(Reverência ao centenário de nascimento de Francisco Cândido Xavier, o médium de Deus, que transmitiu as Mensagens de Inês de Castro)
Os primeiros meses de 1346 fluíam mais tranquilos para o príncipe.
Viúvo, aos 25 anos, buscava reorganizar sua vida afetiva.
Não obstante o respeito e consideração pela esposa Constança, ( † ) falecida em fins de 1345, Inês de Castro ( † ) não lhe saía da cabeça. Era ela seus sonhos, o ar que respirava, suas saudades.
A Rainha Beatriz, ( † ) mãe de D. Pedro, ( † ) assumira de boamente o encargo de criar-lhe o filho Fernando, ( † ) recém-nascido, como já o fazia com Maria, ( † ) ambos de seu enlace de cinco anos com Constança.
Pedro, mais acomodado com o socorro materno aos filhos, resolveu arrostar os obstáculos que o separavam de Inês, de quem vivia afastado há meses, em razão do compulsório exílio imposto por seu pai à jovem galega.
Março de 1346.
As primeiras folhas da primavera já enfeitavam os plátanos, pintavam os choupais e carvalhos e coloriam os álamos.
Também a vibrante natureza se manifestava no coração de Pedro, despontando aqui e acolá virentes brotos de vida renovada, rejuvenescendo-o de alguma forma.
As lutas que enfrentava desde que conheceu Inês, alguns anos antes, o envelheceram, sulcando-lhe a face e marcando os cabelos e a barba já longa e mal cuidada.
Ansioso, partiu no início do mês para a fronteira castelã, à busca de Inês, que vivia a solidão e a saudade no Castelo da tia Tereza em Albuquerque, ( † ) fortaleza inexpugnável, reforçada em suas muralhas e torres pelo tio Afonso Sanches ( † ) e pelo primo João Afonso. ( † )
Esse castelo tem expressivo significado histórico para os reinos vizinhos da Península. Em Portugal fora, nos tempos de D. Dinis, ( † ) motivo de sérios desentendimentos.
Um deles ocorreu quando o Rei-Lavrador prestigiou o seu dileto filho bastardo, Afonso Sanches, doando-lhe parte do castelo, em evidente detrimento de Martin Gil, o segundo Conde de Barcelos. seu genro. ( † )
Em Castela, ( † ) o solar foi palco da árdua disputa entre o rei castelão, Pedro, o Cruel, e João Afonso, então adversários, apesar deste ter-lhe sido importante auxiliar, exercendo as funções de mordomo-mor do reino.
O violento soberano não ousou, nos idos de 1354, invadir a fortaleza, optando por envenenar João Afonso.
Pedro, em Albuquerque, após a travessia da fronteira protegida pelos contrafortes da Serra de São Mamede, ( † ) foi recebido com honras dignas de um futuro monarca. Surpreendeu-o a resignada beleza de Inês.
Seus cabelos dourados ainda lhe davam ao semblante a mesma harmonia de tempos atrás, mas a companheira amada mostrava-se abatida, trazendo nos olhos — que refletiam o verde encantador da vegetação que atapetava os vales e outeiros de sua terra natal — o reflexo da dor da separação e das incertezas do futuro, que a acompanhavam no sono sempre agitado por terríveis pesadelos.
Não faltava também a Inês, em seus pensares, a triste realidade de que não conseguia fugir e que a perseguia com a irreversível fatalidade das tragédias gregas: entre ela e Pedro se interpunha a rígida postura do rei português que não suportava aquela união, no seu entender fatídica ao reino.
Após os momentos de alegria pelo reencontro, depois do natural descanso da longa viagem, Pedro a chamou ansioso para conversa mais reservada que se desdobrou em várias outras, dada a gravidade do assunto, e disse-lhe com dificuldade, determinado e aflito:
— Inês, vamos voltar a Portugal!
Vim buscar-te. Vamos construir o nosso ninho de molde a impedir que as grandes tormentas geradas pela incompreensão de meu pai nos atinjam.
Viveremos juntos, nascerão nossos filhos e, quando eu for chamado ao compromisso real, serás a minha rainha.
Segurando-lhe as mãos, Inês o contemplou, complacente, denotando imensa tristeza no semblante. Os misteriosos olhos pareciam buscar no céu azul da primavera nascente o socorro de que necessitava ante a firme decisão de sua alma querida.
Seu porte encantava pela intrigante beleza, impossível de descrever.
Um pouco mais alta que o comum das mulheres de seu tempo, os longos cabelos de um loiro dourado, tecido em cachos discretos, roçavam-lhe o colo, e algumas madeixas lhe cobriam, por vezes, o busto, que, apesar dos rigores quase clericais das vestes da época, destacava-se com a cor suave de uma escultura de alabastro.
O rosto de traços marcantes, contudo suaves, o contorno discreto dos lábios, a pele alva e o brilho dos olhos transmitiam algo de mágico, capaz de hipnotizar, de encantar, de escravizar…
Ao recepcionar o príncipe no solar da tia, à vontade, desataviada, mais amadurecida, apesar de seus vinte anos, não conseguia esconder Inês o arfar do peito, entendendo ter ouvido quase que a confirmação de uma sentença de morte, ao ser compelida a voltar a Portugal pela firme determinação de sua criatura amada.
Naquele fim de tarde, quando recebeu a notícia de Pedro, quase que a intimando a retornar a Portugal, Inês emudeceu. E chorou abraçada ao companheiro, meditando:
— Quanto tempo durará a união que Pedro tanto insiste em perpetuar?
Seus pressentimentos a intranquilizavam, e mesmo as lembranças da Rainha Santa, ( † ) a santa Isabel, que conhecera apenas pelos olhos de Pedro, não lhe devolviam a paz de espírito.
