternal, que eleva sempre? Estaríamos, acaso,
impedidos de transformar em irmãos os seres que admiramos? 27
Não deves outrossim esquecer que o noivo perjuro, atualmente belo na
figura fisiológica, vestirá também, mais tarde, o puído traje do cansaço
e da velhice, se em breve não afivelar ao rosto a máscara da enfermidade
e da morte. Conhecerá o desencanto da carne e estimará no silêncio a
procura do espírito. 28
Se o amas, em verdade, porque torturá-lo com o sarcasmo do suicídio,
ao invés de cobrar forças para esperá-lo, ao fim do dia da existência
mortal? Se não podes ser o cântaro de água pura para o viajor querido,
porque não ser o oásis que o aguardará no deserto das desilusões inevitáveis?
Além disto, como chegaste a sentir tão clamoroso desamparo, se também
te aguardamos, ávidos aqui de tua afeição e de teu carinho?”
29 Antonina sorriu, em êxtase,
a despeito do pranto que lhe rolava a flux.
Observando o salutar efeito de suas palavras animadoras, Márcio acariciou-lhe os cabelos, murmurando:
— “Por que razão esperar os rebentos da carne para exemplificar o verdadeiro amor? Jesus não os teve, e, no entanto, todos nos sentimos tutelados de sua infinita abnegação. Prometes, Antonina, modificar as disposições mentais doravante? A mulher digna e generosa, excelsa e cristã, olvida o mal e ama sempre…”
30 Comovidos, vimos a interlocutora
ajoelhar-se de novo, e exclamar solenemente:
— Comprometo-me a modificar minha atitude, em nome de Deus.
4.
Nesse instante, o emissário espalmou as mãos sobre a fronte da enferma,
envolvendo-a em jactos de luz que não tocaram tão somente a matéria
perispirítica, mas se estenderam além, até no corpo denso, fixando-se
particularmente nas zonas do encéfalo, do tórax e dos órgãos feminis.
2 Logo após, Antonina,
empolgada pela mãezinha e pelo companheiro da Espiritualidade superior,
afastou-se para agradável e repousante excursão. Incumbiu-se Calderaro
de auxiliá-la a retomar o veículo pesado nas primeiras horas da manhã
clara.
3 Edificado com as observações
da noite, regressei, em companhia dele, ao quarto da senhorita quase
suicida.
Entre as seis e sete horas, a genitora desencarnada trouxe a filha, em cuja fisionomia fulgurava ignota e incompreensível felicidade.
4 O instrutor ajudou-a
reapossar-se do envoltório fisiológico, cercando-lhe o cérebro de emanações
fluídicas anestesiantes, para que lhe não fosse permitido o júbilo de
recordar, em todas as suas particularidades, a experiência da noite;
5 se guardasse a lembrança
integral, disse Calderaro, provavelmente enlouqueceria de ventura. Destarte,
as alegrias por ela intensamente vividas seriam arquivadas em seu organismo
sob forma de forças novas, estímulos desconhecidos, coragem e satisfação
de procedência ignorada.
6 Com efeito, daí a minutos
Antonina despertou, como que outra criatura; sentia-se inexplicavelmente
reanimada, quase feliz.
Um dos pequenos sobrinhos penetrou o aposento, chamando-a. A generosa tia contemplou-o, enlevada.
7 Alguma energia prodigiosa,
que lhe não era dado conhecer, religara-a ao interesse pela vida. Achou
indizível contentamento no Sol que atravessava a vidraça, bendizia o
quarto humilde onde lutava por atender aos desígnios de Deus, e sorria-se
de haver, n na véspera, pensado em fugir, sem razão, ao aprendizado do
mundo. 8 Não fora aquinhoada
pela Providência com maravilhoso número de bênçãos? Contemplou a encantadora
criança pobremente vestida, a solicitar-lhe a companhia para descerem
ao pequeno jardim, onde flores novas desabrochavam. 9
Que importava insignificante malogro do coração diante dos trabalhos sublimes
que poderia executar, na sua posição de mulher culta e jovem? Os filhinhos
da irmã não lhe pertenciam igualmente? Não seria mais nobre viver para
ser útil, esperando sempre na Inesgotável Misericórdia?
10 — Titia Antonina! Titia
Antonina, vamos! Vamos ver a roseira nova! — Gritava o trêfego menino
de cinco anos, em alegre invite à vida.
Observando-lhe a restauração das forças, vimo-la, sinceramente rejubilados, levantar-se a responder, sorrindo:
— Espera! Já vou, meu filho!
André Luiz
[1] No original: “e corria-se de haver.”