O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Mensagens de Inês de Castro — F. C. Xavier / Caio Ramacciotti / Inês de Castro


27

O Penedo da Saudade.
Reencontro de D. Pedro com Inês na Vida Espiritual

Durante toda a elaboração do livro, meditei bastante sobre a história de dor, saudade e renúncia que envolveu o luminoso Espírito de Inês de Castro. ( † )

E, para a conclusão dessa tarefa a mim delegada pelo querido Chico, busquei mergulhar de corpo e alma no drama medieval, até para compreender melhor as razões de tão insólito sofrimento.

Viajei, assim, em pleno verão europeu, desprendendo-me do envoltório físico, nas asas livres da imaginação, até Coimbra, ( † ) aportando inicialmente no Penedo da Saudade, ( † ) assim denominado, segundo a lenda, por D. Pedro, ( † ) que, rezam também as tradições, ali se refugiava para chorar a morte de Inês.

Do Penedo busquei sentir de perto os mistérios da cidade.

Era noite no hemisfério boreal, e as claridades do céu português, recamado de estrelas, convidavam à meditação.

Extasiado, contemplei o grande triângulo de verão, formado por Vega, ( † ) Altair ( † ) e Deneb, ( † ) estrelas alfa de Lira, Águia e Cisne.

Insinuava-se, também, no céu, com seu inconfundível traçado, Escorpião, ( † ) constelação familiar aos brasileiros, ostentando, incrustada em seu coração, Antares, ( † ) a vetusta estrela vermelha.

No horizonte norte, destacava-se a magnitude de Capela ( † ) no contorno pentagonal de Auriga. ( † ) E, ainda pelas bandas do norte, surgia imponente a Estrela Polar, ( † ) que guiou os navegantes lusitanos ao tempo das conquistas marítimas.

Desviando o olhar do espaço sideral, contemplei as águas mansas do Mondego ( † ) e o choupal baloiçado pelo vento.

À margem esquerda do rio, lado oposto ao núcleo histórico da cidade, com o casario se esparramando pela colina, divisei, enfim, envolvidos em mistérios indecifráveis, a Quinta das Lágrimas ( † ) — com a Fonte a jorrar água de matiz avermelhado — o velho mosteiro e o Paço de Santa Clara. ( † )

Suponho ter chegado ao local onde a jovem fora decapitada pela lâmina afiada do infeliz Brás, humilde serviçal do reino, e penso ter visto, naqueles mágicos momentos, a piedosa freira do convento recompondo o corpo da mulher, arrancada ao convívio dos filhos tão pequeninos. E, envolvido pela beleza lúgubre do ambiente em que as crianças atônitas se agarravam à bondosa Ana, lembrei-me das palavras que o Chico, mediunizado, escreveu:


E somente quando viu D. Pedro render-se ao amor materno, em Marco de Canaveses, ( † ) sob a proteção e inspiração da grande Isabel, é que Inês, consciente de sua própria desencarnação, caiu também vencida pela humildade de Isabel, concordando em retirar-se da presença de D. Pedro — para que ele seguisse em seus novos empreendimentos — acolhendo-se nos braços maternais da Rainha Santa, ( † ) saindo da paisagem portuguesa, orando e soluçando…


Pedro faleceu em Estremoz. ( † )
Imediatamente após sua morte física, conforme relato espiritual, nos estertores da madrugada de 18 de janeiro de 1367, acamado, foi transportado por Benfeitores até o pátio do Paço de Santa Clara, ( † ) em Coimbra, ( † ) cidade que muito amava: lá nascera e vivera com Inês e as crianças.

Preciso relatar ao leitor algo inédito que aconteceu comigo, durante a minha inesquecível viagem a Coimbra, que se iniciara no Penedo e que, no princípio deste capítulo, descrevo com detalhes.

Meus olhos contemplavam fixos, imantados, a Fonte das Lágrimas, ( † ) poeticamente considerada o local do suplício de Inês…

As horas passavam sem que me apercebesse de que o tempo fluía, e, perplexo, fui envolvido pelos primeiros albores da manhã. Embora vacilantes, os raios de sol ousavam passar pela ramaria das árvores, clareando o pátio do antigo palácio real.

Uma força misteriosa que jamais sentira fixou-me o olhar no ponto onde, a 7 de janeiro de 1355, Inês fora decapitada.

Seis séculos e meio antes!
Uma voz falou carinhosamente, como que sussurrando em meu ouvido: veja, veja…

Afirmo, caro leitor, que foi a mais impressionante cena que presenciei em toda a minha existência de mais de seis décadas. Tudo se passou como se eu tivera efetivamente sido transportado aos tempos medievais.


Acomodado naquele espaço do pátio, em um leito simples e muito alvo, dorme profundamente um homem de semblante cansado. Barbas brancas descuidadas, rosto lívido, lembra os enfermos que, exaustos, desistem de lutar pela vida, entregando-se a pouco e pouco aos braços da morte.

Transcorridos alguns minutos que me pareceram uma eternidade, o homem, muito abatido, abre os olhos, contempla vagamente o ambiente e, enfim, fixa o olhar no lado do coração, qual identificando alguém muito querido. Visivelmente emocionado, perplexo, grita:
— Inês, Inês, tu voltaste?

