1 Penetrando o compartimento em que Margarida descansava, lá nos aguardavam os dois hipnotizadores em função ativa.
2 Gúbio pousou significativo
olhar em Saldanha e pediu-lhe em tom discreto:
— Meu amigo, chegou a minha vez de rogar. Releva-me a identificação, talvez tardia aos teus olhos, com relação aos objetivos que nos prendem aqui.
3 E, denunciando imensa comoção
na voz, esclareceu:
— Saldanha, esta senhora doente é filha de meu coração desde outras eras. Sinto por ela o enternecimento com que cuidaste, até agora, do teu Jorge, defendendo-o com as forças de que dispões. Eu sei que a luta te impôs acerbos espinhos ao coração, mas também guardo sentimentos de pai. Não te merecerei, porventura, simpatia e ajuda? Somos irmãos no devotamento aos filhos, companheiros da mesma luta.
4 Observei, então, cena comovedora
que, minutos antes, se me figuraria inacreditável.
O perseguidor da enferma contemplou o nosso Instrutor com o olhar dum filho arrependido. Grossas lágrimas brotaram-lhe dos olhos antes frios e impassíveis. Parecia inabilitado a responder, diante da emotividade que lhe dominava a garganta; todavia, Gúbio, enlaçando-lhe fraternalmente o busto, acrescentou:
5 — Passamos horas
sublimes de trabalho, entendimento e perdão. Não desejarás desculpar
os que te feriram, libertando, enfim, quem me é tão querida ao Espírito?
6 Chega sempre um instante
no mundo em que nos entediamos dos próprios erros. Nossa alma se banha
na fonte lustral do pranto renovador e esquecemos todo o mal a fim de
valorizar todo o bem. 7
Noutro tempo, persegui e humilhei, por minha vez. Não acreditava em
boas obras que não nascessem de minhas mãos. Supunha-me dominador e
invencível, quando não passava de infeliz e insensato. Considerava inimigos
quantos me não compreendessem os caprichos perigosos e me não louvassem
a insânia. Experimentava diabólico prazer, quando o adversário esmolasse
piedade ao meu orgulho, e gostava de praticar a generosidade humilhante
daquele que determina sem concorrentes. 8
Mas a vida, que faz caminhos na própria pedra, usando a gota d’água,
retalhou-me o coração com o estilete dos minutos, transformando-me devagar,
e o déspota morreu dentro de mim. O título de irmão é, hoje, o único
de que efetivamente me orgulho. 9
Dize-me, Saldanha amigo, se o ódio está igualmente morto em teu Espírito;
fala-me se devo contar com o abençoado concurso de tuas mãos!
10 Eu e Elói tínhamos lágrimas
ardentes, diante daquela doutrinação emocionante e inesperada.
Saldanha enxugou os olhos, fixou-os, humilde, no interlocutor bondoso e asseverou, comovendo-nos:
— Ninguém me falou ainda como tu… Tuas palavras são consagradas por
uma força divina que eu não conheço, porque chegam aos meus ouvidos,
quando já me encontro confundido pelos teus atos convincentes. 11
Faze de mim o que desejares. Adotaste, nesta noite, por filhos de teu
coração todos os parentes em cuja memória ainda vivo. Amparaste-me o
filho demente, ajudaste-me a esposa alucinada, protegeste-me a nora
infeliz, socorreste-me a neta indefesa e repreendeste os que me perturbavam
sem motivo justo… 12
Como não enlaçar, agora, as minhas mãos com as tuas na salvação da pobre
mulher que amas por filha? Ainda que ela própria me houvesse apunhalado
mil vezes, teu pedido, após o bem que me fizeste, redimi-la-ia ao meu
olhar…
13 E, detendo a custo o pranto
que lhe manava espontâneo, o ex-perseguidor acentuou, com expressão
respeitosa:
— Poderoso Espírito e bom amigo, que me procuraste na condição do servo apagado para acordar-me as forças enrijecidas no gelo da vingança, estou pronto a servir-te! Sou teu de ora em diante!
— Seremos de Jesus para sempre! — Corrigiu Gúbio, sem afetação.
14 E abraçando-o efusivamente,
conduziu-o a pequeno aposento próximo, naturalmente para organizar plano
de ação eficiente e rápido.
2.
