1.
De retorno a casa, com indisfarçável estranheza reparei que o nosso
Instrutor não empreendia qualquer ataque em defesa da doente querida.
2 A jovem senhora, novamente
metida no leito, semi-aniquilada, punha os olhos no ar vazio, absorvida
de indefinível pavor.
3 Um dos insensíveis
magnetizadores presentes, à insinuação de Saldanha, começou a aplicar
energias perturbadoras ao longo dos olhos, torturando as fibras de sustentação.
Não somente o cristalino, em ambos os órgãos visuais, denunciava fenômenos
alucinatórios, mas também as artérias oculares revelavam-se sob fortes
modificações.
4 Percebi a facilidade com
que os seres perversos das sombras hipnotizam as suas vítimas, impondo-lhes
os tormentos psíquicos que desejam.
5 Grossas lágrimas banhavam
o rosto da enferma, traduzindo-lhe as agitações interiores.
Dilacerada, a mente aflita e sofredora tiranizava o coração que batia, precípite, imprimindo graves alterações em todo o cosmos orgânico.
6 Das complicadas operações
sobre os olhos, o magnetizador passou a interessar-se pelas vias do
equilíbrio e pelas células auditivas, carregando-as de substância escura,
qual se estivesse doando combustível a um motor.
7 Margarida, ainda
que o desejasse, agora não conseguiria erguer-se. Compacta emissão de
fluidos tóxicos misturava-se à linfa dos canais semicirculares.
8 Terminada a esquisita intervenção,
Saldanha dispensou os terríveis colaboradores, à exceção da dupla que
se incumbia do hipnotismo, alegando que havia serviço em outra parte
da cidade. Outros casos aguardavam a legião de Gregório, e Margarida,
no parecer do chefe de tortura, já recebera suficiente material de prostração
para trinta horas consecutivas.
9 Pouco a pouco, esvaziou-se
a casa, semelhante agora a desprezada colmeia de maribondos vorazes.
Contudo, aí permaneciam Saldanha, os dois magnetizadores, nós três e
a coleção de mentes, em “formas ovóides”, ligadas ao cérebro da senhora
flagelada.
2.
A sós com o temível obsessor, Gúbio procurou sondar-lhe o íntimo, discretamente.
— Sem dúvida que a sua fidelidade aos compromissos assumidos, — declarou
o nosso orientador, atencioso, — é bastante significativa.
2 E enquanto Saldanha sorria,
envaidecidamente, continuou, de olhar penetrante e doce:
— Que razões teriam conduzido Gregório a conferir-lhe tão delicada missão?
3 — O ódio, meu amigo, o ódio!
— Explicou o interpelado decidido.
— À senhora? — Aduziu Gúbio, indicando a doente.
— Não propriamente a ela, mas ao pai, juiz sem alma que me devastou o lar. Faz onze anos, precisamente, que a sentença cruel de um magistrado caiu sobre os meus descendentes, exterminando-os…
4 E, diante da expressão de
real interesse que o nosso Instrutor deixava perceber, o infeliz continuou:
— Tão logo abandonei o corpo físico, premido por uma tuberculose galopante,
revoltado com a pobreza que me lançara à extrema penúria, não pude afastar-me
do ambiente doméstico. 5
Minha infortunada Iracema herdou-me um filho querido, a quem não pude
legar qualquer recurso apreciável. Jorge e sua genitora passaram, desse
modo, a enfrentar dificuldades e aflições que não posso relembrar sem
imensa angústia. Operário em rude serviço braçal, meu filho não conseguia
sustentar dignamente a casa, definhando-se-lhe a mãezinha em padecimentos
continuados e sofridos em silêncio. 6
Ainda assim, Jorge contraiu núpcias, muito cedo, com uma colega de trabalho,
que, a seu turno, lhe deu uma filhinha atormentada e sofredora. A vida
corria desesperadamente para o lar subalimentado e desprotegido, quando
certo crime, constituído de roubo e assassínio, sobreveio na organização
em que meu desventurado rapaz trabalhava, e toda a culpa, em face de
circunstâncias inextricáveis, recaiu sobre ele. Acompanhei-lhe a prisão
imerecida e, sem qualquer recurso para ampará-lo, segui os interrogatórios
infernais a que foi submetido, como se fora homicida vulgar. 7
Ora, eu que me anexara aos parentes, desde o instante horrível, para
mim, da transição corporal, jamais me senti disposto à submissão. A
experiência humana não me proporcionou tempo a estudos religiosos ou
filosóficos. Habituei-me muito cedo à rebelião contra aqueles que gozam
os benefícios do mundo em detrimento dos desfavorecidos da sorte e,
reconhecendo que o túmulo não me revelara qualquer milagroso domínio,
preferi a continuidade da vida em meu escuro pardieiro, onde a convivência
de Iracema, através de profundos laços magnéticos, de algum modo me
reconfortava… 8 Assisti,
por isto, com indescritível terror, aos detestáveis acontecimentos.
