1.
No dia imediato, após a oração do crepúsculo, Clarêncio me procurou
em companhia do atencioso visitador.
Fisionomia a irradiar generosidade, perguntou, abraçando-me:
Como vai? Melhorzinho?
2 Esbocei o gesto do enfermo
que se sente acariciado na Terra, amolecendo as fibras emotivas. No mundo,
às vezes, o carinho fraterno é mal interpretado. Obedecendo ao velho
vício, comecei a explicar-me, enquanto os dois benfeitores se sentavam
comodamente a meu lado:
3 — Não posso negar que esteja
melhor; entretanto, sofro intensamente. Muitas dores na zona intestinal,
estranhas sensações de angústia no coração. Nunca supus fosse capaz
de tamanha resistência, meu amigo. Ah! Como tem sido pesada a minha
cruz!… Agora que posso concatenar ideias, creio que a dor me aniquilou
todas as forças disponíveis…
4 Clarêncio ouvia, atencioso,
demonstrando grande interesse pelas minhas lamentações, sem o menor
gesto que denunciasse o propósito de intervir no assunto. Encorajado
com essa atitude, continuei:
5 — Além do mais,
meus sofrimentos morais são enormes e inexprimíveis. Amainada a tormenta
exterior com as socorros recebidos, volto agora às tempestades íntimas.
Que terá sido feito de minha esposa, de meus filhos? Teria o meu primogênito
conseguido progredir, segundo meu velho ideal? E as filhinhas? 6
Minha desventurada Zélia muitas vezes afirmou que morreria de saudades,
se um dia eu lhe faltasse. Admirável esposa! Ainda lhe sinto as lágrimas
dos momentos derradeiros. Não sei desde quando vivo o pesadelo da distância…
Continuadas dilacerações roubaram-me a noção do tempo. Onde estará minha
pobre companheira? Chorando junto às cinzas do meu corpo, ou nalgum
recanto escuro das regiões da morte? 7
Oh! Minha dor é muito amarga! Que terrível destino o do homem penhorado
no devotamento à família! Creio que raras criaturas terão padecido tanto
quanto eu!… No planeta, vicissitudes, desenganos, doenças, incompreensões
e amarguras, abafando escassas notas de alegria; depois, os sofrimentos
da morte do corpo. 8
Em seguida, martirizações no além-túmulo! Que será, então, a vida? Sucessivo
desenrolar de misérias e lágrimas? Não haverá recurso à semeadura da
paz? Por mais que deseje firmar-me no otimismo, sinto que a noção de
infelicidade me bloqueia o espírito, como terrível cárcere do coração.
Que desventurado destino, generoso benfeitor!…
9 Chegado a essa altura, o
vendaval da queixa me conduzira o barco mental ao oceano largo das lágrimas.
Clarêncio, contudo, levantou-se sereno e falou sem afetação:
— Meu amigo, deseja você, de fato, a cura espiritual?
10 Ao meu gesto afirmativo,
continuou:
— Aprenda, então, a não falar excessivamente de si mesmo, nem comente
a própria dor. Lamentação denota enfermidade mental e enfermidade de
curso laborioso e tratamento difícil. É indispensável criar pensamentos
novos e disciplinar os lábios. Somente conseguiremos equilíbrio, abrindo
o coração ao Sol da Divindade. 11
Classificar o esforço necessário de imposição esmagadora, enxergar padecimentos
onde há luta edificante, sói identificar indesejável cegueira dalma.
12 Quanto mais utilize
o verbo por dilatar considerações dolorosas, no círculo da personalidade,
mais duros se tornarão os laços que o prendem a lembranças mesquinhas.
13 O mesmo Pai que
vela por sua pessoa, oferecendo-lhe teto generoso, nesta casa, atenderá
aos seus parentes terrestres. Devemos ter nosso agrupamento familiar
como sagrada construção, mas sem esquecer que nossas famílias são seções
da Família universal, sob a Direção Divina. 14
Estaremos a seu lado para resolver dificuldades presentes e estruturar
projetos de futuro, mas não dispomos do tempo para voltar a zonas estéreis
de lamentação. 15 Além
disso, temos, nesta colônia, o compromisso de aceitar o trabalho mais
áspero como bênção de realização, considerando que a Providência desborda
amor, enquanto nós vivemos onerados de dívidas. Se deseja permanecer
nesta casa de assistência, aprenda a pensar com justiça.
16 Nesse ínterim, secara-se-me
o pranto e, chamado a brios pelo generoso instrutor, assumi diversa
atitude, embora envergonhado da minha fraqueza.
17 — Não disputava
você, na carne, — prosseguiu Clarêncio, bondoso, — as vantagens naturais,
decorrentes das boas situações? Não estimava a obtenção de recursos
lícitos, ansioso de estender benefícios aos entes amados? Não se interessava
pelas remunerações justas, pelas expressões de conforto, com possibilidades
de atender à família? 18
Aqui, o programa não é diferente. Apenas divergem os detalhes. Nos Círculos
carnais, a convenção e a garantia monetária; aqui, o trabalho e as aquisições
definitivas do Espírito imortal. 19
Dor, para nós, significa possibilidade de enriquecer a alma; a luta
constitui caminho para a divina realização. Compreendeu a diferença?
20 As almas débeis,
frente ao serviço, deitam-se para se queixar aos que passam; as fortes,
porém, recebem o serviço como patrimônio sagrado, na movimentação do
qual se preparam, a caminho da perfeição. 21
Ninguém lhe condena a saudade justa, nem pretende estancar sua fonte
de sentimentos sublimes. Acresce notar, todavia, que o pranto da desesperação
não edifica o bem. Se ama, em verdade, a família terrena, é preciso
bom ânimo para lhe ser útil.
22 Fez-se longa pausa. A palavra
de Clarêncio levantara-me para elucubrações mais sadias.
Enquanto meditava a sabedoria da valiosa advertência, meu benfeitor, qual o pai que esquece a leviandade dos filhos para recomeçar serenamente a lição, tornou a perguntar com um belo sorriso:
— Então, como passa? Melhor?
23 Contente por me sentir desculpado,
à maneira da criança da que deseja aprender, respondi, confortado:
— Vou bem melhor, para melhor compreender a Vontade Divina.
André Luiz