Somente aí me lembrei de que nos achávamos na presença de ambos os hipnotizadores
em função ativa, junto ao casal em repouso. 2
Um deles se revelava inquieto e demonstrava-se francamente compreensivo;
notava que algo de extraordinário se passava, mas, talvez compelido
por votos de disciplina, não se animava a dirigir-nos palavra. 3
O outro, todavia, não acusava qualquer emoção. Continuava alheio ao
drama que vivíamos. Figurava-se um autômato em serviço, impressionando-me
particularmente pela impassibilidade do olhar.
4 Alguns minutos transcorreram
pesados, quando Gúbio e Saldanha retornaram à cena.
O ex-obsessor de Margarida mostrava-se mudado, quase imponente. Via-se-lhe no porte a renovação de rumo interior.
5 Certo, estabelecera novo
programa de luta, em companhia do nosso dirigente, porque chamou o hipnotizador
mais vivo, a conversação particular.
Próximos de mim, a palestra desdobrou-se clara.
— Leôncio, — disse Saldanha, entusiasmado, — nosso projeto mudou e conto com
a tua colaboração.
— Que houve? — Indagou curiosamente o interpelado.
— Um grande acontecimento.
6 E prosseguiu, transformado:
— Temos aqui um mago da luz divina.
Em traços rápidos, narrou-lhe os sucessos da noite, em comovedora síntese, terminando por apelar:
— Poderemos contar contigo?
— Perfeitamente, — esclareceu o companheiro, — sou amigo dos amigos, não obstante
os riscos da empresa.
7 E designando com um golpe
de olhar o outro magnetizador que prosseguia operando ao lado de Margarida,
em serviço automático, objetou:
— É indispensável, porém, todo o cuidado com Gaspar, que não se acha em condições de aderir.
— Tranquiliza-te, — esclareceu Saldanha, mais atencioso, — providenciaremos
tudo.
3.
Mostrou Leôncio estranho brilho nos olhos e, dirigindo-se ao ex-chefe
de tortura, falou súplice:
— Escuta! Conheces meu problema. Já que foste socorrido pelo mago, não poderei receber contribuição dele por minha vez? Tenho na Terra a esposa seduzida e o filho à morte.
2 Imprimindo inolvidável acento
à voz, observou:
— Saldanha, não desconheces que sou criminoso, mas sou pai ainda… Se eu pudesse livrar o filhinho da revolta e da sepultura enquanto é tempo, considerar-me-ia sumamente feliz. Sabes que um condenado não deseja igual sorte para os rebentos do coração!
3 Ante o choroso apelo, Saldanha
não hesitou:
— Bem, — tornou um tanto embaraçado, — procura o benfeitor Gúbio e expõe-lhe
o caso com franqueza.
4 Leôncio não se fez rogado.
Acercou-se, respeitoso, de nosso Instrutor e explicou-se, simplesmente, sem rebuços:
— Amigo, acabo de saber com que devotamento mobilizas tua força, a benefício de criaturas desviadas do bem, como nós, que nos sentimos desprezíveis diante de todos. É por isto que também venho implorar-te auxílio imediato.
5 — Em que poderemos ser úteis?
— Indagou o orientador, cortês.
— Passei para cá, há longos sete anos, e deixei no mundo minha mulher
e um filhinho recém-nato. Voltei, moço ainda, sufocado no esgotamento
pelo trabalho excessivo em busca do dinheiro fácil. Obtive, realmente,
o que intentara, com a provisão de vastos depósitos bancários com que
a esposa ainda se mantém, até hoje, a coberto de todas as necessidades.
6 O desespero, a ânsia
inútil por retomar o corpo que abandonara, a vaidade ferida, converteram-me
no colaborador desumano de que Gregório, o nosso chefe, tanto se orgulha…
Ai de mim, porém, que me sentia dono exclusivo dos encantos da mulher
que eu adorava! 7 De
dois anos para cá, minha infortunada Avelina passou a escutar as fantasiosas
propostas de um enfermeiro que se aproveitou da fragilidade orgânica
de meu filhinho para insinuar-se sobre o ânimo da pobre mãe, viúva e
jovem. Chamado a prestar socorro ao menino, depois de um incidente sem
importância, o profissional percebeu as preciosidades materiais da presa
cobiçada. Desde então, assediou-me a esposa sem descanso e passou a
envenenar meu pequeno, pouco a pouco, à força de entorpecentes, administrados
por ele, seguindo um plano cruel. 8
No decurso do tempo, conseguiu de Avelina quanto queria: dinheiro, ilusões,
prazeres e promessa de casamento. Acredito que o consórcio se realizará,
dentro de breves dias, e já me resignei a semelhante acontecimento,
porque a alma encarnada respira sob teia grossa de pesadelos e exigências,
mas o perseguidor embuçado, sentindo em meu filho um concorrente forte
aos bens que amontoei, procura aniquilá-lo sem pressa, roubando-lhe,
calculado e ingrato, o ensejo de viver para um futuro digno e feliz.