Humilhado, na minha condição de homem invisível para os encarnados,
visitei chefias e repartições, autoridades e guardas, tentando encontrar
alguém que me auxiliasse a salvar Jorge, inocente. Identifiquei o verdadeiro
criminoso que, ainda agora, desfruta posição social invejável e tudo
fiz, sem resultado, por clarear o processo oprobrioso. 9
Meu filho sofreu todo o gênero de atrocidades morais e físicas, castigado
por um delito que não cometeu. Desanimado, por minha vez, de algo recolher
de útil, junto aos carrascos policiais que chegaram a improvisar fantásticas
confissões da vítima, procurei o juiz da causa, na esperança de interferir
beneficamente. O magistrado, porém, longe de aceitar-me a inspiração,
que o convidava à justiça e à piedade, preferiu ouvir pareceres de amigos
influentes na política dominante, que vivamente se interessavam pela
indébita condenação, na ânsia de exculpar o verdadeiro criminoso.
10 Saldanha fez pequeno intervalo,
acentuando a expressão de profundo rancor, e prosseguiu:
— Descrever-lhe o que foi minha dor é alguma coisa de impraticável
à capacidade verbal. Jorge recebeu dolorosa pena, quando seu corpo vacilava
sob maus tratos, e Irene, minha nora, conturbada pela necessidade e
pelo infortúnio, esqueceu as obrigações de mãe, suicidando-se para imantar-se
ao espírito de meu pobre filho, já de si mesmo tão infeliz. 11
Torturada pelos sucessos aflitivos, minha esposa desencarnou num catre
de indigência, reunindo-se, por sua vez, ao angustiado casal. Minha
neta, hoje menina e moça, mas ameaçada por incerto porvir, atende a
serviço doméstico, aqui mesmo nesta casa, onde tresloucado irmão de
Margarida procura arrastá-la sutilmente a grave desvio moral. 12
O juiz, que aqui preside à assembleia familiar, recebendo-me em sonho
as promessas de vingança, buscou colocá-la junto aos próprios parentes,
empenhado em reparar de algum modo o seu crime; no entanto, apesar disso,
meu desforço não se fará menos brando.
13 Surpreendido, notei que
o nosso orientador não ensaiava qualquer doutrinação. Pousando olhos
cheios de simpatia no interlocutor, murmurou apenas:
— Realmente, a sementeira de dor é das que mais nos afligem…
14 Encorajado pelo tom amigo
daquela frase, Saldanha prosseguiu:
— Muita gente convida-me à transformação espiritual, concitando-me
ao perdão estéril. Não aceito, porém, qualquer alvitre desse jaez. 15
Meu desventurado Jorge, sob a pressão mental de Irene, dilacerada, e
de Iracema, oprimida, não resistiu e perturbou-se. Enlouquecendo no
cárcere, foi transferido da cela úmida para misérrimo hospício, onde
mais se assemelha a um animal encurralado. 16
Acredita possa meu cérebro dispor de recursos para meditar em compaixão
que não recebi de pessoa alguma? Enquanto esses quadros permanecerem
sob meus olhos, não abrirei minhalma às sugestões religiosas. 17
Estou simplesmente diante da vida. A sepultura apenas derruba o muro
da carne, porquanto nossas dores continuam tão vivas e tão contundentes
quanto em outra época, quando suportávamos a caixa dos ossos. 18
Foi nesse estado que o sacerdote Gregório me encontrou e agradou-se
de minhas disposições íntimas. Necessitava de alguém, de alma suficientemente
endurecida, para presidir à retirada técnica desta moça que ele deseja
arrebatar, devagarinho, à existência terrestre, e louvou-me o ânimo
firme. 19 Quase sempre
dispomos de servidores em massa para os cometimentos retificadores.
Mas não é fácil encontrar um companheiro decidido a perseverar na vingança
até ao fim, com o mesmo ódio do princípio. Observou que eu lhe atendia
a exigência e confiou-me a tarefa.
