1.
No dia imediato, após reparador e profundo repouso, experimentei a bênção
radiosa do Sol amigo, qual suave mensagem ao coração. Claridade reconfortante
atravessava ampla janela, inundando o recinto de cariciosa luz. 2
Sentia-me outro. Energias novas tocavam-me o íntimo. Tinha a impressão
de sorver a alegria da vida, a longos haustos. 3
N’alma, apenas um ponto sombrio, — a saudade do lar, o apego à família
que ficara distante. Numerosas interrogações pairavam-me na mente, mas
tão grande era a sensação de alívio que sossegava o espírito, longe
de qualquer interpelação.
4 Quis levantar-me, gozar
o espetáculo da Natureza cheia de brisas e de luz, mas não o consegui
e concluí que, sem a cooperação magnética do enfermeiro, tornava-se-me
impossível deixar o leito.
5 Não voltara a mim das surpresas
consecutivas, quando se abriu a porta e vi entrar Clarêncio acompanhado
por simpático desconhecido. Cumprimentaram, atenciosos, desejando-me
paz. Meu benfeitor da véspera indagou do meu estado geral. Acorreu o
enfermeiro, prestando informações.
6 Sorridente, o velhinho amigo
apresentou-me o companheiro. Tratava-se, disse, do irmão Henrique de
Luna, do Serviço de Assistência Médica da colônia espiritual. Trajado
de branco, traços fisionômicos irradiando enorme simpatia, Henrique
auscultou-me demoradamente, sorriu e explicou:
— É de lamentar que tenha vindo pelo suicídio. Enquanto Clarêncio permanecia sereno, senti que singular assomo de revolta me borbulhava no íntimo.
7 Suicídio? Recordei as acusações
dos seres perversos das sombras. Não obstante o cabedal de gratidão
que começava a acumular, não calei a incriminação.
— Creio haja engano, — asseverei, melindrado, — meu regresso do mundo não teve essa causa. Lutei mais de quarenta dias, na Casa de Saúde, tentando vencer a morte. Sofri duas operações graves, devido a oclusão intestinal…
8 — Sim, — esclareceu
o médico, demonstrando a mesma serenidade superior, — mas a oclusão
radicava-se em causas profundas. Talvez o amigo não tenha ponderado
bastante. 9 O organismo
espiritual apresenta em si mesmo a história completa das ações praticadas
no mundo.
10 E inclinando-se,
atencioso, indicava determinados pontos do meu corpo:
— Vejamos a zona intestinal, — exclamou; — a oclusão derivava de elementos
cancerosos, e estes, por sua vez, de algumas leviandades do meu estimado
irmão, no campo da sífilis. 11
A moléstia talvez não assumisse características tão graves, se o seu
procedimento mental no planeta estivesse enquadrado nos princípios da
fraternidade e da temperança. Entretanto, seu modo especial de conviver,
muita vez exasperado e sombrio, captava destruidoras vibrações naqueles
que o ouviam. 12 Nunca
imaginou que a cólera fosse manancial de forças negativas para nós mesmos?
A ausência de autodomínio, a inadvertência no trato com os semelhantes,
aos quais muitas vezes ofendeu sem refletir, conduziam-no frequentemente
à esfera dos seres doentes e retrógrados. Tal circunstância agravou,
de muito, o seu estado físico.
13 Depois de longa pausa, em
que me examinava atentamente, continuou:
— Já observou, meu amigo, que seu fígado foi maltratado pela sua própria ação; que os rins foram esquecidos, com terrível menosprezo às dádivas sagradas?
14 Singular desapontamento
invadira-me o coração. Parecendo desconhecer a angústia que me oprimia,
continuava o médico, esclarecendo:
— Os órgãos do corpo somático possuem incalculáveis reservas, segundo os desígnios do Senhor. O meu amigo, no entanto, iludiu excelentes oportunidades, esperdiçando patrimônios preciosos da experiência física.
15 A longa tarefa, que lhe
foi confiada pelos Maiores da Espiritualidade Superior, foi reduzida
a meras tentativas de trabalho que não se consumou. Todo o sistema
gástrico foi destruído à custa de excessos de alimentação e bebidas
alcoólicas, aparentemente sem importância. Devorou-lhe a sífilis energias
essenciais. Como vê, o suicídio é incontestável.
2.
Meditei nos problemas dos caminhos humanos, refletindo nas oportunidades
perdidas. Na vida humana, conseguia ajustar numerosas máscaras ao rosto,
talhando-as conforme as situações. 2
Aliás, não poderia supor, noutro tempo, que me seriam pedidas contas
de episódios simples, que costumava considerar como fatos sem maior
significação. Conceituara, até ali, os erros humanos, segundo os preceitos
da criminologia. Todo acontecimento insignificante, estranho aos códigos,
entraria na relação de fenômenos naturais. 3
Deparava-se-me, porém, agora, outro sistema de verificação das faltas
cometidas. Não me defrontavam tribunais de tortura, nem me surpreendiam
abismos infernais; contudo, benfeitores sorridentes comentavam-me as
fraquezas como quem cuida de uma criança desorientada, longe das vistas
paternas. 4 Aquele
interesse espontâneo, contudo, feria-me a vaidade de homem. Talvez
que, visitado por figuras diabólicas a me torturarem, de tridente nas
mãos, encontrasse forças para tornar a derrota menos amarga. Todavia,
a bondade exuberante de Clarêncio, a inflexão de ternura do médico,
a calma fraternal do enfermeiro, penetravam-me fundo o espírito. 5
Não me dilacerava o desejo de reação; doía-me a vergonha. E chorei.
Rosto entre as mãos, qual menino contrariado e infeliz, pus-me a soluçar
com a dor que me parecia irremediável. Não havia como discordar. Henrique
de Luna falava com sobejas razões. 6
Por fim, abafando os impulsos vaidosos, reconheci a extensão de minhas
leviandades de outros tempos. A falsa noção da dignidade pessoal cedia
terreno à justiça. Perante minha visão espiritual só existia, agora,
uma realidade torturante: era verdadeiramente um suicida, perdera o
ensejo precioso da experiência humana, não passava de náufrago a quem
se recolhia por caridade.
7 Foi então que o generoso
Clarêncio, sentando-se no leito, a meu lado, afagou-me paternalmente
os cabelos e falou comovido:
— Oh! Meu filho, não te lastimes tanto. Busquei-te atendendo à intercessão
dos que te amam, dos Planos mais altos. Tuas lágrimas atingem seus corações.
Não desejas ser grato, mantendo-te tranquilo no exame das próprias faltas?
Na verdade, tua posição é a do suicida inconsciente; mas é necessário
reconhecer que centenas de criaturas se ausentam, diariamente da Terra,
nas mesmas condições. 8
Acalma-te, pois. Aproveita os tesouros do arrependimento, guarda a bênção
do remorso, embora tardio, sem esquecer que a aflição não resolve problemas.
9 Confia no Senhor
e em nossa dedicação fraternal. Sossega a alma perturbada, porque muitos
de nós outros já perambulamos igualmente nos teus caminhos.
10 Ante a generosidade que
transbordava dessas palavras, mergulhei a cabeça em seu colo paternal
e chorei longamente.
André Luiz