9 Interrompeu-se, por alguns
momentos, e prosseguiu, comovido:
— Francamente, envergonho-me de suplicar um favor que não mereço, mas o Espírito
pervertido, como eu, que pede recursos salvadores para os entes amados,
guarda consciência do próprio infortúnio no mal que elegeu para inspirar-lhe
o caminho… 10 Benfeitor,
por piedade! Meu desventurado Ângelo permanece à beira do túmulo… Admito
que o fim do corpo esteja marcado para breves dias, se mãos amigas e
devotadas não nos socorrerem à altura de nossa indigência. Já fiz tudo
quanto se achava ao alcance de nossas possibilidades, porém sou parte
integrante de uma falange de seres malvados e o mal não salva, nem melhora
ninguém.
11 Gúbio ia responder, mas
Elói tomou a dianteira e, com imensa surpresa para nós, perguntou, sem
cerimônia:
— E o nome do enfermeiro? Quem é esse quase infanticida?
— É Felício de…
12 Quando o nome de família
foi pronunciado, nosso companheiro apoiou-se em mim, para não cair.
— É meu irmão! — Bradou, — é meu irmão…
Forte emotividade empalideceu-lhe o rosto e expectativa inquietante desabou sobre nós.
13 Mas Gúbio, com a serenidade
sublime que lhe assinalava a fronte, abraçou Elói e inquiriu calmo:
— Onde está o infeliz que não seja nosso irmão necessitado?
A frase inteligente e bondosa sossegou o colega deprimido e ofegante.
14 Desejoso talvez de desfazer
as nuvens que se adensavam naquele reduto doméstico e de o transformar
em abençoado santuário, nosso Instrutor convidou-nos a visitar o menino
enfermo, sem perda de tempo.
15 Saldanha indicou a figura
estranha de Gaspar, que parecia surdo e insensível ao que se passava,
e lembrou:
— Deixá-lo-emos sozinho por algumas horas. Aliás, precisamos, pelo menos, de um dia, a fim de fortificarmos a defensiva. A falange de Gregório não nos perdoará.
4.
Nosso Instrutor sorriu em silêncio e ausentamo-nos.
2 Soprava brando e fresco
vento da madrugada e pesada quietude reinava nas vias suburbanas que
cruzávamos a passo rápido.
Leôncio, à frente, mostrou-nos confortável vivenda e informou:
— Aqui mesmo.
3 Entramos.
Em aposentos diversos, a dona da casa e o enfermeiro dormiam à solta, enquanto um pequeno simpático gemia, quase imperceptivelmente, demonstrando angústia e mal-estar.
Notava-se nele a devastação operada pelos tóxicos insistentes. Profunda melancolia estampava-se-lhe no olhar.
4 Leôncio, o temido hipnotizador,
abraçou-o e esclareceu:
— Os venenos sutis, que ingere em doses diminutas e sistemáticas, invadem-lhe o corpo e a alma.
5 Fios magnéticos e invisíveis
ligavam, ali, pai e filho, porque o menino, num lance comovedor, embora
a prostração em que se achava, contemplou, embevecido, o retrato grande
do paizinho, suspenso da parede, e falou, súplice, baixinho:
— Papai, onde está o senhor?… Tenho medo, muito medo…
6 Lágrimas ardentes seguiram-lhe
a prece inesperada e o hipnotizador de Margarida, que até então se nos
afigurara um gênio horrível, prorrompeu em pranto emocionante.
7 Gúbio ausentou-se por momentos
e regressou trazendo Felício, o enfermeiro, provisoriamente desligado
do aparelho fisiológico. O rapaz, não obstante semi-inconsciente, ao
avistar Elói junto ao doentinho, procurou recuar, num impulso de evidente
pavor, mas nosso dirigente conteve-o, sem aspereza.
8 Meu colega abeirou-se dele,
já de fisionomia transfigurada, buscando dirigir-lhe a palavra.
O Instrutor, no entanto, afagou-o com a destra e avisou:
— Elói, não interfiras. Não te encontras em condições sentimentais de operar com êxito. A indignação afetiva denunciar-te-ia a inabilidade provisória para atenderes a este gênero de serviço. Atuarás no fim.