20 Passeando colérico olhar
pelos ângulos da câmara de repouso, acentuou:
— Todos aqui pagarão. Todos…
21 Admirado, fitei Gúbio que
se mantinha imperturbável, silencioso.
Fora eu e talvez me desbordasse em comentários extensos e tirânicos, com referência à lei do amor que nos governa os destinos; reclamaria, com ênfase, a atenção do perseguidor para os ensinamentos de Jesus e, se possível, dobrar-lhe-ia a língua indisciplinada e insolente.
22 O Instrutor, contudo, assim
não procedeu.
Sorriu, mudo, buscando disfarçar a própria tristeza.
Dois ou três minutos rolaram, longos, entre nós.
3.
Mostrava o relógio um quarto para meio-dia, quando alguns passos se
fizeram ouvidos.
— É o médico, — elucidou Saldanha, com manifesta expressão de sarcasmo; — debalde,
porém, procurará lesões e micróbios.
2 Quase no mesmo instante,
um cavalheiro de idade madura penetrou o recinto, em companhia de Gabriel,
o esposo da vítima.
Abeirou-se da enferma, afagou-a gentil e pronunciou algumas palavras de encorajamento.
Margarida, em vão, buscou sorrir. Faltavam-lhe forças para tanto.
3 A conversação ia a meio,
quando uma entidade, evidentemente bem intencionada, compareceu. Viu-nos
e demonstrou compreender-nos a posição, porque fixou em nós cauteloso
olhar sem dizer palavra, acercando-se do médico, solicitamente, qual
se lhe fora dedicado enfermeiro.
4 O especialista não parecia
profundamente interessado no caso, mas, ao auscultar Margarida, entregue
a torpor inquietante, conversou com o marido da vítima de maneira superficial.
Declarou que a jovem senhora, em sua opinião, certamente se mantinha
sob o império da epilepsia secundária e que, em última análise, se socorreria
da colaboração de colegas eminentes para submetê-la a exame particularizado
da lesão cérebro-meníngea, seguido, possivelmente, de intervenção cirúrgica
aconselhável.
5 Em seguida, porém, observei
que a entidade espiritual recém-chegada e que o assistia, com desvelo,
pousou a destra em sua fronte, como se desejasse transmitir-lhe algum
alvitre providencial.
6 O médico relutou bastante,
mas ao cabo de alguns minutos, constrangido por sugestão exterior que
não saberia compreender exatamente, convidou Gabriel a um dos ângulos
do quarto e lembrou:
— Porque não tenta o Espiritismo? Conheço ultimamente alguns casos intrincados que vão sendo resolvidos, com êxito, pela psicoterapia…
7 E para não dar ideia de
uma capitulação científica, ante o idealismo religioso, acrescentava:
— Segundo sabemos hoje, à saciedade, a sugestão é uma força misteriosa, quase desconhecida.
8 O esposo da enferma recebeu
o conselho, com simpatia, e perguntou:
— Poderá orientar-me suficientemente?
9 O psiquiatra recuou, de
algum modo, e obtemperou:
— Bem, não disponho de maior trato com os expoentes do assunto, todavia, segundo acredito, não terá dificuldades para experimentar.
10 Logo após, deixou ali algumas
indicações escritas, relacionando drogas e injeções, e dispôs-se a sair,
sob o riso escarninho de Saldanha, que dominava amplamente a situação.
11 Gúbio conversou qualquer
coisa com o inquisidor desencarnado e, em seguida, dirigiu-se a mim,
esclarecendo:
— André, combinamos que, para observações, deves seguir o médico. Dentro de algumas horas, porém, volta ao nosso posto.
12 Compreendi que o nosso orientador
me proporcionava a recolta de novos ensinamentos e acompanhei o especialista
em moléstias nervosas, cauteloso e contente.
13 Distanciado agora do lugar
em que nosso Instrutor travava batalha singular, acerquei-me da personalidade
que assistia o médico de perto e entabulamos amistoso diálogo.
14 O novo amigo atendia pelo
nome de Maurício, fora enfermeiro do esculápio que protegia e recebera,
com satisfação, a tarefa de ampará-lo nos empreendimentos profissionais.
15 — Todos os médicos,
— asseverou-me, convicto, — ainda mesmo quando materialistas de mente
impermeável à fé religiosa, contam com amigos espirituais que os auxiliam.
