1.
Dentro da noite, defrontamos com aflito coração materno. A entidade,
que nos dirigia a palavra, infundia compaixão pela facies de horrível
sofrimento.
2 — Calderaro! Calderaro!
— Rogou, ansiosa, — ampara minha filha, minha desventurada filha!
— Oh! teria piorado? — Inquiriu o instrutor, evidenciando conhecimento da situação.
— Muito! Muito!… — Gemeram os trementes lábios da mãe aflita; — observo que
enlouqueceu de todo…
— Já perdeu a grande oportunidade?
— Ainda não, — informou a interlocutora, — mas encontra-se à beira de extremo
desastre.
3 Prometeu o orientador correr
à doente em breves minutos, e voltamos à intimidade.
Interessando-me no assunto, o atencioso Assistente sumariou o fato.
— Trata-se de lamentável ocorrência, — explicou-me, bondoso, — na qual
figuram a leviandade e o ódio como elementos perversores. 4
A irmã que se despediu, há momentos, deixou uma filha na Crosta Planetária,
há oito anos. Criada com mimos excessivos, a jovem desenvolveu-se na
ignorância do trabalho e da responsabilidade, não obstante pertencer
a nobilíssimo quadro social. Filha única, entregue desde muito cedo
ao capricho pernicioso, tão logo se achou sem a materna assistência
no Plano carnal, dominou governantes, subornou criadas, burlou a vigilância
paterna e, cercada de facilidades materiais, precipitou-se, aos vinte
anos, nos desvarios da vida mundana. 5
Desprotegida, assim, pelas circunstâncias, não se preparou convenientemente
para enfrentar os problemas do resgate próprio. Sem a proteção espiritual
peculiar à pobreza, sem os abençoados estímulos dos obstáculos materiais,
e tendo, contra as suas necessidades íntimas, a profunda beleza transitória
do rosto, a pobrezinha renasceu, seguida de perto, não por um inimigo
propriamente dito, mas por cúmplice de faltas graves, desde muito desencarnado,
ao qual se vinculara por tremendos laços de ódio, em passado próximo.
6 Foi assim que, abusando
da liberdade, em ociosidade reprovável, adquiriu deveres da maternidade
sem a custódia do casamento. Reconhecendo-se agora nesta situação, aos
vinte e cinco anos, solteira, rica e prestigiada pelo nome da família,
deplora tardiamente os compromissos assumidos e luta, com desespero,
por desfazer-se do filhinho imaturo, o mesmo comparsa do pretérito a
que me referi; esse infeliz, por “acréscimo de misericórdia divina”,
busca destarte aproveitar o erro da ex-companheira para a realização
de algum serviço redentor, com a supervisão dos nossos Maiores.
7 Ante o espanto que inopinadamente
me assaltara, sabendo eu que a reencarnação constitui sempre uma bênção
que se concretiza com a ajuda superior, o Assistente afiançou, tranquilizando-me:
— Deus é o Pai amoroso e sábio que sempre nos converte as próprias
faltas em remédios amargos, que nos curem e fortaleçam. 8
Foi assim que Cecília, a demente que dentro em pouco visitaremos, recolheu
da sua leviandade mesma o extremo recurso, capaz de retificar-lhe a
vida… Entretanto, a infortunada criatura reage ferozmente ao socorro
divino, com uma conduta lastimável e perversa. 9
Coopero nos trabalhos de assistência a ela, de algumas semanas para
cá, em virtude das reiteradas e comoventes intercessões maternas junto
a nossos superiores; todavia, acalento vaga esperança numa reabilitação
próxima. 10 Os laços
entre mãe e filho presuntivo são de amargura e de ódio, consubstanciando
energias desequilibrantes; tais vínculos traduzem ocorrência em que
o espírito feminino há que recolher-se ao santuário da renúncia e da
esperança, se pretende a vitória. 11
Para isso, para nivelar caminhos salvadores e aperfeiçoar sentimentos,
o Supremo Senhor criou o tépido e veludoso ninho do amor materno; contudo,
quando a mulher se rebela, insensível às sublimes vibrações da inspiração
divina, é difícil, senão impossível, executar o programa delineado.