E fala com dificuldade algumas palavras:
— Quanto tempo eu te esperei. Tu morreste, como estás aqui ao meu lado?
Estás tão bela, teus cabelos voltaram a ser louros e longos, e teu colo irradia a mesma beleza de antes. Meu Deus, não foi assim que te vi, quando teu corpo foi recomposto para que pudesse levar-te a Alcobaça! ( † )

Não consegue continuar. Seus olhos parecem fitar um mundo que não mais existe, impiedosamente destruído há doze anos…

Vendo que Pedro chora convulsivamente, com as lágrimas lhe escorrendo pelo rosto sofrido, Inês pondera:
— Calma, Pedro, eu estou aqui, voltei para não mais nos separarmos. Não chores mais.
— Como? Retrucou Pedro. Voltaste para mim? E o machado que te decepou a vida? Foi tudo um sonho? Ajuda-me, Inês, estou confuso, minha cabeça gira, e não compreendo nada…

Levando-lhe carinhosamente uma chávena de água efluviada à boca, a esposa lhe diz:
— Pedro, estás muito cansado, toma um pouco desta água, por favor.

Pedro sorveu alguns goles com muito esforço e acalmando-se pôde ouvir as palavras da querida companheira:
— Teus sofrimentos cessaram, Pedro.
Nosso Senhor Jesus Cristo permitiu-me vir buscar-te.

— Como assim, Inês, estou ficando louco? Tu não foste para o Céu, junto dos anjos e de minha avó?

— Não, alma querida de minha vida. Nós não morremos. Apenas deixamos o corpo cansado na Terra e partimos para outra vida. Não te surpreendas com o que afirmo, pois tua santa avó sempre pensou assim. Acalma-te, por favor, pois preciso falar-te.

Esquece os conceitos tradicionais de Céu e Inferno destes tempos nossos. A realidade é outra, Pedro. Depois, explico-te com mais calma.
— Não compreendo, Inês. O raciocínio foge-me, sinto-me atordoado…
— Ouve, pelo amor que me dedicas…

A presença de Inês e o efeito do bálsamo foram acalmando o rei, não obstante as lágrimas insistissem em cair-lhe dos olhos, penetrando-lhe a barba hirsuta.

E Inês continuou:
— Acabas de deixar o mundo para viver comigo em outras paragens, onde as Leis Divinas prevalecem sobre o ódio.
Vem, Pedro, esquece o corpo enfermo, gasto e torturado pelas lembranças de nossos tempos felizes.

Pedro não conseguiu contestar as palavras de Inês, pois suave sonolência o envolveu. Mas, com dificuldade falou, sussurando:
— Onde estão os nossos filhos, Inês? Preocupo-me muito com eles.
O nosso João ( † ) e o Dinis, ( † ) ainda adolescentes, e Beatriz, ( † ) tão criança… Já ficaram sem tua presença e agora…

Inês interveio.
— Calma, meu rei e senhor, nós lhes demos muito amor e nada a eles faltará. Ao transformar-me em rainha depois de morta, deste-lhes as condições para que crescessem como nobres, amparados pela Corte. E muito mais do que tudo, tu os amaste profundamente.

— Mas, tão pequenos, como viverão sem mim, já que tu não pudeste educá-los e amá-los como sempre sonhamos?
Fiz, Inês, o que pude. Transformei-te em rainha, como és a Rainha de meu coração. Cuidei deles como se tu estivesses presente, mas, agora, imobilizado como estou, sem poder sequer movimentar-me no leito em que me encontro, como serão para os queridos filhos as noites longas, sem nossa presença?

— Estaremos sempre com eles, pois Deus está conosco. Agora descansa, Pedro, precisas recuperar as energias tão desgastadas…


E o ambiente começou a asserenar-se. Pedro, quase que dormindo, divisou, envolta em singular luminosidade, a avó querida, que, flutuando no espaço, acercou-se dele e lhe impôs a mão sobre a cabeça, dizendo:
— Dorme, meu neto querido…

Ao lado da Rainha Santa, ( † ) estava Beatriz, ( † ) mãe do atribulado monarca, rainha boa e sincera, cujas virtudes a história não destacou. E, um pouco mais afastado, Pedro ainda contemplou a figura imponente do pai, D. Afonso IV. ( † )

O bravo rei trazia, em seu olhar, um misto de ternura e melancolia. Emocionado, apenas pôde dizer:
— Meu filho, meu filho…

Pedro, amparado por Inês e pela avó, foi recolhi do ao Plano Espiritual.

A manhã já se afirmara no Paço Real, ( † ) aquecida pelos raios de sol, deixando para trás a fria madrugada de inverno. Os movimentos da vida se faziam lentamente presentes.

Poucos mas ousados estorninhos se desgarravam das árvores, mergulhando no céu límpido, em graciosas arremetidas. Ouviam-se vozes de escassos transeuntes, e algumas vergônteas, muito raras em verdade, já se arriscavam a desabrochar nos ramos secos do arvoredo, insistindo em prenunciar a ainda distante primavera…


Caio Ramacciotti


Texto extraído da 35ª edição desse livro, revisto e ampliado pelo autor.

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