1.
No terceiro dia de trabalho, alegrou-me Tobias com linda surpresa.
Findo o serviço, ao entardecer, de vez que outros se incumbiram da assistência
noturna, fui fraternalmente levado à residência dele, onde me aguardavam
belos momentos de alegria e aprendizado.
2 Logo de entrada,
apresentou-me duas senhoras, uma já idosa e outra bordejando a madureza.
Esclareceu que esta, [a última que foi apresentada,] era sua esposa
e aquela, irmã; Luciana e Hilda, afáveis e generosas, primaram em gentilezas.
3 Reunidos na formosa biblioteca
de Tobias, examinamos volumes maravilhosos na encadernação e no conteúdo
espiritual. n
4 A senhora Hilda,
[a esposa,] convidou-me a visitar o jardim, para que pudesse observar,
de perto, alguns caramanchões de caprichosos formatos. 5
Cada casa, em “Nosso Lar”, parecia especializar-se na cultura de determinadas
flores. Em casa de Lísias, as glicínias e os lírios contavam-se por
centenas; na residência de Tobias, as hortênsias inumeráveis desabrochavam
nos verdes lençóis de violetas. 6
Belos caramanchões de árvores delicadas, recordando o bambu ainda novo,
apresentavam no alto uma trepadeira interessante, cuja especialidade
é unir frondes diversas, à guisa de enormes laços floridos, na verde
cabeleira das árvores, formando gracioso teto.
7 Não sabia traduzir
minha admiração. Embalsamava-se a atmosfera de capitoso perfume. Comentávamos
a beleza da paisagem geral, vista daquele ângulo do Ministério da Regeneração,
quando Luciana, [a que fora a segunda esposa, e agora, irmã Luciana,] nos chamou ao interior, para leve refeição.
8 Encantado com o ambiente
simples, clarinante de fraternidade sincera, não sabia como agradecer
ao generoso anfitrião.
2.
A certa altura da palestra amável, Tobias acrescentou, sorridente:
— O meu amigo, a bem dizer, é ainda novato em nosso Ministério e talvez desconheça o meu caso familiar.
2 Sorriam ao mesmo tempo as
duas senhoras; e, observando-me a silenciosa interpelação, o dono da
casa continuou:
— Aliás, temos numerosos núcleos nas mesmas condições. Imagine que fui casado duas vezes…
3 E, indicando as companheiras
de sala, prosseguiu num gesto de bom humor:
— Creio nada precisar esclarecer quanto às esposas.
— Ah! Sim. — Murmurei extremamente confundido, — quer dizer que as senhoras Hilda e Luciana compartilharam das suas experiências na Terra…
— Isso mesmo, — respondeu tranquilo.
4 Nesse ínterim, a senhora
Hilda tomou a palavra, dirigindo-se a mim:
— Desculpe o nosso Tobias, irmão André. Ele está sempre disposto a falar do passado, quando nos encontramos com alguma visita de recém-chegados da Terra.
5 — Pois não será motivo de
júbilo, — aduziu Tobias bem-humorado, — vencer o monstro do ciúme inferior,
conquistando, pelo menos, alguma expressão de fraternidade real?
6 — De fato, — objetei,
— o problema interessa profundamente a todos nós. Há milhões de pessoas,
nos Círculos do planeta, em estado de segundas núpcias. Como resolver
tão alta questão afetiva, considerando a espiritualidade eterna? 7
Sabemos que a morte do corpo apenas transforma sem destruir. Os laços
da alma prosseguem, através do Infinito. Como proceder? Condenar o homem
ou a mulher que se casaram mais de uma vez? 8
Encontraríamos, porém, milhões de criaturas nessas condições. Muitas
vezes já lembrei, com interesse, a passagem evangélica em que o Mestre
nos promete a vida dos anjos, quando se referiu ao casamento na Eternidade. ( † )
9 — Forçoso é reconhecer,
todavia, com toda a nossa veneração ao Senhor, — atalhou o anfitrião,
bondoso, — que ainda não nos achamos na Esfera dos anjos e, sim, dos
homens desencarnados.
— Mas, como solucionar aqui semelhante situação? — Perguntei.
10 Tobias sorriu e considerou:
— Muito simplesmente; reconhecemos que entre o irracional e o homem
há uma série enorme e gradativa de posições. Assim, também, entre nós outros,
o caminho até o anjo representa imensa distância a percorrer. 11
Ora, como podemos aspirar à companhia de seres angélicos, se ainda não
somos nem mesmo fraternos uns com os outros? Claro que existem caminheiros
de ânimo forte, que se revelam superiores a todos os obstáculos da senda,
por supremo esforço da vontade; mas a maioria não prescinde de pontes
ou do socorro de guardiães caridosos. 12
Em vista dessa verdade, os casos dessa natureza são resolvidos nos alicerces
da fraternidade legítima, reconhecendo-se que o verdadeiro casamento
é de almas e essa união ninguém poderá quebrantar.
3.
Nesse instante, Luciana, que se mantinha silenciosa, interviu, acrescentando:
— Convém explicar, todavia, que tudo isso, felicidade e compreensão, devemos ao espírito de amor e renúncia de nossa Hilda.
2 A senhora Tobias, no entanto,
demonstrando humildade digna, acentuou:
— Calem-se. Nada de qualidades que não possuo. Buscarei sumariar nossa história, a fim de que nosso hóspede conheça meu doloroso aprendizado.
