1 Uma história da vida, em moldura de lenda,
O estudo sobre a fé aqui se recomenda.
2 Dizem que num relvado uma lagarta nobre
Jamais acreditava em outra vida.
Afirmava que o nada tudo encobre,
Que a morte tudo leva de vencida.
Por isso, certa feita,
Intérprete fiel da palavra escorreita,
Foi instada a falar em sentido direto
À grande multidão de lagartas reunidas,
Sobre a força da morte,
A rainha das forças desmedidas,
Com que as prende aos casulos,
Semelhantes a esquifes
Ou a cárceres nulos
Nos quais se lhes transvia a mente em abandono…
3 O que seria a morte? Um simples sono,
A cinza, o esquecimento, o fim de tudo?
4 Após ouvir-lhes as indagações,
A lagarta oradora,
Fazendo os gestos de quem se servia
Do mais formoso dos sermões,
Falou em alta voz, com ardente euforia:
5 — Companheiras irmãs!
Não cultiveis ideias vãs,
A morte é pó e cinza, treva e nada,
Não existe outra vida…
Embora quando a fé mais pura nos convida
A meditar em Deus,
A razão permanece ao lado dos ateus.
6 Tenho buscado, a fundo,
Tudo quanto se fala em morte sobre o mundo
E a verdade, em que tudo se descerra,
Diz que a morte aniquila
Tudo o que vive sobre a Terra…
7 A vida toda, em si, é uma trama nefasta;
Uma lagarta surge,
Luta, sofre e se arrasta,
E encontra, mais além, a sombra e a terra fria…
A morte nos destrói, dia por dia,
Não guardeis ilusões, nem retenhais quimeras…
Isto foi sempre assim, desde o berço das eras.
8 Lagartas! Somos lagartas simplesmente
Que a morte destruirá, chegando irreverente…
Outra vida não há! A fé sempre resulta
Em cinzas da mentira que se oculta,
A vida é apenas hoje, nada mais…
Ai de nós!… ai de nós!…
E a culta expositora repetia
Erguendo, sempre mais, o tom de voz:
— Somos simples mortais!…
9 Nisso, ela desmaiou diante da assembleia,
Fenecera-lhe a voz, finara-se-lhe a ideia,
E a lagarta imponente
Transformou-se, de todo, quase que de repente
Num casulo pendente
Da folha em que falava…
Toda a comunidade boquiaberta
Seguia aquela morte inesperada,
De ânimo firme e atento,
Esperando que a noite, a chuva e o vento
Fizessem do casulo
Um dedal de poeira, cinza e nada.
10 Mas, depois de alguns dias
De discussões e fantasias,
Do casulo esquisito e ressecado
Surgiu um novo ser, maravilhoso e alado.
A lagarta oradora
Passara por ação renovadora;
Era agora uma grande borboleta
De asas amplas, em linda cor violeta,
A voar sobre as flores nas ramadas…
11 A ex-lagarta,
Culta e materialista,
Sem querer, transformara-se… E foi vista
Pelas amigas deslumbradas
Na condição de um ser de expressão bela e fina…
Parecia uma leve bailarina
Dançando ao céu azul, sob luzes douradas.
Maria Dolores
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