12 A infortunada criatura,
dando asas ao condenável anseio, buscou socorrer-se de médicos que,
amparados de nosso Plano, se negaram a satisfazer-lhe o criminoso intento;
valeu-se, então, de drogas venenosas, das quais vem abusando intensivamente.
A situação mental dela é de lastimável desvario.
13 Findo o breve preâmbulo,
Calderaro continuou:
— Mas, não temos minuto a perder. Visitemo-la.
2.
Decorridos alguns instantes, penetrávamos aposento confortável e perfumado.
2 Estirada no leito, jovem
mulher debatia-se em convulsões atrozes. Ao seu lado, achavam-se a entidade
materna, na Esfera invisível aos olhos carnais, e uma enfermeira terrestre,
dessas que, à força de presenciar catástrofes biológicas e dramas morais,
se tornam menos sensíveis à dor alheia.
3 A genitora da enferma adiantou-se
e informou-nos:
— A situação é muito grave! Ajudem-na, por piedade! Minha presença aqui se limita a impedir o acesso de elementos perturbadores que prosseguem, implacáveis, em ronda sinistra.
4 O Assistente inclinou-se
para a doente, calmo e atencioso, e recomendou-me cooperar no exame
particular do quadro fisiológico.
A paisagem orgânica era das mais comoventes.
A compaixão fraterna dispensar-nos-á da triste narrativa referente ao embrião prestes a ser expulso.
5 Circunscrito à tese de medicação
a mentes alucinadas, cabe-nos apenas dizer que a situação da jovem era
impressionante e deplorável.
Todos os centros endócrinos estavam em desordem, e os órgãos autônomos
trabalhavam aceleradamente. O coração acusava estranha arritmia, e debalde
as glândulas sudoríparas se esforçavam por expulsar as toxinas em verdadeira
torrente invasora. 6
Nos lobos frontais, a sombra era completa; no córtex encefálico, a perturbação
era manifesta; somente nos gânglios basais havia suprema concentração
de energias mentais, fazendo-me perceber que a infeliz criatura se recolhera
no campo mais baixo do ser, dominada pelos impulsos desintegradores
dos próprios sentimentos, transviados e incultos. 7
Dos gânglios basais, onde se aglomeravam as mais fortes irradiações
da mente alucinada, desciam estiletes escuros, que assaltavam as trompas
e os ovários, penetrando a câmara vital quais tenuíssimos venábulos
de treva e incidindo sobre a organização embrionária de quatro meses.
O quadro era horrível de ver-se.
8 Buscando sintonizar-me
com a enferma, ouvia-lhe as afirmativas cruéis, no campo do pensamento:
— Odeio!… Odeio este filho intruso que não pedi à vida!… Expulsá-lo-ei!… Expulsá-lo-ei!…
9 A mente do filhinho, em
processo de reencarnação, como se fora violentada num sono brando, suplicava,
chorosa:
— Poupa-me! Poupa-me! Quero acordar no trabalho! Quero viver e reajustar o
destino… ajuda-me! Resgatarei minha dívida!… Pagar-te-ei com amor… Não
me expulses! Tem caridade!…
10 — Nunca! Nunca!
Amaldiçoado sejas! — Dizia a desventurada, mentalmente; — prefiro morrer
a receber-te nos braços! Envenenas-me a vida, perturbas-me a estrada!
Detesto-te! Morrerás!…
E os raios trevosos continuavam descendo, a jacto continuo.
11 Calderaro ergueu a cabeça
respeitável, encarou-me de frente e perguntou:
— Compreendes a extensão da tragédia?
Respondi afirmativamente, sob indizível impressão.
12 Nesse instante de nossa
angustiosa expectativa, Cecília dirigiu-se com decisão à enfermeira:
— Estou cansada, Liana, muitíssimo cansada, mas exijo a intervenção esta noite!
— Oh! Mas assim, nesse estado?! — Ponderou a outra.
— Sim, sim, — tornou a doente, inquieta; — não quero adiar essa intervenção.
Os médicos negaram-se a faze-la, mas eu conto com a tua dedicação. Meu
pai não pode saber disso, e eu odeio esta situação que terminantemente
não conservarei.
