1.
Leve chamamento à porta provocou a saída de um dos companheiros da atitude
de meditação, para atender.
2 Dois enfermos, uma senhora
jovem e um cavalheiro idoso, custodiados por dois familiares, transpuseram
o umbral, localizando-se num dos ângulos da sala, fora do círculo magnético.
— São doentes a serem beneficiados, — informou-nos o orientador.
3 Logo após, um colaborador
de nosso Plano franqueou acesso a numerosas entidades sofredoras e perturbadas,
que se postaram, diante da assembleia, formando legião.
4 Nenhuma delas vinha até
nós, constrangidamente.
Dir-se-ia que se aglomeravam, em derredor dos amigos encarnados em prece, quais mariposas inconscientes, rodeando grande luz.
5 Vinham bulhentas, proferindo
frases desconexas ou exclamações menos edificantes, entretanto, logo
que atingidas pelas emanações espirituais do grupo, emudeciam de pronto,
qual se fossem contidas por forças que elas próprias não conseguiam
perceber.
6 Atencioso, Áulus notificou:
— São almas em turvação mental, que acompanham parentes, amigos ou
desafetos às reuniões públicas da Instituição, e que se desligam deles
quando os encarnados se deixam renovar pelas ideias salvadoras, expressas
na palavra dos que veiculam o ensinamento doutrinário. 7
Modificado o centro mental daqueles que habitualmente vampirizam, essas
entidades veem-se como que despejadas de casa, porquanto, alterada a
elaboração do pensamento naqueles a quem se afeiçoam, experimentam súbitas
reviravoltas nas posições em que falsamente se equilibram. 8
Algumas delas, rebeladas, fogem dos templos de oração como este, detestando-lhes
temporariamente os serviços e armando novas perseguições às suas vítimas,
que procuram até o reencontro; ( † )
contudo, outras, de algum modo tocadas pelas lições ouvidas, demoram-se
no local das predicações, em ansiosa expectativa, famintas de maior
esclarecimento.
9 Hilário, que recebia, surpreso,
semelhantes informes, perguntou, curioso:
— Que ocorre, porém, quando os encarnados não prestam atenção aos ensinamentos ouvidos?
— Sem dúvida, passam pelos santuários da fé na condição de urnas cerradas. Impermeáveis ao bom aviso, continuam inacessíveis à mudança necessária.
10 — Mas este mesmo fenômeno
se repete nas igrejas de outras confissões religiosas?
— Sim. A palavra desempenha significativo papel nas construções do espírito. Sermões e conferências de sacerdotes e doutrinadores, em variados setores da fé, sempre que inspirados no Infinito Bem, guardam o objetivo da elevação moral.
11 O Assistente meditou um
instante e acrescentou:
— Entre os homens, porém, se não é fácil cultivar a vida digna, é muito
difícil habilitar-se a criatura à morte libertadora. Comumente, desencarna-se
a alma, sem que se lhe desagarrem os pensamentos, enovelados em situações,
pessoas e coisas da Terra. A mente, por isso, continua encarcerada nos
interesses quase sempre inferiores do mundo, cristalizada e enfermiça
em paisagens inquietantes, criadas por ela mesma. 12
Daí o valor do culto religioso respeitável, formando ambiente propício
à ascensão espiritual, com indiscutíveis vantagens, não só para os Espíritos
encarnados que a ele assistem, com sinceridade e fervor, mas também
para os desencarnados, que aspiram à própria transformação. 13
Todos os santuários, em seus atos públicos, estão repletos de almas
necessitadas que a eles comparecem, sem o veículo denso, sequiosas de
reconforto. Os expositores da boa palavra podem ser comparados a técnicos
eletricistas, desligando “tomadas mentais”, através dos princípios libertadores
que distribuem na esfera do pensamento.
14 Sorriu bem-humorado e prosseguiu:
— Em razão disso, as entidades vampirizantes operam contra eles, muitas vezes envolvendo-lhes os ouvintes em fluidos entorpecentes, conduzindo esses últimos ao sono provocado, para que se lhes adie a renovação.
2. Observando os irmãos retardados que se abeiravam da mesa num quase semicírculo, tive a ideia de usar o psicoscópio, de modo a examiná-los detidamente, ao que Áulus informou, prestimoso:
2 — Não será preciso. Bastará
uma análise atenta para a colheita de resultados interessantes, de vez
que os nossos amigos estampam no próprio corpo perispiritual os sofrimentos
de que são portadores.
3 Notei que o Assistente
não desejava alongar a conversação, decerto preparando-se para colaborar
nos trabalhos próximos e, por esse motivo, aproveitei os instantes à
nossa frente, especificando observações, junto aos companheiros menos
felizes que se uniam estreitamente uns aos outros, entre a angústia
e a expectação.
4 Pareciam envolvidos em grande
nuvem ovalada, qual nevoeiro cinza-escuro, espesso e móvel, agitado
por estranhas formações.
5 Reparei o conjunto, notando
que alguns deles se mostravam enfermos, como se estivessem ainda na
carne.
Membros lesados, mutilações, paralisias e ulcerações diversas eram perceptíveis a rápido olhar.
6 Talvez porque Hilário e
eu nos demorássemos em atencioso exame, na posição de aprendizes em
aula, um dos colaboradores espirituais da reunião acercou-se de nós
e falou, cordial:
— Nossos irmãos sofredores trazem consigo, individualmente, o estigma dos erros
deliberados a que se entregaram. 7
A doença, como resultante de desequilíbrio moral, sobrevive no perispírito,
alimentada pelos pensamentos que a geraram, quando esses pensamentos
persistem depois da morte do corpo físico.
