1.
Embora transportado à maneira de ferido comum, lobriguei o quadro confortante
que se desdobrava à minha vista.
Clarêncio, que se apoiava num cajado de substância luminosa, deteve-se à frente de grande porta encravada em altos muros, cobertos de trepadeiras floridas e graciosas. Tateando um ponto da muralha, fez-se longa abertura, através da qual penetramos, silenciosos.
2 Branda claridade inundava
ali todas as coisas. Ao longe, gracioso foco de luz dava a ideia de
um pôr do sol em tardes primaveris. À medida que avançávamos, conseguia
identificar preciosas construções, situadas em extensos jardins.
3 Ao sinal de Clarêncio, os
condutores depuseram, devagarinho, a maca improvisada. A meus olhos
surgiu, então, a porta acolhedora de alvo edifício, à feição de grande
hospital terreno. Dois jovens, envergando túnicas de alvo linho, acorreram
pressurosos ao chamado de meu benfeitor, e quando me acomodavam num
leito de emergência, por me conduzirem cuidadosamente ao interior,
ouvi o generoso ancião recomendar, carinhoso:
— Guardem nosso tutelado no pavilhão da direita. Esperam agora por mim. Amanhã cedo voltarei a vê-lo.
4 Enderecei-lhe um olhar de
gratidão, ao mesmo tempo que era conduzido a confortável aposento de
amplas proporções, ricamente mobilado, onde me ofereceram leito acolhedor.
5 Envolvendo os dois enfermeiros
na vibração do meu reconhecimento, esforcei-me por lhes dirigir a palavra,
conseguindo dizer por fim:
— Amigos, por quem sois, explicai-me em que novo mundo me encontro… De que estrela me vem, agora, esta luz confortadora e brilhante?
6 Um deles afagou-me a fronte,
como se fora conhecido pessoal de longo tempo e acentuou:
— Estamos nas Esferas espirituais vizinhas da Terra, e o Sol que nos ilumina,
presentemente, é o mesmo que nos provia o corpo físico. Aqui, entretanto,
nossa percepção visual é muito mais rica. 7
A estrela que o Senhor acendeu para os nossos trabalhos terrestres é
mais preciosa e bela do que a supomos quando no Círculo carnal. 8 Nosso Sol é a divina matriz
da vida, e a claridade que irradia provém do Autor da Criação.
9 Meu ego, como que
absorvido em onda de infinito respeito, fixou a luz branda que invadia
o quarto, através das janelas, e perdi-me no curso de profundas cogitações.
10 Recordei, então,
que nunca fixara o Sol, nos dias terrestres, meditando na imensurável
bondade d’Aquele que no-lo concede para o caminho eterno da vida. Semelhava-me
assim ao cego venturoso, que abre os olhos para a Natureza sublime,
depois de longos séculos de escuridão.
11 A essa altura, serviram-me
caldo reconfortante, seguido de água muito fresca, que me pareceu portadora
de fluidos divinos. Aquela reduzida porção de líquido reanimava-me inesperadamente.
Não saberia dizer que espécie de sopa era aquela; se alimentação sedativa,
se remédio salutar. Novas energias amparavam-me a alma, profundas comoções
vibravam-me no espírito.
2.
Minha maior emoção, todavia, reservava-se para instantes depois.
2 Mal não saíra da
consoladora surpresa, divina melodia penetrou quarto a dentro, parecendo
suave colmeia de sons a caminho das Esferas superiores. Aquelas notas
de maravilhosa harmonia atravessavam-me o coração. Ante meu olhar indagador,
o enfermeiro, que permanecia ao lado, esclareceu, bondoso:
— É chegado o crepúsculo em “Nosso Lar”. Em todos os núcleos desta colônia de trabalho, consagrada ao Cristo, há ligação direta com as preces da Governadoria.
3 E enquanto a música embalsamava
o ambiente, despediu-se, atencioso:
— Agora, fique em paz. Voltarei logo após a oração.
4 Empolgou-me ansiedade
súbita.
— Não poderei acompanhar-vos? — Perguntei, suplicante.
— Está ainda fraco, — esclareceu, gentil, — todavia, caso sinta-se disposto…
5 Aquela melodia renovava-me
as energias profundas. Levantei-me vencendo dificuldades e agarrei-me
ao braço fraternal que se me estendia. Seguindo vacilante, cheguei a
enorme salão, onde numerosa assembleia meditava em silêncio, profundamente
recolhida. 6 Da abóbada
cheia de claridade brilhante, pendiam delicadas e flóreas guirlandas,
que vinham do teto à base, formando radiosos símbolos de Espiritualidade
Superior. 7 Ninguém
parecia dar conta da minha presença, ao passo que mal dissimulava eu
a surpresa inexcedível. Todos os circunstantes, atentos, pareciam aguardar
alguma coisa. 8 Contendo
a custo numerosas indagações que me esfervilhavam na mente, notei que
ao fundo, em tela gigantesca, desenhava-se prodigioso quadro de luz
quase feérica. 9 Obedecendo
a processos adiantados de televisão, surgiu o cenário de templo maravilhoso.
Sentado em lugar de destaque, um ancião coroado de luz fixava o Alto,
em atitude de prece, envergando alva túnica de irradiações resplandecentes.
10 Em plano inferior,
setenta e duas figuras pareciam acompanhá-lo em respeitoso silêncio.
Altamente surpreendido, reparei Clarêncio participando da assembleia,
entre os que cercavam o velhinho refulgente.
11 Apertei o braço do enfermeiro
amigo, e, compreendendo ele que minhas perguntas não se fariam esperar,
esclareceu em voz baixa, que mais se assemelhava a leve sopro:
— Conserve-se tranquilo. Todas as residências e instituições de “Nosso Lar” estão orando com o Governador, através da audição e visão a distância. Louvemos o Coração Invisível do Céu.
12 Mal terminara
a explicação, as setenta e duas figuras começaram a cantar harmonioso
hino, repleto de indefinível beleza. A fisionomia de Clarêncio, no círculo
dos veneráveis companheiros, figurou-se-me tocada de mais intensa luz.
O cântico celeste constituía-se de notas angelicais, de sublimado reconhecimento.
13 Pairavam no recinto
misteriosas vibrações de paz e de alegria e, quando as notas argentinas
fizeram delicioso staccato, desenhou-se ao longe, em plano elevado,
um coração maravilhosamente azul, n
com estrias douradas. Cariciosa música, em seguida, respondia aos louvores,
procedente talvez de Esferas distantes. 14
Foi aí que abundante chuva de flores azuis se derramou sobre nós; mas,
se fixávamos os miosótis celestiais, não conseguíamos detê-los nas mãos.
As corolas minúsculas desfaziam-se de leve, ao tocar-nos a fronte, experimentando
eu, por minha vez, singular renovação de energias ao contato das pétalas
fluídicas que me balsamizavam o coração.
15 Terminada a sublime
oração, regressei ao aposento de enfermo, amparado pelo amigo que me
atendia de perto. Entretanto, não era mais o doente grave de horas antes.
A primeira prece coletiva, em “Nosso Lar”, operara em mim visceral transformação.
Conforto inesperado envolvia-me a alma. 16
Pela primeira vez, depois de anos consecutivos de sofrimento, o pobre
coração, saudoso e atormentado, à maneira do cálice muito tempo vazio,
enchera-se de novo das gotas generosas do licor da esperança.
André Luiz
[1] Imagem simbólica formada pelas vibrações mentais dos habitantes da colônia. — NOTA DO AUTOR ESPIRITUAL.