1.
— Sua neta não vem à mesa para as refeições? perguntei à dona da casa,
ensaiando palestra mais íntima.
— Por enquanto, alimenta-se a sós, — esclareceu dona Laura, — a tolinha continua
nervosa, abatida. Aqui, não trazemos à mesa qualquer pessoa que se manifeste
perturbada ou desgostosa. A neurastenia e a inquietação emitem fluidos
pesados e venenosos, que se misturam automaticamente às substâncias
alimentares. 2 Minha
neta demorou-se no Umbral quinze dias, em forte sonolência, assistida
por nós. Deveria ingressar nos pavilhões hospitalares, mas, afinal,
veio submeter-se aos meus cuidados diretos.
3 Manifestei desejo
de visitar a recém-chegada do planeta. Seria muito interessante ouvi-la.
Há quanto tempo estava sem notícias diretas da existência comum!?…
A senhora Laura não se fez rogada quando lhe dei a conhecer meu desejo.
4 Demandamos um quarto confortável
e muito amplo. Uma jovem muito pálida repousava em cômoda poltrona.
Surpreendeu-se vivamente ao ver-me.
— Este amigo, Eloísa, — explicou a progenitora de Lísias, indicando-me, — é um irmão nosso que voltou da Esfera Física, há pouco tempo.
5 A moça fitou-me curiosa,
embora os olhos perdidos nas fundas olheiras traduzissem grande esforço
para concentrar atenção. Cumprimentou-me, esboçando vago sorriso, dando-me
eu a conhecer, por minha vez.
— Deve estar cansada, — observei.
6 Antes, porém, que ela respondesse,
adiantou-se a senhora Laura, procurando subtraí-la a esforços difíceis:
— Eloísa tem estado inquieta, aflita. Em parte, justifica-se. A tuberculose
foi longa e deixou-lhe traços profundos; entretanto, não se pode prescindir,
a tempo algum, do otimismo e da coragem.
7 Vi a jovem arregalar os
olhos muito negros, como a reter o pranto, mas em vão. O tórax começava
a arfar-lhe violentamente e, colando o lenço ao rosto, não conseguia
conter os soluços angustiosos.
8 — Tolinha! — Disse
a meiga senhora abraçando-a, — é necessário reagir contra isso. Estas
impressões são os resultados da educação religiosa deficiente, nada
mais. Sabes que tua mãe não se demorará e que não podes contar com a
fidelidade do noivo, que, de modo algum, está preparado a te oferecer
uma sincera dedicação espiritual na Terra. 9
Ele ainda está longe do espírito sublime do amor iluminado. Naturalmente,
desposará outra e deves habituar-te a esta convicção. Nem seria justo
exigir-lhe a vinda brusca.
10 Sorrindo maternalmente,
a senhora Laura acrescentou:
— Admitamos que viesse, forçando a lei. Não seria mais duro o sofrimento? Não
pagarias caro a cooperação que houvesses desenvolvido nesse particular?
11 Não te faltarão amizades
carinhosas, nem colaboração fraternal, para que te equilibres aqui.
E se amas, de fato, ao rapaz, deves procurar harmonia para beneficiá-lo
mais tarde. Além disso, tua mãe não tarda a chegar.
12 Penalizou-me o pranto copioso
da jovem. Procurei estabelecer novo rumo à conversação, tentando subtraí-la
à crise de lágrimas.
— Donde vem você, Eloísa? — Interroguei.
A mãe de Lísias, agora calada, parecia igualmente desejosa de vê-la desembaraçar-se.
Após longos instantes em que enxugava os olhos lacrimosos, a moça respondeu:
— Do Rio de Janeiro.
13 — Mas não deve chorar assim,
— objetei. — Você é muito feliz. Desencarnou há poucos dias, está com
os seus parentes e não conheceu tempestades na grande viagem…
14 Ela pareceu reanimar-se,
falando mais calma:
— Não imagina, porém, quanto tenho sofrido. Oito meses de luta com a tuberculose, não obstante os tratamentos… a mágoa de haver transmitido a moléstia a minha carinhosa mãe… Além disso, o que padeceu por minha causa o pobre noivo, é inenarrável…
15 — Ora, ora, não diga isso,
— observou a senhora Laura a sorrir. — Na Terra temos sempre a ilusão
de que não há dor maior que a nossa. Pura cegueira: há milhões de criaturas
afrontando situações verdadeiramente cruéis, comparadas às nossas experiências.