13 Calderaro pousou a destra
na fronte da responsável pelos serviços de enfermagem, no intuito evidente
de transmitir alguma providência conciliatória, e a enfermeira ponderou:
— Tentemos algum repouso, Cecília. Modificarás possivelmente esse plano.
— Não, não, — objetou a imprevidente futura mãe, com mau humor indisfarçável;
— minha resolução é inabalável. Exijo a intervenção esta noite.
14 Mau grado à negativa peremptória,
sorveu o cálice de sedativo que a companheira lhe oferecia, atendendo-nos
a influência indireta.
Consumara-se a medida que o meu instrutor desejava.
3.
Parcialmente desligada do corpo físico, em compulsória modorra, pela
atuação calmante do remédio, Calderaro aplicou-lhe fluidos magnéticos
sobre o disco foto-sensível do aparelho visual, e Cecília passou a ver-nos,
embora imperfeitamente, detendo-se, admirada, na contemplação da genitora.
2 Reparei, contudo, que, se
a mãezinha exuberava copioso pranto de comoção, a filha se mantinha
impassível, não obstante o assombro que se lhe estampara no olhar.
3 A matrona desencarnada avançou,
abraçou-se a ela e pediu, ansiosa:
— Filha querida, venho a ti, para que te não abalances à sinistra aventura que planejas. Reconsidera a atitude mental e harmoniza-te com a vida. Recebe minhas lágrimas, como apelo do coração. Por piedade, ouve-me! Não te precipites nas trevas, quando a mão divina te abre as portas da luz. Nunca é tarde para recomeçar, Cecília, e Deus, em seu infinito devotamento, transforma as nossas faltas em redes de salvação.
4 A mente desvairada da ouvinte
recordou as convenções sociais, de modo vago, como se vivera um minuto
de pesadelo indefinível.
5 A palavra materna, porém,
continuou:
— Socorre-te da consciência, antes de tudo! O preconceito é respeitável,
a sociedade tem os seus princípios justos; entretanto, por vezes, filhinha,
surge um momento na esfera do destino e da dor, em que devemos permanecer
com Deus, exclusivamente. Não abandones a coragem, a fé, o desassombro…
6 A maternidade, iluminada
pelo amor e pelo sacrifício, é feliz em qualquer parte, ainda mesmo
quando o mundo, ignorando a causa de nossas quedas, nos nega recursos
à reabilitação, relegando-nos à reincidência e ao desamparo. 7
Por agora, defrontarás com a tormenta de lágrimas; o temporal da incompreensão
e da intolerância vergastará teu rosto… Contudo, a bonança voltará.
8 O caminho é empedrado
e árido, os espinhos dilaceram, mas terás, de encontro ao coração, um
filhinho amoroso, indicando-te o futuro! Em verdade, Cecília, deverias
erguer teu ninho de felicidade na árvore do equilíbrio, glorificando,
em paz, a realização de cada dia e a bênção de cada noite: entretanto,
não pudeste esperar… 9
Cedeste aos golpes infrenes da paixão, abandonaste o ideal aos primeiros
impulsos do desejo. Ao invés de construir na tranquilidade e na confiança,
em bases seguras, elegeste o caminho perigoso da precipitação. Agora,
é imprescindível evitar o despenhadeiro fatal, contornar a voragem traiçoeira,
agarrando-te ao salva-vidas do supremo dever. 10
Volta, pois, minha filha, à serenidade do princípio, e resigna-te ante
o novo aspecto que imprimiste ao próprio roteiro, aceitando o ministério
da maternidade dolorosa com o sacrifício de encantadoras aspirações.
11 No silêncio e
na obscuridade da proscrição social, muitas vezes logramos a felicidade
de conhecer-nos. O desprezo público, se precipita os mais fracos no
esquecimento de si mesmos, ergue os fortes para Deus, sustentando-os
no trilho anônimo das obrigações humildes, até à montanha da redenção.
