1.
Levantara-se a dama, de esquisita maneira, e, rodopiando sobre os calcanhares,
qual se um motor lhe acionasse os nervos, caiu em convulsões, inspirando
piedade.
2 Jazia sob o império de impassíveis
entidades da sombra, sofrendo, contudo, mais fortemente, a atuação de
uma delas que, ao enlaçá-la, parecia interessada em aniquilar-lhe a
existência.
3 A infortunada senhora, quase
que uivando, à semelhança de loba ferida, gritava a debater-se no piso
da sala, sob o olhar consternado de Raul que exorava a Bondade Divina
em silêncio.
Coleando pelo chão, adquiria animalesco aspecto, não obstante sob a guarda generosa de sentinelas da casa.
4 Áulus e o irmão Clementino,
usando avançados recursos magnéticos, interferiram no deplorável duelo,
constrangendo o obsessor a desvencilhar-se, de certo modo, da enferma
que continuou, ainda assim, dominada por ele, a estreita distância.
5 Após reerguer a doente,
auxiliando-a a sentar-se, rente ao marido, nosso instrutor deu-se pressa
em explicar-nos:
— É um problema complexo de fascinação. Nossa irmã permanece controlada
por terrível hipnotizador desencarnado, assistido por vários companheiros
que se deixaram vencer pelas teias da vingança. 6
No ímpeto de ódio com que se lança sobre a infeliz, propõe-se humilhá-la,
utilizando-se da sugestão. Não fosse o concurso fraternal que veio recolher
neste santuário de prece, em transes como este seria vítima integral
da licantropia deformante. 7
Muitos Espíritos, pervertidos no crime, abusam dos poderes da inteligência,
fazendo pesar tigrina crueldade sobre quantos ainda sintonizam com eles
pelos débitos do passado. A semelhantes vampiros devemos muitos quadros
dolorosos da patologia mental nos manicômios, em que numerosos pacientes,
sob intensiva ação hipnótica, imitam costumes, posições e atitudes de
animais diversos.
8 Ao passo que a doente gemia
de estranho modo, amparada pelo esposo e por Raul, que se esmerava no
auxílio, Hilário, espantado, indagou:
— Tão doloroso fenômeno é comum?
— Muito generalizado nos processos expiatórios em que os Espíritos acumpliciados
na delinquência descambam para a esfera vibratória dos brutos, — esclareceu
nosso orientador, coadjuvando em benefício da enferma, cujo cérebro
prosseguia governado pelo insensível perseguidor como brinquedo em mãos
de criança.
9 — E por que não separar
de vez o algoz da vítima?
— Calma, Hilário! — Ponderou o Assistente. — Ainda não examinamos o
assunto em sua estrutura básica. 10
Toda obsessão tem alicerces na reciprocidade. Recordemos o ensinamento
de nosso Divino Mestre. ( † )
Não basta arrancar o joio. É preciso saber até que ponto a raiz dele
se entranha no solo com a raiz do trigo, para que não venhamos a esmagar
um e outro. 11 Não
há dor sem razão. Atendamos, assim, à lei da cooperação, sem o propósito
de nos anteciparmos à Justiça Divina.
12 Raul, sob o controle do
mentor da casa, tentava sossegar o agitado comunicante, recordando-lhe
as vantagens do perdão e incutindo-lhe a conveniência da humildade e
da prece.
13 Aflito, como não querendo
perder o fio da lição, meu colega abeirou-se de nosso orientador e alegou:
— Todavia, para colaborar em favor desses irmãos em desespero, será suficiente o concurso verbalista?
— Não lhes estendemos simplesmente palavras, mas acima de tudo o nosso sentimento.
14 Toda frase articulada
com amor é uma projeção de nós mesmos. Portanto, se é incontestável
a nossa impossibilidade de oferecer-lhes a libertação prematura, estamos
doando, em favor deles, a nossa boa vontade, através do verbo nascido
de nossos corações, igualmente necessitados de plena redenção com o
Cristo.
15 E, num tom demasiado significativo,
Áulus acrescentou:
— Analisando o pretérito, ao qual todos nos ligamos, através de lembranças
amargas, somos enfermos em assistência recíproca. 16
Não seria lícito guardarmos a pretensão de lavrar sentenças definitivas
pró ou contra ninguém, porque, na posição em que ainda nos achamos,
todos possuímos contas maiores ou menores por liquidar.
17 Interrompendo a conversação,
nosso instrutor lançou-se ao amparo eficiente da dupla em desesperada
contenda.
Para o cuidado fraterno de que dava testemunho, a doente e o perseguidor mereciam igual carinho.
Aplicou passes de desobstrução à garganta da enferma e, em breves instantes, o verdugo começou a falar, através dela, numa algaravia, cujo sentido literal não conseguíamos perceber.
Entretanto, pela onda de pensamento que lhe caracterizava a manifestação, sabíamos que a ira se lhe extravasava do ser.
18 Raul Silva, a seu turno,
recolhendo impressões idênticas, pela dura inflexão da voz com que as
palavras eram pronunciadas, procurava asserená-lo quase em vão.
2.
Observando a enferma completamente transfigurada e assinalando-nos a
muda interrogação, Áulus se deteve por alguns minutos a auscultar o
cérebro do comunicante e o da médium, como a sondar-lhes o mundo íntimo,
e, em seguida, voltou para junto de nós.
2 Diante da profunda apreensão
que passou a dominar-lhe o rosto, Hilário tomou-me a dianteira, inquirindo,
assombrado:
— A que causa atribuir semelhante conflito?
