Francisco Cândido Xavier
Li, hoje, 23, o seu texto doutrinário no DIÁRIO DE S. PAULO, intitulado “Em Defesa de Chico”. Foi, para mim, um apontamento altamente benéfico, porque me levou a memorizar um encontro que tive em 1973, com os nossos confrades Paulo Alves Godoy e Jamil Salomão. Falávamos da excelência da Obra Kardequiana, compulsando um exemplar da 51ª edição de O Evangelho Segundo o Espiritismo, quando me referi a certa expressão do item 5 do cap. XV, expressão essa [“perdição”] que, se me fosse possível estimaria substituir por outra, equivalente em sentido, para evitar hiatos de atenção em muitos dos assistentes das reuniões públicas de doutrina, mormente os companheiros de frequência iniciante. E, como estudávamos reações do público nos encontros doutrinários, reportei-me às palavras “fogo do inferno”, constantes da última frase do item 3 do cap. IX, que, igualmente, de minha parte, estimaria ver substituídas por outras que não alterassem a significação do texto.
Nossa conversação gravitou para outros aspectos do nosso campo de ação. E, sem dúvida, os três concordávamos em que as expressões apontadas fossem reestudadas, em tempo oportuno, por autoridades indicáveis na solução do problema, ante as estruturas de comunicação da língua portuguesa. Compreendo que o nosso irmão e amigo Paulo Alves Godoy, decerto no intuito de demonstrar apreço a este pequeno servidor — o que eu teria claramente evitado, não só por não merecer isso, como também porque não seria justo empreender renovações verbais nos textos kardequianos sem uma reunião de cúpula, em que os companheiros mais categorizados se manifestassem no assunto — terá promovido trabalho de profundidade.
A carta a que se refere a sua nobre página do DIÁRIO DE S. PAULO me fornece a chave da solução do problema, pelo qual me vejo realmente culpado, embora involuntariamente, pelos enganos havidos. Creia, caro amigo que assumo a responsabilidade dessa culpa. Por invigilância minha, no desejo de honorificar os textos kardequianos nas reuniões públicas, terei suscitado em nosso irmão Paulo Alves Godoy o desejo de realizar um trabalho, não desrespeitoso por intenção, mas apressado pela boa vontade.
Dói-me vê-lo em lutas de tamanhas dimensões, ante o problema que se fez obscuro e inquietante, e peço-lhe desculpas se involuntariamente, me fiz de uma perturbação tão grave, em que o seu sofrimento é maior (Carta dirigida a Herculano Pires).
Irmão Saulo
Torna-se evidente, pela carta-confissão de Chico Xavier, a audaciosa trama da adulteração, que começou pelo envolvimento do médium de Uberaba, a partir do seu desejo de melhor atendimento das pessoas que se iniciam no Espiritismo, ainda carregadas de conceitos errôneos sobre o problema da salvação. Paulo Godoy e Jamil Salomão foram consultar o médium sobre uma questão que não era de sua competência. Ambos tomaram as referências de Chico a expressões fortes dos Evangelhos como ordenações de um oráculo. Chico falava por si mesmo, propondo questões, mas os consulentes, ávidos de instruções superiores, consideravam-se em face de um semideus e não apenas de um médium, de um homem que se dedica ao serviço do amor e não das graves questões doutrinárias, que abrangem todo o texto da Codificação e os mais vastos problemas da História e da Cultura. Saíram de Uberaba como investidos de um mandato divino. Iam iniciar uma nova fase do Espiritismo, iam “renovar e atualizar Kardec”.
Envolvido o médium — que nem percebera a gravidade de suas ponderações — foi fácil envolver o Departamento do Livro da Federação Espírita do Estado de São Paulo. E lançada a edição adulterada que exigiu elevado emprego de capital, o interesse material imediato sobrepõe-se naturalmente (pela força das coisas, como dizia Kardec) ao interesse moral e espiritual de preservação da doutrina. Essa a razão por que, dali por diante. os envolvidos na trama não deram ouvidos a nenhuma advertência e se mostraram tão apaixonados e insistentes na sustentação do erro. Julgaram-se seguramente escudados na palavra do Céu e nos interesses da Terra para sustentarem a sua estranha posição.
Nenhum deles teve a humildade de confessar o seu erro e a sua invigilância, como Chico Xavier o faz nessa carta dolorosa. É natural que Chico pensasse numa reunião de cúpula para estudar o assunto. A posição das cúpulas, entretanto, evidenciou a ignorância das mesmas. Não fosse a reação das bases, a adulteração estaria hoje institucionalizada. E dentro em pouco não saberíamos mais o que Kardec escreveu, porque os escribas ingênuos, iluminados supostamente pelo Alto, prosseguiriam na deformação programada e confessa de toda a Codificação.
Chico Xavier ainda propõe, na carta acima, de que publicamos apenas a parte essencial, uma reunião de cúpula para reexaminar o assunto. Isso demonstra o seu alheamento à realidade terrena com que nos defrontamos. Seria o mesmo que, depois da crucificação de Jesus, os apóstolos pedissem ao Sinédrio a revisão do processo que o levou ao sacrifício. As organizações de cúpula do movimento doutrinário mantiveram o mesmo silêncio dos rabinos no Templo, quando as trinta moedas de Judas tilintavam aos seus pés, no gesto desesperado do traidor arrependido. Qual a cúpula que se manifestou em defesa da doutrina? O próprio Conselho da USE [União das Sociedades Espíritas do Estado] só o fez depois de vendido os trinta mil volumes de O Evangelho adulterado, não obstante já houvesse tomado posição contrária à adulteração desde 8 de dezembro de 1974. Que forças impediram o pronunciamento que ficou engavetado durante três meses?
Que autoridade têm as chamadas cúpulas para “renovar” textos evangélicos e doutrinários? O episódio da adulteração se encerra, com essa carta-confissão de Chico Xavier, deixando-nos o saldo pesado de uma capitulação que atingiu a figura de um médium que se firmara em nosso movimento como exemplo inatacável. Não obstante, vale a experiência para nos alertar quanto ao perigo dos escorregões a que todos estamos sujeitos. A vaidade humana é a casca de banana na calçada da nossa invigilância.
A carta-confissão de Chico Xavier é um documento amargo. Ele procura tomar sobre si a responsabilidade do que os outros fizeram e revela desconhecer a extensão da sua própria responsabilidade no campo doutrinário. Chico Xavier é um homem, um médium, com missão mediúnica específica, e não um líder, um dirigente, um oráculo grego. Compreendamos isso e procuremos poupá-lo, para que ele possa concluir sua missão em paz.