I
1 Duarte Nunes enriquecera. Duas grandes farmácias, muito bem dirigidas, eram para ele duas galinhas de ovos de ouro. Dono do próprio tempo, não sabia usá-lo da maneira mais nobre e, por isso, estimava nas grandes emoções suas grandes fugas.
Corridas de cavalos, corridas de automóveis, concursos de lanchas…
2 Entusiasta de todos os esportes. Gastador renitente.
Apesar disso, era bom esposo e bom pai. De vez em vez, levava os filhinhos, Marilene e Murilo, às brigas de galos. O belo casal de garotos, porém, não gostava. Marilene voltava o rosto para não ver, e Murilo, forte petiz de quatro anos, chorava desapontado.
3 — Poltrão! — Dizia o pai, com adocicada ironia. E colocava os dois no carro para longo passeio. A esposa, muitas vezes presente, rogava aflita: “Nunes, mais devagar”. Ele, porém, sorria, sarcástico, e dava largas ao freio. Sessenta, oitenta quilômetros…
4 Noutras circunstâncias, era Elmo Bruno, o amigo inseparável, que advertia, quando o carro de luxo parecia comer o chão:
— Não corra assim tanto… Olhe os pedestres!
— Que tenho eu lá com isso?
5 E Bruno explicava:
— Há pessoas distraídas, e crianças inconscientes. Nem sempre conseguem, de pronto, ver os sinais…
Duarte encerrava o capítulo, acrescentando:
— Rodas foram feitas para rodar. E depressa.
6 De outras vezes, era o próprio pai dele a aconselhá-lo, enquanto o veículo parecia voar:
— Meu filho, é preciso prudência… O volante pede calma… Penso que, além dos quarenta quilômetros, tudo é caminho para desastre …
— Frioleiras, papai, — respondia Nunes, bem humorado, agravando o problema.
Sempre que exortado, corria mais.
II
7 — Meninos de apartamento, aves engaioladas! — Dizia a mamãe Duarte Nunes, abraçando os netos.
— Então, — disse o pai, sorrindo, — preferem vovó?
— Sim, sim…
8 Decorridos minutos, saem todos na manhã domingueira.
Dona Branca desce com a nora, amparando as crianças, ao pé da própria casa a pleno sol de Ipanema e declara:
— Nossos pássaros prisioneiros querem hoje a largueza da praia. Vamos respirar… — Riram-se todos.
9 E o auto, conduzindo Nunes e Elmo, saiu em disparada.
Mais tarde, Petrópolis.
Amigos improvisavam corridas de bicicletas. Bandeirinhas. Anotações. Relógios em massa. Homens magros, pedalando, ansiosos e, por fim, o ágape em hotel serrano, sob árvores farfalhudas.
10 Ao virar da tarde, o regresso.
Todo o Rio inda vibra de sol.
— Porque não buscar, primeiro, a cerveja pura e gelada, em Copacabana? — perguntou Nunes, contente.
O carro devora o asfalto.
— Devagar, devagar… — Pede o amigo.
11 Depois da cerveja, o retorno a casa. Nunes inicia a marcha, como quem decola.
— Devagar, devagar, — roga o companheiro.
Ele ri. Desatende. A poucos minutos, ambos veem um pequeno em maiô. Está só. Agita-se. E corre de través procurando o outro lado. Nunes tenta frear, mas é tarde. Atropela o garoto que tomba qual pluma ao vento.
12 Populares gritando. O menino estendido na rua é um pássaro que agoniza.
Sangue. Muito sangue. Nunes aflige-se. Elmo volta e vê. Ergue a criança, espantado, e caminha no rumo dele.
— Seja quem for, — grita Nunes, — leve à nossa farmácia… Toda a despesa gratuita…
13 Todavia, o amigo, boquiaberto, apresenta-lhe o menino morto e exclama:
— Nunes, este menino é…
— É quem? Diga logo, — falou Nunes, impaciente.
Mas não precisou de maiores minúcias, porque Bruno, traumatizado, disse-lhe apenas:
— É seu filho…
Irmão X
(Humberto de Campos)
Essa mensagem foi publicada originalmente em 1964 pela FEB e é a 32ª lição do
livro “Contos desta e doutra vida.”