12 É provável que
teu pai te amaldiçoe, que os nossos entes mais caros na Terra te menoscabem
e tentem aviltar; no entanto, que martírio não enobrecerá o espírito
disposto ao resgate dos seus débitos, com dedicação ao bem e serenidade
na dor? Não será melhor a coroa de espinhos na fronte do que o monte
de brasas na consciência? 13
O mal pode perder-nos e transviar-nos; o bem retifica sempre. Além disto,
se é certo que o padecimento da vergonha açoitará tua sensibilidade,
a glória da maternidade resplenderá em teu caminho… 14
Tuas lágrimas orvalharão uma flor querida e sublime, que será o teu
filho, carne de tua carne, ser de teu ser. Que não fará no mundo a mulher
que sabe renunciar? A tormenta rugirá, mas sempre fora de teu coração,
porque, lá dentro, no santuário divino do amor, encontrarás em ti mesma
o poder da paz até à vitória…
15 A enferma escutava, quase
indiferente, disposta a não capitular. Recebia os apelos maternos, sem
alteração de atitude. A mãezinha, porém, mobilizando todos os recursos
ao seu alcance, prosseguia após intervalo mais longo:
— Ouve, Cecília! Não te fiques nessa atitude impassível. Não isoles
do cérebro o coração, a fim de que teu raciocínio se beneficie com o
sentimento, de modo a venceres na prova áspera. 16
Não te detenhas em primazias da forma física, nem suponhas que a beleza
espiritual e eterna erga seu templo no corpo de carne, em trânsito para
o pó. A morte virá de qualquer modo, trazendo a realidade que confunde
a ilusão. Não persistas no véu da mentira. Humilha-te na renúncia construtiva,
toma a tua cruz e segue para a compreensão mais alta… 17
No teu madeiro de sofrimento íntimo, ouvirás enternecedoras vozes de
um filhinho abençoado… Se te alancear o abandono do mundo, será ele, junto
de ti, o suave representante da Divindade… Que falta te fará o manto
das fantasias, se dois pequeninos braços de veludo te cinjam, carinhosos
e fiéis, conduzindo-te à renovação para a vida superior?
18 Foi então que Cecília, infundindo-me
assombro pela agressividade, objetou em pensamento:
— Como não me disseste isso antes? Na Terra, sempre satisfazias meus
desejos. Nunca me permitiste o trabalho, favoreceste-me o ócio, fizeste-me
crer em posição mais elevada que a das outras criaturas; incutiste-me
a suposição de que todos os privilégios especiais me eram devidos; não
me preparaste, enfim! 19
Estou sozinha, com um problema atribulativo… Não tenho, agora, coragem
de humilhar-me… Esmolar serviço remunerado não é o ideal que me deste,
e enfrentar a vergonha e a miséria será para mim pior que morrer. Não,
não!… Não desisto, nem mesmo à tua voz que, a despeito de tudo, ainda
amo!… É-me impossível retroceder.
20 A comovedora cena estarrecia.
Observava eu, ali, o milenário conflito da ternura materna com a vida
real.
A venerável matrona chorou com mais amargura, agarrou-se à filha com mais veemência e suplicou:
— Perdoa-me pelo mal que te fiz, querendo-te em demasia… 21
Ó filha querida, nem sempre o amor humano avança vigilante! Por vezes
a cegueira nos compele a erros clamorosos, que só o golpe da morte em
geral expunge. Não consideras, porém, a minha dor? 22
Reconheço minha participação indireta em teu presente infortúnio, mas
entendendo, agora, a extensão e a delicadeza dos deveres maternos, não
desejo que venhas colher espinhos no mesmo lugar onde sofro os resultados
amargos de minha imprevidência. 23
Porque eu haja errado por excesso de ternura, não te desvies por acúmulo
de ódio e de inconformação. Depois do sepulcro, o dia do bem é mais
luminoso, e a noite do mal é, sobremaneira, mais densa e tormentosa.
24 Aceita a humilhação
como bênção, a dor como preciosa oportunidade. Todas as lutas terrenas
chegam e passam; ainda que perdurem, não se eternizam. Não compliques,
pois, o destino. 25
Submeto-me às tuas exprobrações. Merece-as quem, como eu, olvidou a
floresta das realizações para a eternidade, retendo-se voluntariamente
no jardim dos caprichos amenos, onde as flores não se ostentam mais
do que por fugaz minuto. 26
Esqueci-me, Cecília, da enxada benfazeja do esforço próprio, com a qual
devera arrotear o solo de nossa vida, semeando dádivas de trabalho edificante,
e ainda não chorei suficientemente, para redimir-me de tão lastimável
erro. Todavia, confio em ti, esperando que te não suceda o mesmo na
áspera trilha da regeneração. 27
Antes mendigar o pão de cada dia, amargar os remoques da maldade humana,
aí na Terra, que menosprezar o pão das oportunidades de Deus, permitindo
que a crueldade nos avassale o coração. 28
O sofrimento dos vencidos no combate humano é celeiro de luz da experiência.