9 Em seguida, Gúbio aplicou
passes de despertamento em Felício para que a mente dele acompanhasse
a lição daquela hora, dentro do mais alto estado de consciência que
lhe fosse possível, notando-se que o paciente passou a fixar-nos com
mais clareza, envergonhado e espantadiço. Fitou Elói, positivamente
amedrontado, e reparando Leôncio a chorar sobre o filhinho, fez novo
movimento de recuo, interrogando embora:
— Quê? Pois este monstro chora?
10 Gúbio aproveitou a pergunta
brutalmente desfechada e interveio, sereno:
— Não concedes a um pai o direito de emocionar-se ante o filhinho perseguido e doente?
— Sei apenas que ele é para mim um inimigo implacável, — comentou o irmão de
Elói, com insofreável animosidade, — e reconheço-o, de perto. É o marido
de Avelina… A princípio, via-o nos odiosos retratos que povoam esta
casa… depois passou a flagelar-me nas horas de sono…
11 — Escuta! — Disse-lhe
o orientador, com inflexão de carinho, — quem terá assumido a posição
de adversário, em primeiro lugar? O coração dele, humilhado e ferido
nos sentimentos mais altos que possui, ou o teu que urdiu deplorável
projeto de conquista sentimental ante uma viúva indefesa? O dele que
padece nos zelos inquietantes de pai ou o teu que comparece neste lar
com o escuro propósito de assassinar-lhe o filhinho?!
— Mas, Leôncio é um “morto”! — Suspirou o enfermeiro, desapontado.
E não hás de sê-lo, um dia, — tornou o nosso dirigente, — quando houveres
restituído o corpo de carne ao inventário de pó?
12 E porque o interlocutor
não pudesse prosseguir, conturbado pelas forças desintegrantes da culpa,
o Instrutor continuou:
— Felício, porque insistes no condenável enredo com que preparas tão
calculado crime? Não te compadeces, porventura, de uma criança enferma
e sem pai visível? 13
Tens Leôncio na conta dum monstro, por defender o frágil rebento do
coração, tal como a ave que ataca, ainda que impotente, na ânsia de
preservar o ninho… Que dizer, porém, de ti, meu irmão, que não vacilas
em devassar este santuário, tão somente com o instinto de gozo e poder?
Como interpretar-te o gesto lastimável de enfermeiro que se vale do
divino dom de aliviar e curar para perturbar e ferir? 14
Felício, a experiência humana, confrontada com a eternidade em que se
movimentará a consciência, é simples sonho ou pesadelo de alguns minutos.
Porque comprometer o futuro ao preço do conforto ilusório de alguns
dias? 15 Os que plantam
espinhos colhem espinhos na própria alma e comparecem perante o Senhor
de mãos convertidas em garras abomináveis. Os que espalham pedras em
derredor dos pés alheios serão surpreendidos, mais tarde, pelo endurecimento
e paralisia do próprio coração. 16
Guardas, porventura, suficiente noção da responsabilidade que assumes?
Possuis ainda no coração evidentes restos de bondade igual à daqueles
que se acolhem no âmbito de uma família abençoada e grande, em cujo
seio a solidariedade é cultivada, desde os primórdios da luta. Vejo
que o entusiasmo juvenil não se extinguiu, de todo, em tua mente. 17
Porque ceder às sugestões do crime? Não te comove a prostração deste
menino a quem procuras impor a morte vagarosa? Repara! O drama de Leôncio
não se resume ao conflito de um “morto”, como supões em teu perturbado
raciocínio. Ausculta-lhe o coração de pai amoroso e dedicado! Encontrarás
dentro dele a afeição doce e pura, à maneira do brilhante oculto no
cascalho rijo e contundente.
18 O irmão de Elói pousava
em nosso Instrutor os olhos medrosos e espantados.
Depois de leve pausa, Gúbio continuou:
— Aproxima-te. Vem a nós. Perdeste a capacidade de amar? Leôncio é teu amigo, nosso irmão.
19 Felício gritou com visível
expressão de angústia:
— Quero ser bom, mas não posso… Tento melhorar-me e não consigo…
20 De voz entrecortada pelos
soluços, acrescentou:
— E o dinheiro? Como resgatarei os débitos contraídos? Sem o casamento
com Avelina, a solução é impraticável!
21 Nosso dirigente abraçou-o
e aduziu:
— E acreditas solver compromissos financeiros provocando dívidas morais
que te atormentarão por tempo indeterminado? Ninguém te proíbe o casamento,
nem Leôncio, o organizador dos bens materiais de que pretendes dispor,
discricionariamente, te poderia induzir à abstenção nesse sentido. 22
Os atos de cada homem e de cada mulher arquitetam-lhes os destinos.
