1.
— A palestra, senhora Laura, — exclamei com interesse, — sugere numerosas
interrogações, relevar-me-á a curiosidade, o abuso…
— Não diga isso, — retrucou, bondosa, — pergunte sempre. Não estou em condições de ensinar; todavia, é sempre fácil informar.
2 Rimo-nos da observação e
indaguei em seguida:
— Como se encara o problema da propriedade na colônia? Esta casa, por exemplo, pertence-lhe?
Ela sorriu e esclareceu:
3 — Tal como se dá
na Terra, a propriedade aqui é relativa. Nossas aquisições são feitas
à base de horas de trabalho. 4
O bônus-hora, no fundo, é o nosso dinheiro. Quaisquer utilidades são
adquiridas com esses cupons, obtidos por nós mesmos, à custa de esforço
e dedicação. 5 As construções
em geral representam patrimônio comum, sob controle da Governadoria;
cada família espiritual, porém, pode conquistar um lar (nunca mais que
um), apresentando trinta mil bônus-hora, o que se pode conseguir com
algum tempo de serviço. 6
Nossa moradia foi conquistada pelo trabalho perseverante de meu esposo,
que veio para a Esfera espiritual muito antes de mim. Dezoito anos estivemos
separados pelos laços físicos, mas sempre unidos pelos elos espirituais.
Ricardo, porém, não descansou. 7
Recolhido ao “Nosso Lar”, depois de certo período de extremas perturbações,
compreendeu imediatamente a necessidade do esforço ativo, preparando-nos
um ninho para o futuro. Quando cheguei, estreamos a habitação que ele
organizara com esmero, acentuando-se nossa ventura. 8
Desde então, meu esposo ministrou-me conhecimentos novos. Minhas lutas
na viuvez haviam sido intensas. Muito moça ainda, com os filhos tenros,
tive de enfrentar serviços rudes. À custa de testemunhos difíceis, proporcionei
aos rebentos de nossa união os valores educativos, de que podia dispor,
habituando-os, porém, muito cedo, aos trabalhos árduos. 9
Compreendi, depois, que a existência laboriosa me livrara das indecisões
e angústias do Umbral, por colocar-me a coberto de muitas e perigosas
tentações. 10 O suor
do corpo ou a preocupação justa, nos campos de atividade honesta, constituem
valiosos recursos para a elevação e defesa da alma. 11
Reencontrar Ricardo, tecer novo ninho de afetos, representava o céu
para mim. Durante anos consecutivos, vivemos a vida de perene ventura,
trabalhando por nossa evolução, unindo-nos cada vez mais, e cooperando
no progresso efetivo dos que nos são afins. Com o correr do tempo, Lísias,
Iolanda e Judite reuniram-se a nós, aumentando nossa felicidade.
12 Após ligeiro intervalo,
em que parecia meditar, minha interlocutora prosseguiu em tom grave:
— Mas a Esfera do globo nos esperava. Se o presente estava cheio de alegria,
o passado chamava a contas, para que o futuro se harmonizasse. 13 Não podíamos
pagar à Terra com bônus-hora e sim com o suor justo, devido aos seus trabalhos.
Dada a nossa boa vontade, aclarava-se-nos a visão, relativamente ao
pretérito doloroso. A lei do ritmo exigia, então, nossa volta.
2.
Aquelas afirmativas causavam-me viva impressão. Era a primeira vez que
se feria tão fundo aos meus ouvidos, na colônia, o assunto referente
a encarnações pregressas.
2 — Senhora Laura! — Exclamei,
interrompendo-a, — permita, por obséquio, um aparte. Perdoe a curiosidade;
no entanto, até agora, ainda não pude conhecer mais detidamente o que
se relaciona com o meu passado espiritual. Não estou isento dos laços
físicos? Não atravessei o rio da morte? A senhora recordou o passado,
logo após sua vinda, ou esperou o concurso do tempo?
3 — Sim, — replicou,
sorridente; — antes de tudo, é indispensável nos despojarmos das impressões
físicas. As escamas da inferioridade são muito fortes. É preciso grande
equilíbrio para podermos recordar, edificando. 4
Em geral, todos temos erros clamorosos, nos ciclos da vida eterna. Quem
lembra o crime cometido costuma considerar-se o mais desventurado do
Universo; e quem recorda o crime de que foi vítima, considera-se em
conta de infeliz, do mesmo modo. 5
Portanto, somente a alma, muito segura de si, recebe tais atributos
como realização espontânea. As demais são devidamente controladas no
domínio das reminiscências, e, se tentam burlar esse dispositivo da
lei, não raro tendem ao desequilíbrio e à loucura.
3.
— Mas a senhora recordou o passado de maneira natural? — Perguntei.
— Explico-me, — respondeu bondosamente; — quando se me aclarou a visão
interior, as lembranças vagas me causavam perturbações de vulto. 2
Coincidiu que meu marido partilhava o mesmo estado dalma. Resolvemos
ambos consultar o assistente Longobardo. Esse amigo, depois de minucioso
exame das nossas impressões, nos encaminhou aos magnetizadores do Ministério
do Esclarecimento. 3
Recebidos com carinho, tivemos acesso em primeiro lugar à Seção do Arquivo,
onde todos nós temos anotações particulares. Aconselharam-nos os técnicos
daquele Ministério a ler nossas próprias memórias, durante dois anos,
sem prejuízo de nossa tarefa do Auxílio, abrangendo o período de três
séculos. 4 O chefe
do serviço de Recordações não nos permitiu a leitura de fases anteriores,
declarando-nos incapazes de suportar as lembranças correspondentes a
outras épocas.
5 — E bastou a leitura para
que se sentisse na posse das reminiscências? — Atalhei, curioso.
— Não. A leitura apenas informa. Depois de longo período de meditação
para esclarecimento próprio, e com surpresas indescritíveis, fomos submetidos
a determinadas operações psíquicas, a fim de penetrar os domínios emocionais
das recordações. 6
Os Espíritos técnicos no assunto nos aplicaram passes no cérebro, despertando
certas energias adormecidas… Ricardo e eu ficamos, então, senhores de
trezentos anos de memória integral. Compreendemos, então, quão grande
é ainda o nosso débito para com as organizações no planeta!…
7 — E onde está nosso irmão
Ricardo? Como estimaria conhecê-lo!… — Exclamei sob forte impressão.
A progenitora de Lísias meneou significativamente a cabeça e murmurou:
— Em vista de nossas observações referentes ao passado, combinamos novo encontro
nas Esferas da crosta. 8
Temos trabalho, muito trabalho, na Terra. Desse modo, Ricardo partiu
há três anos. Quanto a mim, seguirei dentro de breves dias. Aguardo
apenas a chegada de Teresa, para deixá-la junto aos nossos.
9 E de olhar vago, como se
a mente estivesse muito longe, ao lado da filha ainda retida na Terra,
a senhora Laura acentuou:
— A mãe de Eloísa não tardará. A passagem dela através do Umbral será somente
de algumas horas, em vista dos seus profundos sacrifícios, desde a infância.
10 Pelo muito que sofreu
não precisará dos tratamentos da Regeneração. Poderei, portanto, transmitir-lhe
minhas obrigações no Auxílio e partir sossegada. O Senhor não nos esquecerá.
André Luiz