J. Herculano Pires
Este é um livro diferente na bibliografia espírita. O testemunho de uma hora amarga, precisamente da hora em que os espíritas brasileiros, muito confiantes na solidez do seu movimento doutrinário, foram chamados a dar testemunho de sua convicção espírita. O desafio não partiu de nenhuma pressão externa, mas do próprio meio espírita. Acostumados a encarar o Espiritismo, no seu aspecto religioso, como o Cristianismo Redivivo, renascido em espírito e verdade, depurado das infiltrações pagãs e judaicas, viram-se de súbito ameaçados de deformações internas, promovidas nos próprios textos fundamentais da Doutrina pela Federação Espírita do Estado de São Paulo, até então considerada coma a principal guardiã da pureza doutrinaria em todo o Brasil. E o que mais assustava era que os elementos incumbidos da renovação dos textos diziam-se autorizados pelo médium Francisco Candido Xavier, exemplo de fidelidade e dedicação à Doutrina.
O desafio colhera de surpresa a todos, com o lançamento abrupto de uma edição adulterada de O Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec. A Federação autorizara o seu Departamento do Livro a realizar a façanha. E o departamento tomara as devidas cautelas realizando seus trabalhos entre quatro paredes. Essa técnica anti-espírita desnorteara a todos. O livro surgia de um golpe, como um fato consumado, numa edição de trinta mil exemplares, em parte já vendida antecipadamente a vários Centros e Grupos Espíritas. E trazia duas explicações justificadoras: uma do tradutor, Paulo Alves de Godoy, e outra do Departamento do Livro, que expunha um plano de completa e total revisão de toda a Codificação Doutrinária de Allan Kardec. Uma novidade a mais, entre as muitas novidades desta hora de inquietação mundial, seguindo o exemplo das deformações católicas e protestantes das novas edições da Bíblia e dos Evangelhos.
Mas alguns espíritas zelosos não aceitaram com bons olhos a novidade. A edição adulterada saíra em Julho de 1974. O Grupo Espírita Cairbar Schutel, de Vila Clementino, denunciou o fato e lançou um movimento de protesto, espalhando por todo o país cinco mil boletins e quarenta mil exemplares do tabloide MENSAGEM, com análise rigorosa e condenação enérgica das modificações do texto. Outros grupos e instituições doutrinárias aderiram a esse movimento de reação e a polêmica extravasou na imprensa e no rádio. A FEESP [Federação Espírita do Estado de São Paulo] tentou sustentar a sua posição, o Grupo Espírita Emmanuel, de São Bernardo do Campo, colocou-se ao seu lado e afastou abruptamente Herculano Pires da direção do programa “No Limiar do Amanhã”, da Rádio Mulher. O grupo da Federação ameaçou também tirar-lhe a crônica espírita que há trinta anos mantém no “Diário de São Paulo”, mas nada conseguiu. A polêmica alastrou-se pelo país, mas apenas alguns líderes espíritas se manifestaram. As Federações dos Estados enviaram protestos à FEESP, mas não foram além disso. A Confederação Espírita Argentina também protestou. Enquanto isso, a FEESP vendia a edição adulterada. Mais tarde, a assembleia geral da União das Sociedades Espíritas, reunida na própria sede da FEESP, condenou por unanimidade a adulteração e os adulteradores foram vencidos, mas nem todos convencidos. A Liga Espírita do Estado tomou posição firme contra a adulteração. Jorge Rizzini, que a apoiava, foi logo mais afastado da direção do programa “Um passo no Além”, que mantinha na rádio das Casas André Luiz. Fez-se em todo o país o que Herculano chamou de “O Silêncio dos Rabinos, ao tilintar das moedas de Judas.”
O médium Francisco Candido Xavier, apesar de sua costumeira isenção em polêmicas doutrinárias, acabou manifestando-se contra a adulteração e tomou posição firme e clara na defesa dos textos de Kardec. A maioria dos chamados líderes espíritas não se manifestou. A hora do testemunho provara mal, revelando a falta de convicção da maioria absoluta, e portanto esmagadora, do chamado movimento espírita brasileiro. Mas os resultados foram se manifestando mais tarde, com um crescente interesse do meio espírita pelas obras de Kardec em edições insuspeitas.
A investigação das causas da adulteração revelou a fragilidade do movimento espírita brasileiro resultante de dois fatores principais: a ignorância e o beatismo. A maioria dos espíritas não estuda a sua doutrina e se entrega a um beatismo igrejeiro. Os cursos doutrinários ministrados pela Federação e outras instituições são orientados por obras escritas por pessoas que pretendem superar Kardec e misturam ideias pessoais de elementos de variadas correntes espiritualistas. O beatismo, elemento residual de nossa formação religiosa nacional, não é combatido, mas estimulado por esses cursos sincréticos. A incompreensão da natureza especificamente científica e cultural do Espiritismo é alarmante. O religiosismo popular, o interesse pelo sobrenatural, o apelo à emoção ao invés do estímulo à razão nas palestras e pregações asfixiam os elementos culturais no meio espírita. A pretensão a mestres e orientadores estufa a vaidade daqueles que pretendem assumir posições de liderança. A vaidade dos líderes afasta-os do estudo sério e humilde da Doutrina.
Verificou-se que a adulteração resultou principalmente da falta de compreensão do conceito do bem e do mal no Espiritismo, onde esses conceitos são definidos de maneira clara e precisa. A adulteração, propondo-se a “atualizar a linguagem doutrinária”, girou em torno de expressões evangélicas e kardecianas não compreendidas, e que foram substituídas por expressões ambíguas. Como o Espiritismo considera o homem essencialmente bom, os reformadores ingênuos resolveram suprimir dos textos qualquer expressão considerada “maldosa”. Por exemplo: a expressão evangélica “Amai aos vossos inimigos”, carregada de grande poder expressivo e grande força de comunicação, foi substituída por “Amai aos que não vos amam”, que é tola e vazia. A expressão “Espíritos maus” foi substituída pela expressão “Espíritos menos bons”, que além de sua flagrante irrealidade anula o conceito de “mau”, com chocante desatualização e flagrante contradição a princípios doutrinários básicos. Além dessas tolices, que comprometem o rigor e o equilíbrio do texto kardeciano, tornando-o alheio à realidade existencial evidente (mormente nesta hora de atrocidades sem limites que estamos vivendo) houve a aplicação ao texto de termos científicos inadequados.
Os adulteradores mostraram-se ignorantes do princípio doutrinário da bondade inata do homem como potência (bondade a se desenvolver no processo evolutivo, potência do bem a se transformar em ato através das experiências.)
A adulteração foi uma triste demonstração de ignorância e de beatismo religioso tipicamente anticultural. Esse primarismo entretanto, abria um precedente perigoso e tinha de ser repelido por todos os espíritos convictos. Nesse passo iríamos à desfiguração total do Espiritismo, repetindo todo o processo histórico de deformação do Cristianismo, transformado, por ignorância e conveniências imediatistas, num tipo de paganismo idólatra e obscurantista. A importância deste livro está na reação cultural a essas agressões primárias à doutrina, com a reafirmação da virilidade cultural do Espiritismo, da limpidez racional dos seus textos, da sua posição de balizador do futuro espiritual do homem, posição essa perfeitamente confirmada pelo avanço científico e cultural do nosso tempo, no esquema preciso apresentado pela Doutrina há mais de um século. Por outro lado, este livro mostra a necessidade imperiosa de se recolocar o problema espírita em seus verdadeiros termos, sob pena de agirmos no campo doutrinário como simples macaco em loja de louças.