1.
Caía a noite…
Após o dia quente, a multidão desfilava na via pública, evidentemente buscando o ar fresco.
2 Dirigíamo-nos a outro templo
espírita, em companhia de Áulus, segundo o nosso plano de trabalho,
quando tivemos nossa atenção voltada para enorme gritaria.
Dois guardas arrastavam, de restaurante barato, um homem maduro em deploráveis condições de embriaguez.
O mísero esperneava e proferia palavras rudes, protestando, protestando…
3 — Observem o nosso infeliz
irmão! — determinou o orientador.
E porque não havia muito tempo entre a porta ruidosa e o carro policial,
pusemo-nos em observação.
Achava-se o pobre amigo abraçado por uma entidade da sombra, qual se um polvo estranho o absorvesse.
Num átimo, reparamos que a bebedeira alcançava os dois, porquanto se justapunham completamente um ao outro, exibindo as mesmas perturbações.
4 Em breves instantes, o veículo
buzinou com pressa e não nos foi possível dilatar anotações.
— O quadro daria ensejo a valiosos apontamentos…
Ante a alegação de Hilário, o Assistente considerou que dispúnhamos de tempo bastante para a colheita de alguns registros interessantes e convidou-nos a entrar.
5 A casa de pasto regurgitava…
Muita alegria, muita gente.
Lá dentro, certo, recolheríamos material adequado a expressivas lições.
Transpusemos a entrada.
As emanações do ambiente produziam em nós indefinível mal-estar.
6 Junto de fumantes e bebedores
inveterados, criaturas desencarnadas de triste feição se demoravam expectantes.
Algumas sorviam as baforadas de fumo arremessadas ao ar, ainda aquecidas pelo calor dos pulmões que as expulsavam, nisso encontrando alegria e alimento. Outras aspiravam o hálito de alcoólatras impenitentes.
7 Indicando-as, informou o
orientador:
— Muitos de nossos irmãos, que já se desvencilharam do vaso carnal, se apegam com tamanho desvario às sensações da experiência física, que se cosem àqueles nossos amigos terrestres temporariamente desequilibrados nos desagradáveis costumes por que se deixam influenciar.
8 — Mas por que mergulhar,
dessa forma, em prazeres dessa espécie?
— Hilário, — disse o Assistente, bondoso, — o que a vida começou, a
morte continua… 9 Esses
nossos companheiros situaram a mente nos apetites mais baixos do mundo,
alimentando-se com um tipo de emoções que os localiza na vizinhança
da animalidade. 10
Não obstante haverem frequentado santuários religiosos, não se preocuparam
em atender aos princípios da fé que abraçaram, acreditando que a existência
devia ser para eles o culto de satisfações menos dignas, com a exaltação
dos mais astuciosos e dos mais fortes. 11
O chamamento da morte encontrou-os na esfera de impressões delituosas
e escuras e, como é da Lei que cada alma receba da vida de conformidade
com aquilo que dá, não encontram interesse senão nos lugares onde podem
nutrir as ilusões que lhes são peculiares, porquanto, na posição em
que se veem, temem a verdade e abominam-na, procedendo como a coruja
que foge à luz.
12 Meu colega fez um gesto
de piedade e indagou:
— Entretanto, como se transformarão?
— Chegará o dia em que a própria Natureza lhes esvaziará o cálice, — respondeu
Áulus, convicto. — Há mil processos de reajuste, no Universo Infinito
em que se cumprem os Desígnios do Senhor, chamem-se eles aflição, desencanto,
cansaço, tédio, sofrimento, cárcere…
13 — Contudo, — ponderei,
— tudo indica que esses Espíritos infortunados não se enfastiarão tão
cedo da loucura em que se comprazem…
— Concordo plenamente, — redarguiu o instrutor, — todavia, quando não se fatiguem,
a Lei poderá conduzi-los a prisão regeneradora.
— Como?
