1.
De retorno ao lar de Áulus, ocorreu-me auscultar-lhe a opinião com respeito
a diversos problemas, sempre vivos ao redor de quantos se dedicam ao
estudo de questões mediúnicas, na atualidade terrestre.
2 Em companhia do orientador,
havíamos tocado de relance, mas seguramente, palpitante material, que
nos facultara excelente curso educativo.
3 Examináramos, de perto,
entre encarnados e desencarnados, a assimilação de correntes mentais,
a psicofonia, a possessão, o desdobramento, a clarividência, a clariaudiência,
as forças curativas, a telepatia, a psicometria e a materialização,
além de alguns dos temas de importância central da mediunidade, como
sejam o poder da prece a fixação mental, a emersão do subconsciente,
a licantropia, a obsessão, a fascinação, a lei de causa e efeito, o
desdobramento no leito de morte e as energias viciadas, tudo isso sem
necessidade de recurso a complicações terminológicas.
4 Não obstante nosso respeito
à ciência humana, indagávamos intimamente por que motivo tanto embaraço
verbalístico em sucessos comuns a todos, quando a simplificação seria
bem mais interessante. Os metapsiquistas chamavam “criptestesia” à sensibilidade
oculta, críptica, e batizaram o conhecimento de fatos sem o concurso
dos sentidos carnais com a palavra “metagnomia”… Dividiam os médiuns
(sujets, na terminologia de alguns investigadores) em duas categorias,
os de “faculdades psicológicas inabituais” e os de “faculdades mecânico-físico-químicas”…
E por aí afora…
5 Por que não aplainar
tais dificuldades de expressão? Afinal, — refletia eu, — a mediunidade,
na essência, consulta o interesse da Humanidade inteira…
6 Acalentava tais pensamentos,
quando Áulus, observando-me, por certo, a crítica meditada, considerou:
— A mediunidade, indubitavelmente, é patrimônio comum a todos, entretanto,
cada homem e cada grupo de homens no mundo registam-lhe a evidência
a seu modo. 7 De nossa
parte, é possível abordá-la com a simplicidade evangélica, baseados
nos ensinamentos claros do Mestre, que esteve em contato incessante
com as potências invisíveis ao homem vulgar, curando obsidiados, levantando
enfermos, conversando com os grandes instrutores materializados no Tabor,
( † )
ouvindo os mensageiros celestiais em Getsemani e voltando Ele próprio
a comunicar-se com os discípulos, depois da morte na cruz, ( † )
entretanto, a ciência terrestre, por agora, não pode analisá-la sem
o rigor da experimentação.
8 O Assistente fez ligeira
pausa e prosseguiu:
— Não importa que os aspectos da verdade recebam vários nomes, conforme a índole dos estudiosos. Vale a sinceridade com que nos devotamos ao bem. O laborioso esforço da Ciência é tão sagrado quanto o heroísmo da fé. A inteligência, com a balança e com a retorta, também vive para servir ao Senhor. Esmerilhando os fenômenos mediúnicos e catalogando-os, chegará ao registo das vibrações psíquicas, garantindo a dignidade da Religião na Era Nova.
2.
Não desejava, porém, situar a conversação nos domínios científicos.
Nosso aprendizado atingia o marco final. Aquela era a última noite em
que podíamos desfrutar a sábia companhia do orientador e propunha-me
ouvi-lo quanto à mediunidade em si.
2 Por essa razão, provoquei
o diálogo que passarei a desdobrar.
— É justo que a Ciência não examine o campo mediúnico por nosso prisma — aleguei. — A lógica e a experimentação positiva caminham por estradas muito diferentes daquelas que conhecemos no itinerário da intuição. No entanto, nas próprias correntes do Espiritualismo, vemos a mediunidade atormentada pelas mais diversas interpretações…
3 — Que pretende você
dizer, André? — Falou o instrutor, com brandura.