3 E continuou, depois de fixar
um gesto de narradora amável:
— Tobias e eu nos casamos na Terra, quando ainda muito jovens, em obediência
a sagradas afinidades espirituais. Creio desnecessário descrever a felicidade
de duas almas que se unem e se amam verdadeiramente no matrimônio. 4
A morte, porém, que parecia enciumada de nossa ventura, subtraiu-me
do mundo, por ocasião do nascimento do segundo filhinho. Nosso tormento
foi, então, indescritível. Tobias chorava sem remédio, ao passo que
eu me via sem forças para sufocar a própria angústia. 5
Pesados dias de Umbral abateram-se sobre mim. Não tive remédio senão
continuar agarrada ao marido e ao casal de filhinhos, surda a todo esclarecimento
que os amigos espirituais me enviavam, por intuição.
4.
Queria lutar, como a galinha ao lado dos pintainhos. Reconhecia que
o esposo necessitava reorganizar o ambiente doméstico, que os pequeninos
reclamavam assistência maternal. Tornava-se a situação francamente insuportável.
2 Minha cunhada solteira
não tolerava as crianças e a cozinheira apenas fingia dedicação. Duas
amas jovens pautavam toda a conduta pessoal pela insensatez. Não pôde
Tobias adiar a solução justa e, decorrido um ano da nova situação, desposou
Luciana, contrariando meus caprichos. 3
Ah! Se soubesse como me revoltei! Semelhava-me a uma loba ferida. Minha
ignorância deu até para lutar com a pobrezinha, tentando aniquilá-la.
Foi aí que Jesus me concedeu a visita providencial de minha avó materna,
desencarnada havia muitos anos. 4
Chegou ela como quem nada desejava, enchendo-me de surpresa, sentou-se
a meu lado, pôs-me em seguida ao colo, como noutro tempo, e perguntou-me
lacrimosa: — “Que é isso, minha neta? Que papel é o seu na vida? Você
é leoa ou alma consciente de Deus? 5
Pois nossa irmã Luciana serve de mãe a seus filhos funciona como criada
de sua casa, é jardineira do seu jardim, suporta a bílis do seu marido
e não pode assumir o lugar provisório de companheira de lutas, ao lado
dele? 6 É assim que
o seu coração agradece os benefícios divinos e remunera aqueles que
o servem? Quer você uma escrava e despreza uma irmã? Hilda! Hilda! Onde
está a religião do Crucificado que você aprendeu? Oh! Minha pobre neta,
minha pobre neta!…” 7 Abracei-me,
então, em lágrimas, com a velhinha santa e abandonei o antigo ambiente
doméstico, vindo em companhia dela para os serviços de “Nosso Lar”.
Desde essa época, tive em Luciana mais uma filha. 8
Trabalhei, então, intensamente. Consagrei-me ao estudo sério, ao melhoramento
moral de mim mesma, busquei ajudar a todos, sem distinção, em nosso
antigo lar terrestre. 9
Constituiu Tobias uma família nova, que passou a me pertencer, igualmente,
pelos sagrados laços espirituais. 10
Mais tarde, voltou ele, reunindo-se a mim, acompanhado de Luciana, que
veio também ter conosco para nossa completa alegria. E aí tem, meu amigo,
a nossa história…
11 Luciana, contudo, tomou
a palavra e observou:
— Não disse ela, porém, quanto se tem sacrificado, ensinando-me com o exemplo.
— Que dizes, filha? — Perguntou a senhora Tobias, acariciando-lhe a destra.
5.
Luciana sorriu e ajuntou:
— Mas, graças a Jesus e a ela, aprendi que há casamento de amor, de fraternidade,
de provação, de dever, e, no dia em que Hilda me beijou, perdoando-me,
senti que meu coração se libertara desse monstro que é o ciúme inferior.
2 O matrimônio espiritual
realiza-se, alma com alma, representando os demais simples conciliações
indispensáveis à solução de necessidades ou processos retificadores,
embora todos sejam sagrados.
3 — E assim construímos
nosso novo lar, na base da fraternidade legítima, — acrescentou o dono
da casa.
6.
Aproveitando o ligeiro silêncio que se fizera, indaguei:
— Mas como se processa o casamento aqui?
2 — Pela combinação
vibratória, — esclareceu Tobias, atencioso, — ou então, para ser mais
explícito, — pela afinidade máxima ou completa.
3 Incapaz de sopitar a curiosidade,
esqueci a lição de bom-tom e interroguei:
— Mas, qual a posição de nossa irmã Luciana neste caso?
4 Antes, porém, que os cônjuges
espirituais respondessem, foi a própria interessada que explicou:
— Quando desposei Tobias, viúvo, já devia estar certa de que, com todas as
probabilidades, meu casamento seria uma união fraternal, acima de tudo.
5 Foi o que me custou
a compreender. Aliás, é lógico que, se os consortes padecem inquietação,
desentendimento, tristeza, estão unidos fisicamente, mas não integrados
no matrimônio espiritual.
7.
Queria perguntar mais alguma coisa; entretanto, não encontrava palavras
que revelassem ausência de impertinente indiscrição. A senhora Hilda,
contudo, compreendeu-me o pensamento o explicou:
2 — Fique tranquilo. Luciana
está em pleno noivado espiritual. Seu nobre companheiro de muitas etapas
terrenas precedeu-a há alguns anos, regressando ao Círculo carnal. No
ano próximo, ela seguirá igualmente ao seu encontro. Creio que o momento
feliz será em São Paulo.
3 Sorrimos todos alegremente.
Nesse instante, Tobias foi chamado às pressas, para atender um caso grave nas Câmaras de Retificação.
Era preciso, desse modo, encerrar a palestra.
André Luiz
[1] [Vide: Algumas referências ao uso de itens materiais no Mundo Invisível do Plano Espiritual, como edificações providas dos mais diversos objetos, aparelhos, veículos de transporte, etc.]