8 — Mas, adquirem
melhoras positivas em reunião de intercâmbio? — Indagou Hilário, espantadiço.
— Sim, — esclareceu o interlocutor, — assimilam ideias novas com que passam
a trabalhar, ainda que vagarosamente, melhorando a visão interior e
estruturando, assim, novos destinos. A renovação mental é a renovação
da vida.
9 Meditei, na ilusão
dos que julgam na morte livre passagem da alma, em demanda do Céu ou
do inferno, como lugares determinados de alegria e padecimento…
Quão raros na Terra se capacitam de que trazemos conosco os sinais
de nossos pensamentos, de nossas atividades e de nossas obras, e o túmulo
nada mais faz que o banho revelador das imagens que escondemos no mundo,
sob as vestes da carne!…
10 A consciência é um núcleo
de forças, em torno do qual gravitam os bens e os males gerados por
ela mesma e, ali, estávamos defrontados por vasta fileira de almas,
sofrendo nos purgatórios diferenciados que lhes eram característicos.
3.
Abeiramo-nos de triste companheiro, de macilenta expressão fisionômica,
e Hilário, num impulso todo humano, perguntou-lhe:
2 — Amigo, como te chamas?
— Eu? — Tartamudeou o interpelado.
E, num esforço tremendo e inútil para recordar-se de alguma coisa, ajuntou:
— Eu não tenho nome…
3 — Impossível!… —
Considerou meu colega, dominado de espanto, — todos temos um nome.
— Esqueci-me, esqueci-me de tudo… — Comentou o infeliz, desoladoramente.
4 — É um caso de amnésia a
estudar, — aclarou o companheiro da equipe de trabalho que visitávamos.
— Fenômeno natural? — Interrogou Hilário, perplexo.
— Sim, pode ser natural, em razão de algum desequilíbrio trazido da Terra,
5 mas é possível que
o nosso amigo esteja sendo vítima de vigorosa sugestão pós-hipnótica,
partida de algum perseguidor de grande poder sobre os seus recursos
mnemônicos. Encontra-se ainda profundamente imantado às sensações físicas
e a vida cerebral nele ainda é uma cópia das linhas sensoriais que deixou.
Assim considerando, é provável esteja submetido ao império de vontades
estranhas e menos dignas, às quais se teria associado no mundo.
6 — Céus! — Clamou
meu colega impressionado, — é possível semelhante dominação depois da
morte?
— Como não? A morte é continuação da vida, e na vida, que é eterna, possuímos
o que buscamos.
7 Atento aos nossos estudos
da mediunidade, observei:
— Se o nosso amigo desmemoriado for conduzido ao aparelho mediúnico, manifestar-se-á, acaso, assim, ignorando a identidade que lhe é própria?
— Perfeitamente. E precisará de tratamento carinhoso como qualquer alienado mental comum. Exprimindo-se por algum médium que lhe dê guarida, será para qualquer doutrinador terrestre o mesmo enigma que estamos presenciando.
4.
Nesse momento, renteou conosco uma entidade em deplorável aspecto.
Era um homem esguio e triste, exibindo o braço direito paralítico e ressecado.
2 Atendendo-me ao olhar interrogativo,
o companheiro, como quem não mais dispunha de tempo para o comentário
fraterno, apenas me disse:
— Faça uma auscultação. Repare por si mesmo.
3 Acerquei-me do amigo sofredor.
Toquei-lhe a fronte, de leve, e registrei-lhe a angústia.
4 Nas recordações que se lhe
haviam cristalizado no mundo mental, senti-lhe o drama interior. Fora
musculoso estivador no cais, alcoólatra inveterado que, certa feita,
de volta a casa esbofeteou a face paterna, porque o velho genitor lhe
exprobrara o procedimento.
5 Incapaz de revidar, o ancião,
cuspinhando sangue, praguejou, desapiedado:
— Infame! O teu braço cruel será transformado em galho seco… Maldito sejas!
6 Ouvindo tais palavras que
se fizeram seguidas por terrível jato de força hipnotizante, o mísero
tornou à via pública, sugestionado pela maldição recebida, bebericando
para esquecer.
7 Cambaleante, foi vitimado
num desastre de bonde, no qual veio a perder o braço.
8 Sobreviveu por alguns anos,
coagulando, contudo, no próprio pensamento a ideia de que a expressão
paternal tivera a força de uma ordem vingativa a se lhe implantar no
fundo dalma e, por isso, ao desencarnar, recuperara o membro dantes
mutilado a pender-lhe, ressecado e inerte, no corpo perispirítico.
9 Enquanto refletia, o nosso
orientador reaproximou-se de nós e, percebendo quanto se passava, informou:
— É um caso de reajuste difícil, reclamando tempo e tolerância.
E, afagando os ombros do paralítico, acentuou:
— Nosso amigo traz a mente subjugada pelo remorso com que ambientou nele mesmo a maldição recebida. Exige muito carinho para refazer-se.
10 Sem despreocupar-me do tema
que nos prendia a atenção, inquiri:
— Se esse companheiro utilizar-se da organização mediúnica, transmitirá ao receptor humano as sensações de que se acha investido?
— Sim, — elucidou o Assistente, — refletirá no instrumento passivo as impressões
que o possuem, nos processos de imanização em que se baseiam os serviços
de intercâmbio.
11 Sorriu, bondoso, e acrescentou:
— No entanto, não nos percamos agora nos casos particulares. Cada entidade menos equilibrada de quantas se acham reunidas aqui traz consigo inquietantes experiências. Observemos de plano mais alto.
12 E conduziu-me à cabeceira
da mesa, onde o nosso amigo Raul Silva ia começar o serviço de oração.
André Luiz