A Bondade Divina converte as nossas chagas em lâmpadas acesas para a
alma. Bem-aventurados os que chegam à morte crivados de cicatrizes que
denunciam a dura batalha. Para esses, uma perene era de paz fulgurará
no horizonte, porquanto a realidade não os surpreende quando o frio
do túmulo lhes assopra o coração. A verdade se lhes faz amiga generosa;
a esperança e a compreensão lhes serão companheiras fiéis! 29
Retorna, minha filha, a ti mesma; restaura a coragem e o otimismo, mau
grado às nuvens ameaçadoras que te pairam na mente em delírio… Ainda
é tempo! Ainda é tempo!
30 A enferma, contudo, fez
supremo esforço por tornar ao invólucro de carne, pronunciando ríspidas
palavras de negação, inopinadas e ingratas.
Desfazendo-se da influência pacificadora de Calderaro, regressou gradativamente ao campo sensorial, em gritos roucos.
4.
O instrutor aproximou-se da genitora, chorosa, e informou:
— Infelizmente, minha amiga, o processo de loucura por insurgência parece consumado. Confiemo-la, agora, ao poder da Suprema Proteção Divina.
2 Enquanto a entidade materna
se debulhava em lágrimas, a doente, conturbada pelas emissões mentais
em que se comprazia, dirigiu-se à enfermeira, reclamando:
— Não posso! Não posso mais! Não suporto… A intervenção, agora! Não quero perder um minuto!
3 Fixando a companheira, por
alguns instantes, com terrífica expressão, ajuntou:
— Tive um pesadelo horrível… Sonhei que minha mãe voltava da morte e me pedia paciência e caridade! Não, Não!… Irei até ao fim! Preferirei o suicídio, afinal!
4 Inspirada pelo meu orientador,
a enfermeira fez ainda várias ponderações respeitáveis.
Não seria conveniente aguardar mais tempo? Não seria o sonho um providencial aviso? O abatimento de Cecília era enorme. Não se sentiria amparada por uma intervenção espiritual? Julgava, desse modo, oportuno adiar a decisão.
5 A paciente, no entanto,
ficou irredutível. E, com assombro nosso, ante a genitora desencarnada,
em pranto, a operação começou, com sinistros prognósticos para nós,
que observamos a cena, sensibilizadíssimos.
Nunca supus que a mente desequilibrada pudesse infligir tamanho mal ao próprio patrimônio.
6 A desordem do cosmo fisiológico
acentuou-se, instante a instante.
Penosamente surpreendido, prossegui no exame da situação, verificando com espanto que o embrião reagia ao ser violentado, como que aderindo, desesperadamente, às paredes placentárias.
7 A mente do filhinho imaturo
começou a despertar à medida que aumentava o esforço de extração. Os
raios escuros não partiam agora só do encéfalo materno; eram igualmente
emitidos pela organização embrionária, estabelecendo maior desarmonia.
8 Depois de longo e laborioso
trabalho, o entezinho foi retirado afinal…
Assombrado, reparei, todavia, que a ginecologista improvisada subtraía ao vaso feminino somente pequena porção de carne inânime, porque a entidade reencarnante, como se a mantivessem atraída ao corpo materno forças vigorosas e indefiníveis, oferecia condições especialíssimas, adesa, ao campo celular que a expulsava. Semidesperta, num atro pesadelo de sofrimento, refletia extremo desespero; lamentava-se com gritos aflitivos; expedia vibrações mortíferas; balbuciava frases desconexas.
9 Não estaríamos, ali, perante
duas feras terrivelmente algemadas uma à outra? O filhinho que não chegara
a nascer transformara-se em perigoso verdugo do psiquismo materno. Premindo
com impulsos involuntários o ninho de vasos do útero, precisamente na
região onde se efetua a permuta dos sangues materno e fetal, provocou
ele o processo hemorrágico, violento e abundante.