16 A saúde humana
é dos mais preciosos dons divinos. Quando a criatura, por relaxamento
ou indisciplina, delibera menosprezá-la, faz-se difícil o socorro aos
seus centros de equilíbrio, porque, em todos os lugares, o pior surdo
é aquele que não quer ouvir. 17
Todavia, por parte de quantos ajudam a marcha humana, da Esfera espiritual,
há sempre medidas de proteção à harmonia orgânica, para que a saúde
das criaturas não seja prejudicada. 18
Claro que há erros tremendos em medicina e que não podemos evitar. Nossa
colaboração não pode ultrapassar o campo receptivo daquele que se interessa
pela cura alheia ou pelo próprio reajustamento. Entretanto, realizamos
sempre em favor da saúde geral quanto nos é possível.
19 E, numa expressão profundamente
significativa, acentuou:
— Ah! Se os médicos orassem!
4.
Nesse instante, alcançamos o ponto de destino, antecipando-nos, de algum
modo, ao amigo encarnado sob minha observação.
2 A residência confortável,
não obstante o formoso jardim que a circundava, permanecia transbordante
de fluidos desagradáveis.
3 O clima doméstico era perturbador.
Maurício elucidou, sem preâmbulos:
— Estamos sumamente interessados em que o nosso amigo se enfronhe no
trato com as magnas questões da alma, a fim de aperfeiçoar-se na tarefa
junto à mente enferma, por isso encaminhamos até aqui, por vias indiretas,
livros e publicações acerca do assunto; entretanto, contra o nosso desejo,
não somente preponderam os preconceitos da classe médica, mas também
a influência perniciosa que a segunda esposa exerce sobre ele. 4
Homem inteligente, mas muitíssimo arraigado à remuneração dos sentidos,
o nosso amigo não suportou a viuvez e desposou, há cinco anos, uma jovem
que lhe exige pesado tributo à maturidade respeitável. 5
Acontece, também, que a esse problema acresce questão muito grave: a
primeira esposa desencarnada deixou dois rapazes e permanece ligada
à organização doméstica, que considera sua propriedade exclusiva. 6
Por mais que o nosso trabalho se acentue, ainda não conseguimos retirá-la,
com proveito, da casa, porque o pensamento dos filhos, em conflito com
o pai e com a madrasta, lhe invoca a atuação, de minuto a minuto. O
duelo mental nesta casa é enorme. Ninguém cede, ninguém desculpa e o
combate espiritual permanente transforma o recinto numa arena de trevas.
7 Calou-se o informante, enquanto
entrávamos, e pude notar que, efetivamente, a ex-dona da casa, sem o
corpo físico, em singular posição de revolta ali se achava, abraçada
a um dos filhos, moço de seus dezoito anos presumíveis, que fumava nervosamente
numa espreguiçadeira. Via-se-lhe perfeitamente a condição de vaso receptivo
da sublevada mente materna.
8 Ideias inquietantes e delituosas
povoavam-lhe a cabeça.
Fios tenuíssimos de força magnética ligavam-no à mãezinha infeliz.
Tinha as mãos crispadas e o olhar absorto, maquinando planos diabólicos e, por mais que o envolvesse o socorro de Maurício, nem ele, nem aquela que lhe fora ciumenta genitora, se mostravam suscetíveis de receber-nos a influenciação restauradora.
9 — Tenho trabalhado
tanto quanto me é possível, — explicou o novo companheiro, — a fim de
ambientar aqui o espiritualismo de ordem superior. Achamo-nos, entretanto,
num campo imensamente refratário.
10 Nesse instante, o médico
transpôs o limiar e Maurício colocou sobre a fronte dele a destra generosa,
buscando fornecer-lhe intuições exatas, referentes ao caso de Margarida.
O especialista, num átimo, começou a articular o aparelhamento mental
para exame do assunto que lhe era sugerido, lembrando certa publicação
técnica, única maneira através da qual conseguia registar os pensamentos
do companheiro espiritual. Mesmo assim, o esforço não logrou êxito.
11 O filho atacou o genitor
com recriminações acerbas, em vista de se haver demorado excessivamente
para o almoço.
O esculápio depressa desligou a mente de nossos fios invisíveis, precipitando-a no torvelinho das vibrações antagônicas.
12 A esposa desencarnada veio
igualmente sobre ele, furiosamente. Reparei que o dono da casa não lhe
assinalou os punhos ativos no rosto, mas o sangue concentrou-se-lhe
na região das têmporas, tingindo-se-lhe a máscara fisionômica de cólera
indisfarçável. Resmungou algumas palavras, saturadas de indignação,
e perdeu, de todo, o contato espiritual conosco.