Somos responsáveis por todas as deliberações que perfilharmos ante os
programas do Eterno e não poderíamos interferir em teu livre arbítrio,
mas te pedimos concurso em benefício desta vida frágil que deve continuar…
23 Queres dinheiro,
recursos que te façam respeitado ou temido pelos outros homens. Convence-te,
porém, de que a fortuna é uma coroa pesada demais para a cabeça que
não sabe sustentá-la e costuma arrojar à poeira, através do cansaço
e da desilusão, todos aqueles que a senhoreiam, sem horizontes largos
de trabalho e benemerência. 24
Não importa, pois, que comandes os valiosos depósitos de prata e ouro
que Leôncio amontoou, inadvertidamente, porque aprenderás, com os anos,
que a felicidade não está metida em cofres que a ferrugem consome. 25
Todavia, Felício, interessamo-nos por tua promessa em favor desta criança,
extenuada de sofrimento. Poupa-lhe o corpo tenro e aguarda o futuro!
Não tragas para o reino da morte semelhante delito, que te confinaria
o Espírito a furnas trevosas de expiação regeneradora.
26 Ante a interrupção que se
impusera natural, Felício quis dizer qualquer coisa para justificar-se,
mas não pôde.
Gúbio, todavia, prosseguiu, sereno:
— Casa-te, esbanja as reservas preciosas deste lar se não souberes
entender a tempo a sagrada missão do dinheiro; sobe aos píncaros da
vida social transitória, adorna-te com os títulos convencionais com
que o mundo inferior se habituou a premiar as criaturas sagazes que
sobem a ladeira da dominação inútil ou ruinosa, sem ferir-lhe publicamente
os preconceitos, porque o tempo te esperará sempre, com lições de mestre;
sem embargo, ajuda o pequenino a restabelecer-se.
27 E endereçando compassivo
olhar ao hipnotizador de Margarida, acentuou:
— Não é bem isto, Leôncio, quanto desejamos?
— Sim, — confirmou o pobre pai em lágrimas enternecidas, — o dinheiro não importa
e agora reconheço que Avelina é tão livre quanto eu mesmo. 28
Mas se meu filhinho continuar na Terra, tenho esperanças em minha própria
regeneração. Terei nele um companheiro e um amigo, ligado à minha memória,
em cuja capacidade de servir poderei encontrar bendito campo de serviço
espiritual. Este menino, por enquanto, é o único meio de que disponho
para retomar a crença no bem de que me havia afastado.
29 Reconhecendo-lhe o doloroso
esforço para falar e rogar naquela hora, Gúbio abraçou-o, ergueu-o e
disse:
— Leôncio, Jesus crê na cooperação dos homens, tanto assim que nos tolera as imperfeições renitentes até que aceitemos o imperativo de nossa conversão pessoal ao supremo bem. Porque havíamos então de descrer? Confio na renovação de Felício. De hoje em diante, o teu filhinho não será mais vigiado por um perseguidor e, sim, protegido por desvelado benfeitor, digno de nosso concurso fraterno!
30 O enfermeiro, vencido por
semelhantes palavras, ajoelhou-se, diante de nós, e jurou:
— Em nome da Justiça Divina, prometo amparar esta criança, como verdadeiro pai!
31 Em seguida, reergueu-se
e tentou beijar as mãos de Gúbio, mas o nosso Instrutor, abstendo-se
delicadamente de receber a homenagem, recomendou a Elói e a mim conduzíssemos
o paciente ao corpo físico, enquanto ele mesmo aplicaria passes de fortalecimento
ao doentinho.
32 Felício abraçou-se a nós
ambos e, depois de nosso auxílio por reajustar-se no aparelho carnal,
acordou no leito em copiosas lágrimas.
O lance, porém, não terminou aí.
33 Forçando a situação de algum
modo, Elói inoculou-lhe intensa energia magnética à esfera ocular e
o irmão, apalermado, viu-nos ambos, por alguns segundos.
34 Boquiaberto, assombrado,
não sabia que dizer, mas Elói acercou-se dele e com benéfica indignação
a resplandecer-lhe nos olhos, exortou-o, francamente:
— Se assassinares este menino, eu mesmo te punirei.
35 O enfermeiro proferiu grito
terrível e deixou cair no travesseiro a cabeça desfalecente, perdendo-nos
de vista.
Nesse instante, acreditei com sinceridade que a promessa de Felício seria cumprida integralmente.
André Luiz