Francisco Cândido Xavier
Não fosse a responsabilidade que a todos nós assinala, em nossa renovadora doutrina, e não estaria aqui, perante o caro amigo, imprimindo maior extensão ao problema que o preocupa quanto à obra de Allan Kardec. Tenho estada em tratamento de saúde e com ausências frequentes desta cidade, mas espero estar em Uberaba mais regularmente a partir da segunda quinzena de abril.
Se esta carta despretensiosa, sem nenhuma ideia de parecer humilde, mas com o sincero intuito de corrigir o meu próprio erro, motivado por invigilância, puder servir de justificação ao movimento de reexame do assunto, com a paz e a verdade iluminando os nossos caminhos de união maior, ficarei profundamente grato à sua generosidade de amigo, aceitando-me as explicações que obedecem à realidade das ocorrências a que me refiro.
Autorizando o caro amigo a fazer o uso que desejar de minhas presentes declarações, publicando-as ou não, mas veiculando-as como melhor pareça à sua nobre orientação doutrinária, com um abraço de muito apreço e de muita estima, o amigo e servidor muito grato de sempre:
(a) Chico Xavier.
Irmão Saulo
Todos conhecemos a humildade natural de Chico Xavier, que agora, mais do que nunca, se comprova de maneira emocionante, no triste episódio da adulteração de O Evangelho Segundo o Espiritismo. Enquanto os autores da profanação tudo fizeram para sustentar a posição infeliz que assumiram. chegando mesmo a atribuir a adulteração a sugestões do Plano espiritual e do conhecido médium, este se despe de qualquer pretensão para humildemente confessar seu erro e sua invigilância, quando foi consultado pelos emissários da FEESP [Federação Espírita do Estado de São Paulo].
Muitas criaturas demasiado sensíveis não gostaram da publicação que fizemos da confissão de Chico a respeito. Entendem que o assunto devia permanecer entre quatro paredes. Mas o próprio Chico como vemos nos trechos acima, autorizou-nos a divulgá-la como melhor o entendêssemos, e acrescentou: “mas veiculando-a”. No Espiritismo como no Cristianismo primitivo, não há segredos nem mistérios ocultos ao povo, reservados a um possível colégio sacerdotal. A verdade é o seu fundamento, nada mais que a verdade. E como a sua finalidade é conduzir os homens a toda a verdade, seus grandes problemas são acessíveis a todos.
Longe de diminuir a grandeza moral e espiritual de Chico Xavier, a atitude límpida e sincera do médium só pode engrandecê-las. Se Chico fugisse à responsabilidade do seu erro, procurando disfarçá-la ou ocultá-la, então sim, ter-se-ia diminuído perante as consciências esclarecidas. Com essa declaração sincera e franca, reconhecendo sua falibilidade humana — o que desagrada aos que pretendem fazer dele uma espécie de semideus — Chico Xavier confirma o que sempre disse de si mesmo, considerando-se como simples serviçal do Espiritismo.
E mesmo ao fazê-lo, com evidente grandeza, Chico ainda se engana ao propor uma reunião de cúpula para reexaminar o caso já felizmente encerrado da adulteração, pois não há cúpulas dotadas de autoridade para examinar adulterações de obras de Kardec, essas obras que elas sim, procedem diretamente das mais altas Esferas da Espiritualidade. Errar é humano, como todos sabem, e o que é um médium, por mais dedicado e sincero, senão uma criatura humana.
Ao divulgar a confissão de Chico, de acordo com a sua própria autorização, não quisemos diminuí-lo. Pelo contrário, entendemos que a publicação devia engrandecê-lo. Há o Chico Xavier como homem e como médium, com todos os direitos humanos, e há o mito de Chico Xavier, que como todos os mitos deve ser destruído. Só assim o homem se engrandece, nas verdadeiras proporções da sua grandeza humana. O próprio Cristo, que veio destruir os mitos, quando foi transformado em mito pela ignorância, o fanatismo e a ambição desmedida dos homens, perdeu sua autenticidade. O Espiritismo, que é o Consolador por ele prometido e enviado à Terra, não pode alimentar-se dos resíduos mitológicos que trazemos do passado. É bom nos lembrarmos do “fermento dos fariseus”. ( † )
Chico Xavier, em mais de quarenta anos de mediunidade, foi sempre um exemplo de humildade e de fidelidade à doutrina. Devemos considerá-lo na perspectiva dessa grandeza humana, feita de sacrifícios inimagináveis, por toda uma vida de abnegação. E quando ele agora nos dá essa oportuna e maravilhosa lição de humildade, expondo-se à crítica necessária dos espíritas convictos e conscientes, não cometamos o erro de censurá-lo por isso. Recebamos a lição em nossa apoucada humildade e sejamos capazes de compreender a sua verdadeira grandeza.
A difícil humildade humana resplende nos grandes momentos, que tanto podem ser belos ou dolorosos. Dói-nos uma confissão de erro feita pelo médium que nos acostumamos a endeusar, contra as próprias advertências de Kardec. Mas a dor é nossa mestra, como ensina a doutrina, e só através dela aprendemos a superar as nossas imperfeições. A dor é lei de equilíbrio e educação, ensinou Léon Denis.