— Arnaldo, porém, vovó, ficou sem consolo, desesperado. Tudo isso dá que pensar, — acentuou contrafeita.
16 — E acreditas
sinceramente nessa impressão? perguntou a matrona com inflexão de carinho.
Observei teu ex-noivo, diversas vezes, no curso da tua enfermidade.
Era natural que ele se comovesse tanto, vendo-te o corpo reduzido a
frangalhos; mas não está preparado para compreender um sentimento puro.
Reconfortar-se-á muito depressa. Amor iluminado não é para qualquer
criatura humana. 17
Conserva, portanto, o teu otimismo. Poderás auxiliá-lo, sem dúvida,
muitas vezes, mas no que concerne à união conjugal, quando puderes excursionar
às Esferas do planeta, em nossa companhia, já o encontrarás casado com
outra.
18 Admirado por minha vez,
notei a surpresa dolorosa de Eloísa. Não sabia a convalescente como
portar-se ante a serenidade e o bom senso da avó.
— Será possível?
19 A genitora de Lísias esboçou
um gesto extremamente carinhoso e falou:
— Não sejas teimosa, nem queiras desmentir-me. Vendo que a enferma parecia tomar a atitude íntima de quem deseja provas, a senhora Laura insistiu, muito meiga:
20 — Não te recordas da Maria
da Luz, a colega que te levava flores todos os domingos? Pois note:
quando o médico anunciou, em caráter confidencial, a impossibilidade
de restabelecer-te o corpo físico, Arnaldo, embora muito magoado, começou
a envolvê-la em vibrações mentais diferentes. Agora que aqui estás,
não demorarão muito as resoluções novas.
— Ah! Que horror, vovó!
21 — Horror, por quê? É preciso
te habituares a considerar as necessidades alheias. Teu noivo é homem
comum, não está alertado para as belezas sublimes do amor espiritual.
Não podes operar milagres nele, por muito que o ames. A descoberta de
si mesmo é apanágio de cada um. Arnaldo conhecerá mais tarde a beleza
do teu idealismo; mas, por agora, é preciso entregá-lo às experiências
de que necessita.
— Não me conformo! — Clamou a jovem, chorando, — justamente Maria da Luz, a amiga que sempre julguei fidelíssima…
22 A senhora Laura, todavia,
sorriu e falou, cautelosa:
— Não será, porém, mais agradável confiá-lo aos cuidados de uma criatura irmã? Maria da Luz será sempre tua amiga espiritual, ao passo que outra mulher talvez te dificultasse, mais tarde, o acesso ao coração dele.
23 Eu estava eminentemente
surpreendido. Eloísa prorrompera em soluços. A bondosa senhora percebeu-me
a intranquilidade e, no propósito talvez de orientar tanto a neta quanto
a mim, esclareceu sensatamente:
— Sei a causa do teu pranto, filhinha: nasce da terra inculta do nosso milenário egoísmo, da nossa renitente vaidade humana. Entretanto, a vovó não te fala para ferir, mas para acordar.
24 Enquanto Eloísa chorava,
a mãe de Lísias convidou-me novamente à sala de estar, considerando
que a doente necessitava de repouso.
25 Ao sentarmo-nos, falou em
tom confidencial:
— Minha neta chegou profundamente fatigada. Prendeu o coração, demasiadamente, nas teias do amor-próprio. A rigor, o lugar dela seria em qualquer dos nossos hospitais; entretanto, o Assistente Couceiro julgou melhor situá-la junto ao nosso carinho. Isso, aliás, é muito do meu agrado, porque minha querida Teresa, sua mãe, está a chegar. Um pouco de paciência e atingiremos a solução justa. Questão de tempo e serenidade.
André Luiz