Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? — (Clarice Lispector)
Estamos nos primeiros dias de janeiro de 1355, em pleno inverno português.
Na alcáçova ( † ) do Castelo de Montemor-o-Velho, ( † ) arredores de Coimbra, Afonso IV ( † ) meditava, alongando o olhar pelos campos do Mondego, ( † ) cujas águas frias embalavam plácidas e pacientes seu melancólico destino de perder-se no Atlântico.
O último quartel de seu reinado não estava sendo fácil, pensava o rei, cofiando a barba em desalinho.
Assumira o reino em 1325, com a morte de D. Dinis. ( † ) As lutas contra a invasão moura prosseguiam após o decesso do pai, embora já mais distantes de Portugal, e teriam seu epílogo quinze anos depois de sua posse, com a Batalha do Salado ( † ) ao sul da Península, praticamente cessando, então, o envolvimento árabe na região.
Em 1328 casara sua filha dileta, Maria, a Formosa, ( † ) com o rei da vizinha Castela, Afonso Onzeno, ( † ) que a repudiaria dois anos depois para viver com Leonor de Gusmão, ( † ) não obstante dividisse sua alcova com ambas, tendo delas filhos reis que o sucederam.
Ao longo da década de 1330, tivera Afonso IV outro problema com Afonso Onzeno, dessa vez ligado ao casamento contratado para o filho.
Logo no início dos anos 30, acertara D. Afonso IV o matrimônio de Constança Manoel ( † ) — que o rei castelão havia repudiado no princípio de seu reinado — com seu filho Pedro, ( † ) o herdeiro do trono. Mas, para conseguir trazê-la a Portugal, precisou encetar, em 1336, guerra de quase quatro anos contra Afonso Onzeno.
Mesmo assim, o conflito apenas terminou porque Castela enfrentava dificuldades em suas lutas com os muçulmanos concentrados próximo ao Estreito de Gibraltar, ao sul da Península Ibérica, e não teve alternativa o rei castelão senão socorrer-se de Afonso IV.
Constança, enfim, foi liberada para dirigir-se a Portugal. Sua união com Pedro consolidou-se em agosto de 1340, na Sé de Lisboa, ( † ) e, pouco tempo depois das cerimônias nupciais, o Rei-Guerreiro pôde partir para as terras do sul, a fim de ajudar o soberano castelão, destacando-se como o herói da Batalha do Salado. ( † )
Tudo isso, no entanto, era passado, e, apreensivo, naqueles momentos de reflexão, Afonso IV por vezes desviava o olhar perdido dos campos de Montemor-o-Velho para o interior do palácio, onde se realizaria, em poucos minutos, a reunião extraordinária com seus conselheiros. Mas as recordações do passado não o deixavam…
Justamente quando imaginava poder dedicar-se às questões administrativas do reino, após o casamento do filho e o sucesso das refregas no sul, eis que surge uma nova dificuldade: na Catedral de Lisboa, Pedro, em vez de envolver-se com as cerimônias ao lado da futura esposa, não conseguia despegar os olhos a Inês, dama de companhia de Constança.
O insucesso do casamento de Pedro e sua inesperada paixão por Inês de Castro ( † ) atormentavam-no muito, por razões de natureza política, sobretudo as alianças celebradas em decorrência do matrimônio contratado com a vizinha Castela.
Nada separava Pedro de Inês, e o rei chegou, alguns anos depois, em 1344, a exilar a jovem galega em território castelão, no Solar dos Albuquerques. Sem resultado…
Os contatos continuaram e, com a morte de Constança, em fins de 1345, decorrente do parto de Fernando, ( † ) D. Pedro vai buscar Inês em Albuquerque, logo no início de 1346, e juntos passam a viver pelos dez anos seguintes, contrariando o príncipe os apelos do pai.
O casal procura isolar-se da corte, próximo ao mar, a oeste da região central de Portugal, e posteriormente ao Norte, na Quinta de Canidelo, em Vila Nova de Gaia, ( † ) na foz do Douro.
Pedro, em 1354, deixa, porém, o estratégico anonimato e muda-se para Coimbra, vivendo com Inês e os filhos no Paço de Santa Clara, ( † ) tornando-se o casal mais visível ao reino.
Álvaro, o irmão de Inês, e o primo João Afonso ali se hospedaram, constituindo-se, assim, de certa forma, no Paço da Rainha, um simulacro de pequena corte estrangeira em Portugal.
Era demais para o rei, também às voltas com a recente Peste Negra, ( † ) cujas consequências — os ingentes sofrimentos à população do reino — ainda enfrentava.
Excogitações políticas de toda natureza o preocupavam. Assombravam-no a proximidade afetiva de Pedro com Castela e o eventual risco de um dos filhos do infortunado casal se tornar, no futuro, rei de Portugal.
Era preciso decidir sobre aquela união espúria, segundo os seus conceitos rígidos, que o futuro mostrou serem baldos de razão.
Com a cabeça envolvida nesse mar de apreensões, inquieto, a passos lentos, o rei de estatura gigante e habituado a decisões firmes voltou à sala do Paço Real. ( † )
Aguardavam-no para a reunião adrede convocada os membros de seu conselho real a fim de juntos definirem a sorte de Inês.
O processo encerrou-se rapidamente. Não teve começo, meio ou fim. A ponderação e o sentimento não estavam efetivamente presentes ao soturno diálogo entre o rei e seus conselheiros. Três deles insistiram na condenação da jovem mãe: Diogo Lopes Pacheco, ( † ) Álvaro Gonçalves ( † ) e Pero Coelho. ( † )
Determinou-se que Inês seria degolada, e com rapidez, pois o rei já sabia que o príncipe se ausentaria de Coimbra para caçar, como era do seu gosto, acompanhado do cunhado Álvaro Pires de Castro. ( † )
Nas páginas seguintes, surgem, em toda a sua dor, a tragédia e seus desdobramentos.
Caio Ramacciotti