Em agosto de 1340, sob o reinado de Afonso IV, ( † ) celebram-se em Lisboa as cerimônias de casamento entre o infante D. Pedro ( † ) e D. Constança Manoel, ( † ) do vizinho reino de Castela.
A união foi sacramentada segundo as razões de Estado, e não do coração, envolvendo interesses recíprocos de Portugal e Castela.
O esponsalício nada trouxe de novo em suas feições pragmáticas.
Estavam presentes o rei e sua consorte D. Beatriz, ( † ) a nobreza que abarrotava a catedral e os noivos atônitos, perplexos diante de tanta pompa e pouco amor.
Pelo inusitado desses fatos, mais tarde voltaremos a eles. Se não para justificar o amor extemporâneo que já se manifestava entre D. Pedro e Inês de Castro ( † ) (filha ilegítima de influente nobre da corte de Castela e dama de companhia de D. Constança, a esposa escolhida), ao menos para mostrar como eram tratados os assuntos do sentimento no período medieval, em que se tolhia a liberdade ao homem e à mulher, fosse na corte e na nobreza ou entre a população humilde.
Vejamos a descrição do casamento de Pedro e Constança, feita, do Plano Espiritual, pela testemunha ocular de então, Inês de Castro, que, chocada, apercebeu-se de que quem se casava com D. Constança Manoel era alguém cuja presença lhe magnetizara as fibras recônditas do coração:
1 Minha memória voltou no tempo a fim de rever-vos pela primeira vez, na Sé de Lisboa, quando se vos confirmou a união com a Rainha Dona Constança Manoel.
2 Lembrei-me de que todos os aparatos da solenidade, com que El-Rei D. Afonso IV e a sua Real Esposa, a Rainha Dona Beatriz, quiseram marcar com grandeza inesquecível o grande acontecimento, desapareceram de minhas impressões.
3 Via apenas a Vós, amado rei, a Vós, que me povoáveis todos os sonhos, herói e soberano, que eu supunha existir exclusivamente no mundo iluminado de minhas esperanças.
4 De espírito surpreso, qual se vos visse, como num sonho, após sairdes de mim mesma, para se me revelar ali, no seio da multidão, compreendi, de súbito, que éreis a corporificação de todo o Amor a que eu aspirava, mas o êxtase não me anulou a noção da realidade.
5 A jovem bastarda dos Castro deveria sufocar o enlevo nos recessos do coração, da mesma forma com que aferrolhava o sonho nas profundezas da alma.
6 E chorei, dando a ideia de que as emoções da festividade me dominavam, quando, no íntimo, me reconhecia em lágrimas, à frente das muralhas invisíveis das leis humanas, que ainda hoje separam as criaturas com mais impenetrabilidade que a dos muros de pedra.
7 Via-vos sem a possibilidade de tocar-vos, extasiava-me com a vossa presença, sem a mínima esperança de respirar-vos a convivência.
8 Debalde, procurei afastar-me de vossa real presença, receando trair-me ou ferir a benfeitora que me situara no séquito em que se fazia representar.
9 Todas as circunstâncias, amado rei, me contrariaram os propósitos, e as obrigações da função me colocavam diante de vós, sentindo-me na condição da criatura que, de certo modo, vos enodoava a real aparição, com o amor oculto que vos devotava.
10 Ignoro, amado soberano, se vos recordais do dia em que dissestes amar-me, dia em que caí no leito, como se um raio me houvesse traspassado o coração. As vossas palavras eram tudo o que eu queria ouvir, mas também tudo o que não me seria permitido escutar.
11 Uma febre desconhecida me queimou as entranhas, e em delírio chamei por vós, como sendo meu anjo guardião e meu salvador.
12 Amigas prudentes foram suficientemente leais para se compadecerem de mim, sem me comentarem as alucinações, e, desde então, começou para mim a vida nova, na qual se entrechocavam o meu reconhecimento pela Senhora que me colocara em serviço e a paixão por vós, que me governou a vida e o coração para sempre.
13 Refiro-me a isso, amado soberano, para reafirmar que não vos esqueço, que gravitarei sempre em torno de vós, com a força do destino que caracteriza a movimentação de um satélite caudatário de um astro.
14 Amado rei, não tenho outra vida que não seja a vossa própria vida em mim. E amo-vos não só a beleza angélica, mas igualmente a vossa formação espiritual e a vossa justiça, a vossa integridade de caráter e grandeza de coração. Amado rei e senhor meu, sede bendito por toda a felicidade que me trouxestes. Confio em vossa firmeza de ânimo e estou em preces a Deus para que todos os vossos deveres para com os vossos entes queridos, que são igualmente amados meus, se façam valorosamente cumpridos.
15 Amado rei e senhor meu, estais em meu pensamento dia e noite. Penso, muitas vezes, que sou um fragmento de vossa grandeza ou uma pequenina parcela de vosso coração magnânimo e sei que sou um singelo feixe de vossos reflexos.
16 Amado rei, eu vos amo!
17 Somente a vós, unicamente a vós e tão somente por vós, atravessei longos caminhos, às vezes, encharcados de lágrimas, para encontrar-vos. Nunca vos esqueço, nunca vos esquecerei. Como deixar-vos sendo eu vós mesmo dentro de mim?
18 Se estiverdes tranquilo, a paz estará igualmente em mim, vossa alegria é a minha alegria, e um pingo de vossa tristeza, quando essa tristeza aparece, tem o tamanho de uma nuvem no meu coração.
19 Amado Soberano, Deus vos abençoe e vos guarde, assim como vos rogo proteger e lembrar sempre quem vive de vós e por vós.
20 Sempre convosco para sempre.
Inês de Castro
Anexo
Galiza ( † ) — Onde nasceu Inês de Castro. ( † ) Nela observamos do alto a vista da planície, com o rio, os charcos espalhados pelas várzeas e os montes mais apagados no horizonte. No poema que colocamos no capítulo que se inicia, nota-se a semelhança entre a vista panorâmica da cidade e o cenário que Inês descreve em seus belíssimos versos. Certamente trazia ela guardada do Castelo de Lemos, em Monforte, ( † ) em sua memória prodigiosa, a imagem da cidade que deixou ainda criança. [Hoje, no local, do Castelo de Lemos só existem os vestígios do antigo castelo, com parte da muralha e dos cubos defensivos da Torre de Mensagem.] ( † ) ( † )
Caio Ramacciotti