— Tentei alguma penetração no passado a fim de algo saber. — respondeu
o orientador, entristecido. — 3
As raízes da desavença vêm de longa distância no tempo. Não obstante
o dever de não relacionar pormenores, para não conferir maior saliência
ao mal, posso dizer-lhe que o enigma perdura vai já em pouco mais de
um milênio. 4 Nosso
infeliz irmão fala um antigo dialeto da velha Toscana, onde, satisfazendo
a obsidiada de hoje, se fez cruel estrangulador. Era legionário de Ugo,
o poderoso duque da Provença, no século X… 5
Pela exteriorização a que se confia, acompanho-lhe as terríveis reminiscências…
Reporta-se ao saque de que participou na época a que nos referimos,
no qual, para satisfazer à mulher que lhe não correspondeu ao devotamento,
teve a infelicidade de aniquilar os próprios pais… Tem o coração como
um vaso transbordante de fel…
6 Porque o Assistente se interrompera,
meu colega, naturalmente tão interessado quanto eu em maiores revelações,
pediu-lhe mais ampla incursão no passado, ao que Áulus nos recomendou
aquietássemos o espírito de consulta.
7 A volta aos quadros terrificantes,
largados ao longe por aquelas almas em sofrimento, a ninguém edificaria.
Eram dois corações desesperados, no inferno estabelecido por eles mesmos. Não convinha analisar-lhes o sepulcro de fogo e lama, nas sombras da retaguarda.
8 Restaurando a atenção no
estudo que nos cabia fazer, lembrei a questão do idioma.
Achávamo-nos no Brasil e a obsidiada ensaiava frases num dialeto já morto.
Por que motivo não assimilava o pensamento da entidade, a empolgar-lhe o cérebro em ondas insofreáveis, transformando-o em palavras do português corrente, qual acontecera em numerosos processos de intercâmbio sob nossa observação?
9 — Estamos à frente
de um caso de mediunidade poliglota ou de xenoglossia, — explicou o
Assistente. — O filtro mediúnico e a entidade que se utiliza dele acham-se
tão intensamente afinados entre si que a passividade do instrumento
é absoluta, sob o império da vontade que o comanda de modo positivo.
10 O obsessor, por mais
estranho pareça, jaz ainda enredado nos hábitos por que pautava a sua
existência, há séculos, e, em se exprimindo pela médium, usa modos e
frases que lhe foram típicos.
11 — Isso, entretanto, — objetou
Hilário, — é atribuível à mediunidade propriamente dita ou à sintonia
mais completa?
— O problema é de sintonia, — informou o Assistente.
12 — Contudo, se a doente não
lhe houvesse partilhado da experiência terrestre, como legítima associada
de seu destino, poderia o comunicante externar-se no dialeto com que
se caracteriza?
— Positivamente não, — esclareceu Áulus. Em todos os casos de xenoglossia,
é preciso lembrar que as forças do passado são trazidas ao presente.
13 Os desencarnados,
elaborando fenômenos dessa ordem, interferem, quase sempre, através
de impulsos automáticos, nas energias subconscienciais, mas exclusivamente
por intermédio de personalidades que lhes são afins no tempo. 14
Quando um médium analfabeto se põe a escrever sob o controle de um amigo
domiciliado em nosso Plano, isso não quer dizer que o mensageiro espiritual
haja removido milagrosamente as pedras da ignorância. Mostra simplesmente
que o psicógrafo traz consigo, de outras encarnações, a arte da escrita
já conquistada e retida no arquivo da memória, cujos centros o companheiro
desencarnado consegue manobrar.
15 Hilário fez o gesto indagador
do aprendiz e insistiu:
— Podemos concluir, então, que se a enferma fosse apenas médium, sem o pretérito de que dá testemunho, a entidade não se exprimiria por ela numa expressão cultural diferente da que lhe é própria…
— Sim, sem dúvida alguma, — aprovou o instrutor; — em mediunidade há também
o problema da sintonia no tempo…
16 E, de olhar vago, acentuou:
— O fato sob nossas vistas pode ser, de certo modo, comparado às correntes d’água. Cada qual tem o seu nível. As águas à flor da terra guardam a serventia e o encanto que lhes são peculiares, contudo, somente as águas profundas encerram o tesouro educado ou inculto das enormes forças latentes, que podem ser convenientemente utilizadas quando aquelas são trazidas à superfície.
3.
A lição era de subido valor, no entanto, fazia-se necessário agir no
trabalho assistencial.
2 Conjugando nosso esforço,
separamos, de alguma sorte, o algoz da vítima, conquanto, segundo apontamento
de nosso orientador, continuassem unidos pela fusão magnética, mesmo
a distância.
3 Companheiros de nossa Esfera
retiraram o Espírito obsidente, encaminhando-o a certa organização socorrista.
Ainda assim, a doente gritava, afirmando estar à frente de medonho estrangulador em vias de sufocá-la.
4 Aplicando-lhe passes de
reconforto, Áulus esclareceu:
— Agora é apenas o fenômeno alucinatório, natural em processos de fascinação como este. Perseguidor e perseguida jazem na mais estreita ligação telepática, agindo e reagindo mentalmente um sobre o outro.
Gradativamente, a enferma acalmou-se.
5 Finda a crise, perguntei
ao nosso orientador sobre o remédio definitivo à dolorosa situação,
ao que respondeu com grave entono:
— A doente está sendo preparada, tendo-se em vista uma solução justa para o caso. Ela e o verdugo, em breve, serão mãe e filho. Não há outra alternativa na obtenção do trabalho redentor. Energias divinas do amor puro serão mais profundamente tocadas em sua sensibilidade de mulher e nossa irmã praticará o santo heroísmo de acolhê-lo no próprio seio…
6 Em seguida, deixando-nos
pensativos, caminhou no rumo de outro necessitado, enquanto exclamava:
— Louvado seja Deus pela glória do lar!
André Luiz