14 A pergunta de Hilário ecoou,
cristalina, e o Assistente deu-se pressa em explicar:
— Há dolorosas reencarnações que significam tremenda luta expiatória para as almas necrosadas no vício. Temos, por exemplo, o mongolismo, a hidrocefalia, a paralisia, a cegueira, a epilepsia secundária, o idiotismo, o aleijão de nascença e muitos outros recursos, angustiosos embora, mas necessários, e que podem funcionar, em benefício da mente desequilibrada, desde o berço, em plena fase infantil. Na maioria das vezes, semelhantes processos de cura prodigalizam bons resultados pelas provações obrigatórias que oferecem…
15 — No entanto,
— comentei, — e se os nossos irmãos encarnados, visivelmente confiados
à devassidão, resolvessem reconsiderar o próprio caminho?!… Se voltassem
à regularidade, através da renovação mental com alicerces no bem?!…
16 — Ah! Isso seria
ganhar tempo, recuperando a si mesmos e amparando com segurança os amigos
desencarnados… Usando a alavanca da vontade, atingimos a realização
de verdadeiros milagres… Entretanto, para isso, precisariam despender
esforço heroico.
2.
Observando os beberrões, cujas taças eram partilhadas pelos sócios que
lhes eram invisíveis, Hilário recordou:
2 — Ontem, visitamos um templo,
em que desencarnados sofredores se exprimiam por intermédio de criaturas
necessitadas de auxílio, e ali estudamos algo sobre mediunidade… Aqui,
vemos entidades viciosas valendo-se de pessoas que com elas se afinam
numa perfeita comunhão de forças inferiores… Aqui, tanto quanto lá,
seria lícito ver a mediunidade em ação?
3 — Sem qualquer dúvida,
— confirmou o orientador; — recursos psíquicos, nesse ou naquele grau
de desenvolvimento, são peculiares a todos, tanto quanto o poder de
locomoção ou a faculdade de respirar, constituindo forças que o Espírito
encarnado ou desencarnado pode empregar no bem ou no mal de si mesmo.
4 Ser médium não quer
dizer que a alma esteja agraciada por privilégios ou conquistas feitas.
Muitas vezes, é possível encontrar pessoas altamente favorecidas com
o dom da mediunidade, mas dominadas, subjugadas, por entidades sombrias
ou delinquentes, com as quais se afinam de modo perfeito, servindo ao
escândalo e à perturbação, em vez de cooperarem na extensão do bem.
5 Por isso é que não
basta a mediunidade para a concretização dos serviços que nos competem.
Precisamos da Doutrina do Espiritismo, do Cristianismo Puro, a fim de
controlar a energia medianímica, de maneira a mobilizá-la em favor da
sublimação espiritual na fé religiosa, tanto quanto disciplinamos a
eletricidade, a benefício do conforto na Civilização.
6 Nisso, Áulus relanceou o
olhar pelos aposentos reservados mais próximos, qual se já os conhecesse,
e, fixando certa porta, convidou-nos a atravessá-la.
Seguimo-lo, ombro a ombro.
7 Em mesa lautamente provida
com fino conhaque, um rapaz, fumando com volúpia e sob o domínio de
uma entidade digna de compaixão pelo aspecto repelente em que se mostrava,
escrevia, escrevia, escrevia…
— Estudemos, — recomendou o orientador.
8 O cérebro do moço embebia-se
em substância escura e pastosa que escorria das mãos do triste companheiro
que o enlaçava.
Via-se-lhes a absoluta associação na autoria dos caracteres escritos.
A dupla em trabalho não nos registou a presença.
9 — Neste instante, — anunciou
Áulus, atencioso, — nosso irmão desconhecido é hábil médium psicógrafo.
Tem as células do pensamento integralmente controladas pelo infeliz
cultivador de crueldade sob a nossa vista. Imanta-se-lhe à imaginação
e lhe assimila as ideias, atendendo-lhe aos propósitos escusos, através
dos princípios da indução magnética, de vez que o rapaz, desejando produzir
páginas escabrosas, encontrou quem lhe fortaleça a mente e o ajude nesse
mister.
