1 Era noite.
O mentor Silvério Pires recomendou-me esperá-lo por instantes.
2 Em seguida, veio a mim explicando:
— Augusto, temos serviço urgente. Venha comigo. Trata-se de um pedido de mãe devotada, em apoio de um filho enfermo.
3 Obedeci, de imediato, mesmo porque o orientador é um desses professores diletos a que nos vinculamos por afetuoso reconhecimento.
4 Alguns minutos voaram e atingimos um palacete de primorosa estrutura, cercado por jardins que brilhavam ao luar, dentro da noite.
5 Entramos.
O mentor parecia familiarizado com os mínimos recantos do solar, enriquecido de tapetes e telas raras.
6 Em aposento próximo, mobiliado segundo os hábitos portugueses do século XVIII, um homem, aparentando cinquenta janeiros, escrevia e escrevia…
7 Porque estacássemos, de repente, perguntei surpreso ao meu condutor:
— Onde está o doente?
8 O amigo fez um gesto de proteção, sobre a cabeça do homem que me era desconhecido e acentuou:
— Este é o irmão Celestino que nos requisita assistência.
9 Fitei o desconhecido, da cabeça aos pés e não lhe notei qualquer anormalidade.
10 Entretanto, o mentor solicitou-me:
— Tome papel e lápis e copie a carta em andamento. Trata-se de um estudo que nos cabe fazer.
11 Sem vacilar, passei a escrever o texto que o desconhecido produzia à nossa frente.
12 Era uma carta que ele provavelmente endereçava a algum irmão distante, e assim dizia:
13 “Meu caro Aprígio:
“Segure os cinquenta mil sacos de arroz no armazém número dois e aguardemos mais preço. Os dez mil litros de óleo para cozinha, mantenha você em estoque e os dois mil sacos de café em grão guarde no armazém número quatro. Não venda bulhufas. Mais algumas semanas e estaremos numa boa. Tudo isso terá preços altos, nos próximos dias.
“E olhe: Não dê migalha alguma a ninguém. Religiosos têm vindo aqui a me pedir socorro. Dizem que os tutelados deles estão em carência. Até freiras já vieram aqui com petitórios. Não atenda a ninguém se você for procurado. Esse negócio de religião e caridade já era. Um certo amigo chegou a me dizer que a minha fazenda pela qual suei tanto, pertence a Deus e a mim, que eu não passo de sócio. Eu queria que esse maluco visse os meus terrenos quando Deus estava aqui trabalhando sozinho. Era mato e cobras em toda parte. Fique tranquilo e nada de coração mole. Espero estar aí na próxima semana.
“Até quinta-feira.
“Um abraço do seu irmão
Celestino.”
14 Celestino, pois esse era o nome de nosso anfitrião, colocou a caneta em lugar adequado e, logo após, levou a mão ao peito. Gemia. Afigurava-se-me que ele sentia muita dor.
15 Em dado momento, pressionou o botão de uma campainha e estirou-se em larga poltrona.
Um servidor apareceu.
16 Celestino pediu um coronário-dilatador e a presença do seu médico particular.
O cardiologista surgiu com presteza e determinou a remoção do doente para um hospital.
17 Pires sentenciou:
— Devemos acompanhá-lo. Esta é a última noite de nosso amigo na vida física.
Internado, Celestino estava submetido a minuciosos exames.
18 Silvério se dispôs à retirada e disse-me simplesmente:
— Veja você. Tanta ambição e dentro de poucas horas o nosso amigo estará desencarnado, sob a suspeita de enfarte. Amanhã viremos buscá-lo.
Nada mais acrescentou e eu fiquei a meditar sobre a lição recebida.
Augusto Cezar