10 Observei mais.
Deslocado indebitamente e mantido ali por forças incoercíveis, o organismo perispirítico da entidade, que não chegara a renascer, alcançou em movimentos espontâneos a zona do coração. Envolvendo os nódulos da aurícula direita, perturbou as vias do estímulo, determinando choques tremendos no sistema nervoso central.
11 Tal situação agravou o fluxo
hemorrágico, que assumiu intensidade imprevista, compelindo a enfermeira
a pedir socorros imediatos, depois de delir, como pôde, os vestígios
de sua falta.
— Odeio-o! Odeio-o! — Clamava a mente materna em delírio, sentindo ainda a presença do filho na intimidade orgânica. — Nunca embalarei um intruso que me lançaria à vergonha!
12 Ambos, mãe e filho, pareciam
agora, por dizer mais exatamente, sintonizados na onda de ódio, porque
a mente dele, exibindo estranha forma de apresentação aos meus olhos,
respondia, no auge da ira:
— Vingar-me-ei! Pagarás ceitil por ceitil! Não te perdoarei!… 13
Não me deixaste retomar a luta terrena, onde a dor, que nos seria comum,
me ensinaria a desculpar-te pelo passado delituoso e a esquecer minhas
cruciantes mágoas… 14
Renegaste a prova que nos conduziria ao altar da reconciliação. Cerraste-me
as portas da oportunidade redentora; entretanto, o maléfico poder, que
impera em ti, habita igualmente minhalma… Trouxeste à tona de minha
razão o lodo da perversidade que dormia dentro em mim. 15
Negas-me o recurso da purificação, mas estamos agora novamente unidos
e arrastar-te-ei para o abismo… Condenaste-me à morte, e, por isso,
minha sentença é igual. 16
Não me deste o descanso, impediste meu retorno à paz da consciência,
mas não ficarás por mais tempo na Terra… Não me quiseste para o serviço
do amor… Portanto, serás novamente minha para a satisfação do ódio.
Vingar-me-ei! Seguirás comigo!
17 Os raios mentais destruidores
cruzavam-se, em horrendo quadro, de Espírito a Espírito.
Enquanto observava a intensificação das toxinas, ao longo de toda a trama celular,
Calderaro orava, em silêncio, invocando o auxílio exterior, ao que me
pareceu. 18 Efetivamente,
daí a instantes; pequena turma de trabalhadores espirituais penetrou
o recinto. O orientador ministrou instruções. Deveriam ajudar a desventurada
mãe, que permaneceria junto da filha infeliz, até à consumação da experiência.
19 Em seguida, o Assistente
convidou-me a sair, acrescentando:
— Verificar-se-á a desencarnação dentro de algumas horas. 20
O ódio, André, diariamente extermina criaturas no mundo, com intensidade
e eficiência mais arrasadoras que as de todos os canhões da Terra troando
a uma vez. É mais poderoso, entre os homens, para complicar os problemas
e destruir a paz, que todas as guerras conhecidas pela Humanidade no
transcurso dos séculos. 21
Não me ouves mera teoria. Viveste conosco, nestes momentos, um fato
pavoroso, que todos os dias se repete na Esfera carnal. Estabelecido
o império de forças tão detestáveis sobre essas duas almas desequilibradas,
que a Providência procurou reunir no instituto da reencarnação, é necessário
confiá-las doravante ao tempo, a fim de que a dor opere os corretivos
indispensáveis.
22 — Oh! — Exclamei
aflito, contemplando o duelo de ambas as mentes torturadas, — como ficarão?
permanecerão entrelaçadas, assim? E por quanto tempo?
Calderaro fitou-me com o acabrunhamento de um soldado valoroso que
perdeu temporariamente a batalha, e informou:
— Agora, nada vale a intervenção direta. Só poderemos cooperar com a oração do amor fraterno, aliada à função renovadora da luta cotidiana. Consumou-se para ambos doloroso processo de obsessão recíproca, de amargas consequências no espaço e no tempo, e cuja extensão nenhum de nós pode prever.
André Luiz