1 Quando Joaquim Sucupira abandonou o corpo, depois dos sessenta anos, deixou nos conhecidos a impressão de que subiria incontinente ao Céu. Vivera arredado do mundo, no conforto precioso que herdara dos pais. Falava pouco, andava menos, agia nunca.
2 Era visto invariavelmente em trajes impecáveis. A gravata ostentava sempre uma pérola de alto preço, pequena orquídea assinalava a lapela, e o lenço, admiravelmente dobrado, caía, irrepreensível, do bolso mirim. O rosto denunciava-lhe o apurado culto às maneiras distintas. Buscava, no barbeiro cuidadoso, cada manhã, renovada expressão juvenil. Os cabelos bem postos, embora escassos, cobriam-lhe o crânio com o esmero possível.
3 Dizia-se cristão e, realmente, se vivia isolado, não fazia mal sequer a uma formiga. Assegurava, porém, o pavor que o possuía, ante os religiosos de todos os matizes. Detestava os padres católicos, criticava as organizações protestantes e categorizava os espiritistas no rol dos loucos. Aceitava Jesus a seu modo, não segundo o próprio Jesus.
4 As facilidades econômicas transitórias adiavam-lhe as lições benfeitoras do concurso fraterno, no campo da vida.
5 Estudava, estudava, estudava…
E cada vez mais se convencia de que as melhores diretrizes eram as dele mesmo. Afastamento individual para evitar complicações e desgostos. Admitia, sem rebuços, que assim efetuaria preparação adequada para a existência depois do sepulcro. Em vista disso, a desencarnação de homem tão cauteloso em preservar-se, passaria por viagem sem escalas com destino à Corte Celeste.
6 Dava aos familiares dinheiro suficiente para aventuras e fantasias, a fim de não ser incomodado por eles; distribuía esmolas vultosas, para que os problemas de caridade não lhe visitassem o lar; afastava-se do mundo para não pecar. Não seria Joaquim — perguntavam amigos íntimos — o tipo do religioso perfeito? Distante de todas as complicações da experiência humana, pela força da fortuna sólida que herdara dos parentes, seria impossível que não conquistasse o paraíso.
7 Contudo, a realidade que o defrontava agora não correspondia à expectativa geral.
8 Sucupira, desencarnado, ingressara numa Esfera de ação, dentro da qual parecia não ser percebido pelos grandes servidores celestiais. Via-os em movimentação brilhante, nos campos e nas cidades. Segredavam ordens divinas aos ouvidos de todas as pessoas em serviço digno. Chegara a ver um anjo singularmente abraçado a velha cozinheira analfabeta.
9 Em se aproximando, todavia, dos Mensageiros do Céu, não era por eles atendido.
10 Conseguia andar, ver, ouvir, pensar. No entanto — desventurado Joaquim! — as mãos e os braços mantinham-se inertes. Semelhavam-se a antenas de mármore, irremediavelmente ligadas ao corpo espiritual. Se intentava matar a sede ou a fome, obrigava-se a cair de bruços, porque não dispunha de mãos amigas que o ajudassem.
11 Muito tempo suportara semelhante infortúnio, multiplicando apelos e lágrimas, quando foi conduzido por entidade caridosa a pequeno tribunal de socorro, que funcionava de tempos a tempos, nas regiões inferiores onde vivia compungido.
12 O benfeitor que desempenhava ali funções de juiz, reunida a assembleia de Espíritos penitentes, declarou não contar com muito tempo, em face das obrigações que o prendiam nos Círculos mais altos e que viera até ali somente para liquidar os casos mais dolorosos e urgentes.
13 Devotados companheiros do bem selecionaram a meia dúzia de sofredores que poderiam ser ouvidos, dentre os quais, por último, figurou Sucupira, a exibir os braços petrificados.
14 Chorou, rogou, lamuriou-se. Quando pareceu disposto a fazer o relatório geral e circunstanciado da existência finda, o julgador obtemperou:
— Não, meu amigo, não trate de sua biografia. O tempo é curto. Vamos ao que interessa.
15 Examinou-o detidamente e observou, passados alguns instantes:
— Sua maravilhosa acuidade mental demonstra que estudou muitíssimo.
16 Fez pequeno intervalo e entrou a arguir:
— Joaquim, você era casado?
—
Sim.
17 — Zelava a residência?
—
Minha mulher cuidava de tudo.
18 — Foi pai?
—
Sim.
19 — Cuidava dos filhos em pequeninos?
—
Tínhamos suficiente número de criadas e amas.
20 — E quando jovens?
—
Eram naturalmente entregues aos professores.
21 — Exerceu alguma profissão útil?
—
Não tinha necessidade de trabalhar para ganhar o pão.
22 — Nunca sofreu dor de cabeça pelos amigos?
—
Sempre fugi, receoso, das amizades. Não queria prejudicar, nem ser prejudicado.
23 O julgador interrompeu-se, refletiu longamente e prosseguiu:
— Você adotou alguma religião?
—
Sim, eu era cristão — esclareceu Sucupira.
24 — Ajudava os católicos?
—
Não. Detestava os sacerdotes.
25 — Cooperava com as Igrejas reformadas?
—
De modo algum. São excessivamente intolerantes.
26 — Acompanhava os espiritistas?
—
Não. Temia-lhes a presença.
27 — Amparou doentes, em nome do Cristo?
—
A Terra tem numerosos enfermeiros.
28 — Auxiliou criancinhas abandonadas?
—
Há creches por toda parte.
29 — Escreveu alguma página consoladora?
—
Para quê? O mundo está cheio de livros e escritores.
30 — Utilizava o martelo ou o pincel?
—
Absolutamente.
31 — Socorreu animais desprotegidos?
—
Não.
32 — Agradava-lhe cultivar a terra?
—
Nunca.
33 — Plantou árvores benfeitoras?
—
Também não.
34 — Dedicou-se ao serviço de condução das águas, protegendo paisagens empobrecidas?
Sucupira fez um gesto de desdém e informou:
—
Jamais pensei nisto.
35 O instrutor indagou-lhe sobre todas as atividades dignas conhecidas no Planeta. Ao fim do interrogatório, opinou sem delongas:
— Seu caso explica-se: você tem as mãos enferrujadas.
36 Ante a careta do interlocutor amargurado, esclareceu:
— É o talento não usado, meu amigo. Seu remédio é regressar à lição. Repita o curso terrestre.
37 Joaquim, confundido, desejava mais amplas elucidações.
38 O juiz, porém, sem tempo de ouvi-lo, entregou-o aos cuidados de outro companheiro.
39 Rogério, carioca, desencarnado, tipo 1945, recebeu-o de semblante amável e feliz e, após escutar-lhe compridas lamentações, convidou, pacientemente:
— Vamos, Sucupira. Você entrará na fila em breves dias.
— Fila? — Interrogou o infeliz, boquiaberto.
— Sim, — acrescentou o alegre ajudante, — na fila da reencarnação.
40 E, puxando o paralítico pelos ombros, concluía, sorrindo:
— O que você precisa, Joaquim, é de movimento…
Irmão X
(Humberto de Campos)