Intimamente perguntava-se o que teria feito a D. Afonso IV ( † ) para merecer do rei tanta hostilidade.
Procurara não interferir na vida conjugal de Pedro com Constança, aceitara o exílio, jamais se intrometera em assuntos de política do reino e seu sonho era, se Deus permitisse, construir o lar com Pedro e os filhos que tivessem.
Nunca prestigiara os intentos de seus irmãos, Fernão ( † ) e Álvaro, ( † ) e do primo João Afonso, ( † ) ansiosos por ocupar espaços no poder, tanto em Portugal ( † ) quanto em Castela. ( † )
Mesmo sem que desse motivos, sentia que seu destino estava irremediavelmente traçado.
Expôs as preocupações quanto ao futuro, mas o infante permanecia inamovível em sua decisão.
Esse reencontro marcou o coração de ambos, oscilando entre o encanto de estarem juntos, após sofrida e perversa separação, e a possibilidade de forças irredutíveis lhes impedirem a união duradoura que tanto buscavam.
Naqueles momentos, vendo-a chorar convulsivamente em seus braços, agarrada a ele, Pedro contemplava-lhe a triste e cativante beleza. Abraçava-a tanto que pareciam fundir-se em um só corpo.
Chegou a cogitar em abdicar do reino. Seu filho já estava sendo criado com todos os cuidados pelos avós e poderia sucedê-lo, se esse fosse efetivamente o problema que tanto afligia Afonso IV.
Mas, tal decisão era complicada. A santa avó, que venerava, falecida dez anos antes, lhe falara muitas vezes de suas responsabilidades quando assumisse o trono.
Substituir o pai parecia-lhe uma fatalidade, coisa do destino, que nem mesmo as forças imperscrutáveis do mistério da vida poderiam mudar.
Inês demorou a ceder e os diálogos se repetiram, exaltando-se Pedro ante as ponderações da mulher sensata que Deus lhe permitira amar, mas que o pai, travestido do poder divino na Terra, insistia em impedir. Nada demoveu o infante.
E, numa manhã do início de abril, partiram juntos.
Nasceram-lhes os filhos durante as fugas da proximidade do poder real, que estava em todo lugar…
Assim eram os rudes reis afonsinos: ( † ) itinerantes, sempre presentes, ora no Porto, ( † ) em Guimarães, ( † ) em Braga ( † ) ou Bragança ( † ) ao norte, ora em Coimbra, ( † ) Alenquer, ( † ) Leiria ( † ) e Lisboa ( † ) descendo para o centro. Não descuravam também do Alentejo, ( † ) com as frequentes visitas a Évora, ( † ) Estremoz ( † ) e alcançavam atentos o Algarve ( † ) mais ao sul, renteando Gibraltar. ( † )
O romance durou 10 anos. No inverno de 1355, a 7 de janeiro, Inês morreria.
Entre a revolta materializada na guerra civil, que as pazes de Canavezes, ( † ) inspiradas dos Céus pela Rainha Santa, ( † ) fizeram cessar, e o remorso de não ter dado ouvidos à mãe e ao amigo Álvaro Pereira, ( † ) Pedro foi caminhando atordoado até assumir o reino dois anos depois.
Em suas noites mal dormidas, o herdeiro despertava aos gritos, falando si mesmo:
— Meu Deus, por que não dei ouvidos à minha mãe? Por quê? Por quê?
A rainha, ( † ) depois que o casal se instalou em Coimbra, um ano antes da morte de Inês, realmente insistia com o filho:
— Fica atento, Pedro, não deixes Inês sozinha. Teu pai vive espreitando…
E aconteceu.
Inês foi covardemente degolada.
O escudo afetivo dos filhos — João Álvaro ( † ) e Dinis, ( † ) com os olhos arregalados, e Beatriz, ( † ) ainda de colo — não demoveu Afonso IV, ( † ) avô de fato dessas pobres e inocentes crianças, mas que não admitia ser sogro de Inês.
Bem que Dinis, com a ingenuidade de seus cinco anos, inocentemente comoveu o avô, balbuciando:
— Vo-vô, vo-vô…
O velho rei ficou lívido ao ouvir as palavras de Dinis e ao contemplar os outros dois netinhos, João Álvaro, que chorava agarrado à mãe, e Beatriz, que já denotava, a despeito de tão pequena ainda, claros sinais da beleza e da obstinação materna.
Afinal as pobres crianças tinham o seu sangue também.
Contudo, sua decisão estava tomada.
Alguma coisa Pedro pôde fazer, além de lamentar ter deixado a companheira desprotegida em Coimbra.
Fez dos filhos infantes com consequentes direitos sucessórios, que, aliás, não se realizaram. Transformou Inês em rainha póstuma e lhe deu sepultura real em Alcobaça. ( † )
Diz a tradição que, em suas meditações no Penedo da Saudade, ( † ) ouvia-se com nitidez o eco de sua voz, reverberando mais além, na outra margem do Mondego, no choupal, ( † ) no mosteiro da Rainha Santa ( † ) e na Quinta das Lágrimas, ( † ) assustando até mesmo os ariscos rouxinóis, silentes em reverência à dor:
— Por que, meu Deus, não acreditei em Inês e em minha mãe? Por quê? Por quê?
Nessas ocasiões de doloroso lamento, tudo silenciava: homens, mulheres, crianças, a criação, a natureza enfim, e mesmo os tordos, os pintassilgos e os rouxinóis, que não ousavam ensaiar seus gorjeios em louvor à vida. A Quinta das Lágrimas assumia ares de soturno sepulcro.
Fala-se também que D. Pedro enlouqueceu.
Seu reinado foi curto e sofrido; sua administração sensata e equilibrada. Afastou-se das guerras.
Nunca esqueceu Inês.
Caio Ramacciotti