— Lembro-me daqueles irmãos que acoimam os médiuns de insanos e loucos, aconselhando a segregação dos estudantes da verdade em templos de iniciação, a deliberada distância dos sofredores e dos ignorantes que contamos no mundo por legiões inumeráveis…
4 — Ah! Sim, o santuário
de iniciação religiosa, qualquer que ele seja, é para nós venerável
como posto avançado de distribuição da luz espiritual; entretanto, os
que fogem dentro dele à lei da cooperação, isolam-se na torre de marfim
do orgulho que lhes é próprio fixando-se em discussões brilhantes e
estéreis. 5 Tais companheiros
assemelham-se a viajantes agrupados em perigosa ilha de repouso, enquanto
os nautas corajosos do bem suam e sofrem na descoberta de rotas seguras
para o continente da fraternidade e da paz. 6
Descansam sob o arvoredo, confortados pela caça abundante e pela água
refrescante, pesquisando a grandeza do céu ou filosofando sem proveito;
mas sempre chega um dia em que a maré brava lhes invade o provisório
domicílio, arrebatando-os ao mar alto, para que recomecem a experiência
que lhes é necessária.
7 — Muitos estudiosos da nossa
Esfera de realização no mundo asseveram que será lícito cultivar tão
somente o convívio com os gênios superiores da Espiritualidade, relegando
as manifestações mediúnicas vulgares à fossa da obsessão e da enfermidade,
que, na opinião deles, devem ser entregues a si mesmas, sem qualquer
atenção de nossa parte.
8 — Isso é comodismo
sob o rótulo de cultura. Não podemos negar que a obsessão seja moléstia
da mente, contudo, poderá a Medicina curar alguém à força de usar o
esquecimento do dever que lhe cabe? 9
Os gênios realmente superiores da Espiritualidade jamais abandonam os
sofredores e os pequeninos. À maneira do Sol que clareia o palácio e
a furna, com o mesmo silencioso devotamento auxiliam a todos, em nome
da Providência.
10 — Há companheiros no Espiritualismo
que não suportam qualquer manifestação primitivista no terreno mediúnico.
Se o médium não lhes corresponde à exigência, revelando-se em acanhado
círculo de compreensão ou competência, afastam-se dele, agastadiços,
categorizando por fraude ou mistificação valiosas expressões da fenomenologia.
11 Áulus sorriu e comentou:
— Serão esses, provavelmente, os campeões do menor esforço. Ignoram que o sábio
não dispensou a alfabetização no começo da existência e, decerto, amaldiçoam
a criancinha que não saiba ler. 12
Semelhantes amigos, André, olvidaram o socorro que receberam da escola
primária e, solicitando facilidades, à maneira do morfinômano que reclama
entorpecentes, viciam-se em atitudes deploráveis à frente da vida, de
vez que tudo exigem para si, desrespeitando a obrigação de ajudar aos
que ainda se encontram na retaguarda.
13 — Há quem diga que o Espiritismo
age erradamente, abrigando os desequilibrados e os enfermos, porque,
com isso, oferece a impressão de uma Doutrina que, à força de ombrear
com a loucura para socorrê-la, vai convertendo seus templos de oração
em vastos refúgios de alienados mentais.
14 — Simples disparate
dos que desertam do serviço ao próximo. A Medicina não sofre qualquer
diminuição por prestar auxílio aos enfermos. Honrada pelos hospitais
em que atua, engrandece-se à medida que se agiganta na obra assistencial
aos doentes. 15 O
Espiritismo não pode responsabilizar-se pelos desequilíbrios que lhe
pedem amparo, tanto quanto não podemos imputar ao médico a autoria dos
males que lhe requisitam a intervenção. Aliás, temos nele o benfeitor
da mediunidade torturada e da mente doentia, propiciando-lhes o bálsamo
e o esclarecimento indispensáveis ao reajuste. 16
É muito fácil inventar teorias que nos exonerem do dever de servir,
e muito difícil aplicar os princípios superiores que esposamos, utilizando-nos,
para isso, de nossa cabeça e de nossas próprias mãos. 17
Se a recuperação do mundo e de nós mesmos estivesse circunscrita a lindas
palavras, o Cristo, que nos constitui o padrão de todos os dias, não
precisaria ter vindo ao encontro dos necessitados da Terra. Bastaria
enviasse proclamações angélicas à Humanidade, sem padecer-lhe, de perto,
a incompreensão e os problemas. 18
Felizmente, porém, os espiritualistas conscientes e sensatos estão aprendendo
que o nosso escopo é reviver o Evangelho em suas bases simples e puras
e que o Senhor não nos concede o tesouro da fé apenas para que possamos
crer e falar, mas também para que estejamos habilitados a estender o
bem, começando de nós mesmos.