10 Imprimindo à voz significativa
expressão, ajuntou:
— Encontramos sempre o que procuramos ser.
11 Finda a breve pausa que
nos compeliu à reflexão, Hilário recomeçou:
— Todavia, será ele um médium na acepção real do termo? Será peça ativa em agrupamento espírita comum?
— Não. Não está sob qualquer disciplina espiritualizante. É um moço de inteligência vivaz sem maior experiência da vida, manejado por entidades perturbadoras.
12 Após inclinar-se alguns
momentos sobre os dois, o instrutor elucidou com benevolência:
— Entre as excitações do álcool e do fumo que saboreiam juntos, pretendem provocar uma reportagem perniciosa, envolvendo uma família em duras aflições. Houve um homicídio, a cuja margem aparece a influência de certa jovem, aliada às múltiplas causas em que se formou o deplorável acontecimento. O rapaz que observamos, amigo de operoso lidador da imprensa, é de si mesmo dado à malícia e, com a antena mental ligada para os ângulos mais desagradáveis do problema, ao atender um pedido de colaboração do cronista que lhe é companheiro, encontrou, no caso de que hoje se encarrega, o concurso de ferrenho e viciado perseguidor da menina em foco, interessado em exagerar-lhe a participação na ocorrência, com o fim de martelar-lhe a mente apreensiva e arrojá-la aos abusos da mocidade…
13 — Mas como? —
Indagou Hilário, espantadiço.
— O jornalista, de posse do comentário calunioso, será o veículo de informações tendenciosas ao público. A moça ver-se-á, de um instante para outro, exposta às mais desapiedadas apreciações, e decerto se perturbará, sobremaneira, de vez que não se acumpliciou com o mal, na forma em que se lhe define a colaboração no crime. O obsessor, usando calculadamente o rapaz com quem se afina, pretende alcançar o noticiário de sensação, para deprimir a vida moral dela e, com isso, amolecer-lhe o caráter, trazendo-a, se possível, ao charco vicioso em que ele jaz.
— E conseguirá? — Insistiu meu colega, assombrado.
— Quem sabe?
14 E, algo triste, o orientador
acrescentou:
— Naturalmente a jovem teria escolhido o gênero de provações que atravessa, dispondo-se a lutar, com valor, contra as tentações.
15 — E se não puder combater
com a força precisa?
— Será mais justo dizer “se não quiser”, porque a Lei não nos confia problemas de trabalho superiores à nossa capacidade de solução. Assim, pois, caso não delibere guerrear a influência destrutiva, demorar-se-á por muito tempo nas perturbações a que já se encontra ligada em princípio.
— Tudo isso por quê?
16 A pergunta de Hilário pairou
no ar por aflitiva interrogação, todavia, Áulus asserenou-nos o ânimo,
elucidando:
— Indiscutivelmente, a jovem e o infeliz que a persegue estão unidos um ao outro, desde muito tempo… Terão estado juntos nas regiões inferiores da vida espiritual, antes da reencarnação com que a menina presentemente vem sendo beneficiada. Reencontrando-a na experiência física, de cujas vantagens ainda não partilha, o desventurado companheiro tenta incliná-la, de novo, à desordem emotiva, com o objetivo de explorá-la em atuação vampirizante.
17 Áulus fez ligeiro intervalo,
sorriu melancólico e acentuou:
— Entretanto, falar nisso seria abrir as páginas comoventes de enorme romance, desviando-nos do fim que nos propomos atingir. Detenhamo-nos na mediunidade.