13 Maurício indicou-o com insofreável
tristeza e acentuou:
— É sempre assim. Muito difícil aproximarmo-nos, na Esfera física, daqueles
a quem nos propomos auxiliar. Surgem ensejos valiosos de realização
espiritual, como presentemente nos ocorre, diante do problema de Margarida.
No entanto, nossas tentativas redundam em rematada frustração. 14
Um homem, intelectualizado pela responsabilidade acadêmica, por si mesmo
deveria sentir santa curiosidade perante a vida, abstendo-se de certo
comércio mais intenso com a satisfação egoística da experiência no corpo.
Porém, a criatura costuma persegui-la até o desgaste completo da forma
carnal de que se serve. Por mais que a convoquemos à preciosa viagem
da periferia para o centro, a fim de que ela se amolde aos imperativos
da vida que a espera, além do sepulcro, nosso esforço é quase sempre
considerado adiável e inútil.
5.
Sorriu, enigmático, e, ajuntou:
— E observemos que nos achamos à frente de um homem chamado pelo campo social ao ministério da cura.
2 Nesse ínterim, a
pequena família se reuniu, ao redor da mesa posta, e a segunda esposa
do médico me impressionou pelo apuro da apresentação. A pintura do rosto,
sem dúvida, era admirável. O traje elegante e sóbrio, as joias discretas
e o penteado harmonioso realçavam-lhe a profundez do olhar, mas rodeava-se
ela de substância fluídica deprimente. 3
Halo plúmbeo denunciava-lhe a posição de inferioridade. Socialmente,
aquela dama devia ser das de mais fino trato; contudo, terminado o repasto,
deixou positivamente evidenciada sua deplorável condição psíquica. Depois
de uma discussão menos feliz com o marido, a jovem mulher buscou o sono
da sesta, num divã largo e macio.
4 Intencionalmente,
Maurício convidou-me a espreitar-lhe o repouso e, com enorme surpresa,
aturdido mesmo, não lhe vi os mesmos traços fisionômicos na organização
perispiritual que abandonava a estrutura carnal, entregue ao descanso.
5 Alguma semelhança
era de notar-se, mas, afinal de contas, a senhora tornara-se irreconhecível.
Estampava no semblante os sinais das bruxas dos velhos contos infantis.
A boca, os olhos, o nariz e os ouvidos revelavam algo de monstruoso.
6 A própria esposa
desencarnada, ali presente em clamorosa revolta, não se animou a enfrentá-la.
Recuou semi-espavorida, tentando ocultar-se junto do filho.
7 Lembrei-me, então,
do livro em que Oscar Wilde nos conta a história do retrato de Dorian
Gray, ( † )
que adquiria horrenda expressão à medida que o dono se alterava intimamente
na prática do mal e, endereçando a Maurício olhar indagador, dele recebi
sensata elucidação:
— Sim, meu amigo, — disse, tolerante, — a imaginação de Wilde não fantasiou.
8 O homem e a mulher,
com os seus pensamentos, atitudes, palavras e atos criam, no íntimo,
a verdadeira forma espiritual a que se acolhem. Cada crime, cada queda,
deixam aleijões e sulcos horrendos no campo da alma, tanto quanto cada
ação generosa e cada pensamento superior acrescentam beleza e perfeição
à forma perispirítica, dentro da qual a individualidade real se manifesta,
mormente depois da morte do corpo denso. 9
Há criaturas belas e admiráveis na carne e que, no fundo, são verdadeiros
monstros mentais, do mesmo modo que há corpos torturados e detestados,
no mundo, escondendo Espíritos angélicos, de celestial formosura.
10 E designando a infeliz que
se ausentava de casa, semiliberta do veículo material, acentuou:
— Esta irmã desventurada permanece sob o império de Espíritos gozadores e animalizados
que, por muito tempo, a reterão em lastimáveis desequilíbrios. 11
Acreditamos que ela, sem fé renovadora, sem ideais santificantes e sem
conduta digna, não se precatará tão cedo dos perigos que corre e somente
se lembrará de chorar, aprender e transformar-se para o bem, quando
se afastar, em definitivo, do vaso de carne, na condição de autêntica
bruxa.
12 O assunto era
realmente fascinante e a lição era imensa. Entretanto, meu tempo disponível
esgotara.
O minuto exigia pronto regresso.
André Luiz