19 — Há igualmente quem afirme
que em todos os processos da obsessão funciona, implacável, a lei de
causa e efeito, e que, por isso, não vale interferir em favor da mediunidade
atormentada…
20 — Mera argumentação
do egoísmo bem nutrido. Isso seria o mesmo que abandonar os doentes,
sob o pretexto de que são devedores perante a Lei. 21
Todos lutamos por ressarcir compromissos do pretérito, compreendendo
que não há dor sem justificação; e se sabemos que só o amor puro e o
serviço incessante são capazes de garantir-nos a redenção, uns à frente
dos outros, como desprezar o companheiro que sofre, em nome de princípios
a cujo funcionamento estamos submetidos por nossa vez? 22
Hoje, é o vizinho que amarga as consequências de certas ações efetuadas
a distância, amanhã seremos nós a colher os resultados de gestos que
nos desabonavam o passado e que agora nos afligem o presente. Se falece
a cooperação entre as vítimas do espinheiro, decerto será muito mais
longa e difícil para cada um a tarefa salvadora.
23 — Não faltam igualmente
os que supõem não devamos atender a qualquer problema de mediunidade
complexa, porque, dizem eles, cada criatura deve procurar a verdade
por si. Admitem que as religiões não passam de muletas e que a ninguém
assiste a faculdade de socorrer-se de instrutores em assuntos da própria
orientação.
24 Áulus esboçou um gesto de
bom humor e redarguiu:
— Isso seria suprimir a escola e vilipendiar o amor imanente na Criação
Inteira. 25 A religião
digna, qualquer que seja o templo em que se expresse, é um santuário
de educação da alma, em seu gradativo desenvolvimento para a imortalidade.
26 Imaginemos um
país imenso, em que milhões de crianças fossem relegadas ao abandono
pelos pais e mestres, sob a alegação de que lhes cabe o dever de procurar
a virtude e a sabedoria por si, furtando-se-lhes toda espécie de apoio
moral e cultural… Imaginemos um campo enorme superlotado de enfermos,
aos quais eminentes médicos recomendassem procurar a saúde por si mesmos,
confiando-os à própria sorte… Onde estaria a lógica de semelhantes medidas?
27 A interdependência
mora na base de todos os fenômenos da vida. O forte é tutor do fraco.
O sábio responsabilizar-se-á pelo ignorante. A criancinha na Terra não
prescinde do concurso dos pais.
28 O instrutor fez ligeiro
intervalo e prosseguiu:
— É preciso considerar que nem todos possuem idêntica idade espiritual
e que a Humanidade Terrestre, em sua feição de conjunto, ainda se encontra
tão longe da angelitude quanto a agressiva animalidade ainda está distante
da razão perfeitamente humana. 29
É muito cedo para que o homem se arrogue o direito de apelar para a
Verdade Total… Por agora, é imprescindível trabalhe intensivamente,
com devoção ardente e profunda ao bem, para atingir mais amplo discernimento
das realidades fragmentárias ou provisórias que o cercam na vida física
30 e, considerada a
questão nesse aspecto, estejamos convictos de que a ausência de escolas
do espírito ou a supressão dos instrutores constituiriam a multiplicação
dos hospícios e o rebaixamento do nível moral, porque sem o apelo à
dignificação da individualidade, em processo de crescimento mental e
de sublimação no tempo, não poderíamos contar senão com a estagnação
nas linhas inferiores da experiência.
31 Havíamos, contudo, atingido
o fim da viagem.
O lar-santuário em que o Assistente residia levantava-se, agora, ao nosso olhar.
— Trabalhemos com bom ânimo, — disse-nos ainda o orientador, — o tempo
conjugado com o serviço no bem é o alicerce de nossa vitória.
32 No dia imediato, Áulus deveria
partir no rumo de elevada missão a distância. Por isso, prometeu-nos
o abraço de adeus para a manhã seguinte.
André Luiz