18 Buscando aliviar a atmosfera
de indagações que Hilário sempre condensava em torno de si mesmo, ponderei:
— O quadro sob nossa análise induz à meditação nos fenômenos gerais de intercâmbio em que a Humanidade total se envolve sem perceber…
— Ah! sim! — Concordou o orientador, — faculdades medianímicas e cooperação
do mundo espiritual surgem por toda parte. 19
Onde há pensamento, há correntes mentais e onde há correntes mentais
existe associação. E toda associação é interdependência e influenciação
recíproca. Daí concluímos quanto à necessidade de vida nobre, a fim
de atrairmos pensamentos que nos enobreçam. 20
Trabalho digno, bondade, compreensão fraterna, serviço aos semelhantes,
respeito à Natureza e oração constituem os meios mais puros de assimilar
os princípios superiores da vida, porque damos e recebemos, em espírito,
no plano das ideias, segundo leis universais que não conseguiremos iludir.
3.
Em silencioso gesto com que nos recordava o dever a cumprir, o Assistente
convidou-nos à retirada.
2 Retomamos a via pública.
Mal recomeçávamos a avançar, quando passou por nós uma ambulância, em marcha vagarosa, sirenando forte para abrir caminho.
3 À frente, ao lado do condutor,
sentava-se um homem de grisalhos cabelos a lhe emoldurarem a fisionomia
simpática e preocupada. Junto dele, porém, abraçando-o com naturalidade
e doçura, uma entidade em roupagem lirial lhe envolvia a cabeça em suaves
e calmantes irradiações de prateada luz.
— Oh! — Inquiriu Hilário, curioso, — quem será aquele homem tão bem
acompanhado?
4 Áulus sorriu e esclareceu:
— Nem tudo é energia viciada no caminho comum. Deve ser um médico em alguma tarefa salvacionista.
5 — Mas, é espírita?
— Com todo o respeito que devemos ao Espiritismo, é imperioso lembrar
que a Bênção do Senhor pode descer sobre qualquer expressão religiosa,
— afirmou o orientador com expressivo olhar de tolerância. 6
— Deve ser, antes de tudo, um profissional humanitário e generoso que
por seus hábitos de ajudar ao próximo se fez credor do auxílio que recebe.
7 Não lhe bastariam
os títulos de espírita e de médico para reter a influência benéfica
de que se faz acompanhar. Para acomodar-se tão harmoniosamente com a
entidade que o assiste, precisa possuir uma boa consciência e um coração
que irradie paz e fraternidade.
8 — Contudo, podemos
qualificá-lo como médium? — Perguntou meu companheiro algo desapontado.
— Como não? — Respondeu Áulus, convicto. — É médium de abençoados valores humanos,
mormente no socorro aos enfermos, no qual incorpora as correntes mentais
dos gênios do bem, consagrados ao amor pelos sofredores da Terra.
4.
E, com significativa inflexão de voz, acrescentou:
2 — Como vemos, influências
do bem ou do mal, na esfera evolutiva em que nos achamos, se estendem
por todos os lados e por todos os lados registramos a presença de faculdades
medianímicas, que as assimilam, segundo a direção feliz ou infeliz,
correta ou indigna em que cada mente se localiza. 3
Estudando, assim, a mediunidade, nos santuários do Espiritismo com Jesus,
observamos uma força realmente peculiar a todos os seres, de utilidade
geral, se sob uma orientação capaz de discipliná-la e conduzi-la para
o máximo aproveitamento no bem. 4
Recordemos a eletricidade que, pouco a pouco, vai transformando a face
do mundo. Não basta ser dono de poderosa cachoeira, com o potencial
de milhões de cavalos-vapor. É preciso instalar, junto dela, a inteligência
da usina para controlar-lhe os recursos, dinamizá-los e distribuí-los,
conforme as necessidades de cada um… Sem isso, a queda d’água será sempre
um quadro vivo de beleza fenomênica, com irremediável desperdício.
5 O tempo, contudo, não nos
permitia maior delonga na conversação e rumamos, desse modo, para um
agrupamento em que os nossos estudos da véspera encontrariam o necessário
prosseguimento.
André Luiz