O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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E a vida continua… — André Luiz


6

Entendimento fraternal

(Sumário)

1. — Há quantos dias aqui?

— Positivamente, não sei, — adiantou Ernesto, denotando fome de conversação.

2 E completou:

— Tenho matutado bastante naquele nosso entendimento de Poços de Caldas, acalentando sempre a esperança de revê-la…

— Gentileza de sua parte.

3 Evelina confidenciou a perplexidade em que vivia. Despertara naquela instituição de saúde que desconhecia de todo, obviamente transferida de casa por imposição da família, porquanto o único fato de que se recordava com clareza era justamente o desmaio em que descambara no tope de uma crise das piores que havia atravessado.

4 E salientou, sorrindo, que tivera a impressão de morrer

Quanto tempo desacordada? Ignorava.

Retomara-se apenas quando viera a si do sono profundo e sem sonhos, ali mesmo, no quarto do terceiro andar.

Desde então, andava intrigada com o mistério que a administração fazia, em torno dela própria, de vez que não obtivera permissão para telefonar ao marido.

5 Fantini escutava, atencioso, sem articular palavra.

Em derredor, algumas pessoas se mantinham sentadas ou caminhavam com naturalidade, lendo ou palestrando, aqui e ali.

Rosas, miosótis, jasmins, cravinas, begônias e outras flores, sob árvores recordando amendoeiras, fícus e magnólias, embalsamavam o ar, extremamente diáfano, com perfume delicioso.

6 Alongados os comentários que anotava, curioso, Fantini mostrou estranho brilho no olhar e concordou com Evelina.

Declarou achar-se em brasas. Revelou que também sofrera esquisita fuga de si mesmo, com a diferença de que isso lhe ocorrera, logo após a cirurgia, quando voltava para o leito, segundo acreditava. 7 E registara aquele mesmo fenômeno de retrospecção, a que se reportava a senhora Serpa em seus apontamentos confidenciais, no qual se vira repentinamente devolvido ao pretérito, desde os primeiros momentos de espanto até os dias primeiros da infância…

8 Depois, dormira pesadamente.

Incapaz de explicar-se, quanto ao tempo exato em que se demorara obtuso, inconsciente, tomara acordo de si próprio naquele nosocômio, dez dias antes.

9 Conservava, igualmente, a mesma estupefação, perante as normas de serviço ali regulamentadas, porque não conseguira o mínimo contato com a esposa ou a filha, das quais se despedira na cela hospitalar, horas antes do trabalho operatório a que se submetera.

Achava-se, por isso, inquieto.

10 Ela, Evelina, experimentara o enigmático desmaio, no círculo doméstico, ao pé dos entes queridos. Ele, porém, deixara a família em meio de agoniada expectativa, sem que lhe fosse facultado qualquer recurso de comunicação com os parentes. 11 Reconhecia que o estabelecimento de saúde a que se abrigava agora não era o mesmo onde se internara para o tratamento. Chegava a duvidar de que estivesse realmente em São Paulo. 12 O firmamento parecia-lhe um tanto diverso à noite e a piscina de que se servira continha água tenuíssima, embora fosse compreensível tivesse aquela casa filtros e engenhos especiais para a medicação da água comum.


2. E Ernesto acabou o relatório, indagando:

— A senhora já foi às termas?

— Ainda não.

2 — Verificará minha surpresa quando for até lá.

— E admite que irei? — Retorquiu Evelina com o ar brejeiro de quem se via um tanto mais consolada.

— Perfeitamente. Já ouvi dizer que a hidroterapia aqui é obrigatória.

3 Fantini sorriu significativamente e enunciou, carregando cada palavra de recôndita inquietação:

— Sabe da hipótese mais razoável? Desconfio de que nos achamos, com autorização de nossos familiares, numa organização psiquiátrica. Nada sei de medicina; no entanto, estou supondo que os problemas da supra-renal nos transtornaram a cabeça. Teremos talvez enlouquecido, entrando pelas raias da absoluta alienação mental e, com certeza, a segregação terá sido a providência aconselhável…

4 — Porque pensa assim? — Volveu a senhora Serpa, muito pálida.

— Dona Evelina…

— Não me chame “dona”… Insisto em que somos amigos e agora mais irmãos…

— Seja, — aquiesceu Fantini.

5 E continuou:

— Evelina, você verá os aparelhos engraçados com que nos aplicam raios à cabeça, antes do banho medicinal. 6 E creia que todos os doentes acusam melhoras gradativas. Desde anteontem, quando fui à imersão pela primeira vez, sinto-me mais lúcido e mais leve, sempre mais leve…

6 — Acaso não se vê em boa posição mental, desde que despertou?

— Não tanto. Aflito por notícias dos meus, voltei a sentir agudas crises. Bastava lembrar a mulher e a filha, concomitantemente com a intervenção cirúrgica, e via-me, quase que de imediato, sob asfixia terrível, a desfalecer de sofrimento.

7 Evelina rememorou a própria experiência, mas silenciou. Sentia-se cada vez mais inquieta.

— Através do cuidado com que as autoridades me respondem às interpelações, — estendeu-se Fantini, — entendo que se esforçam por manter-nos em harmonia e tranquilidade. 8 Admito que teremos passado por algum trauma psíquico e que nos achamos presentemente na reconquista do próprio equilíbrio, o que vamos obtendo, muito a pouco e pouco. 9 Segundo creio, fomos colocados sob terapêutica puramente mental. Ainda ontem, renovei a reclamação de sempre, solicitando comunicação com meu pessoal e sabe o que a enfermeira de plantão me respondeu, perfeitamente senhora de si?

— ? n

— “Irmão Fantini, esteja tranquilo. Seus familiares estão informados de sua ausência.” — 10 Mas não querem conversar comigo? Nem me chamam ao telefone? Indaguei. E a assistente respondeu: “Sua senhora e sua filha sabem que não podem aguardar tão cedo a sua presença em casa.” 11 Porque eu recalcitrasse, exigindo providências, a moça declarou: “Por enquanto isso é tudo o que lhe posso dizer.”

12 — Que deduz de suas próprias observações?

— Concluo, salvo melhor juízo, que estivemos, claramente sem o sabermos, na condição de alienados mentais, — sugeriu Fantini, quase novamente bem-humorado, — e decerto emergimos, agora, com muito vagar das trevas psíquicas para o estado normal de consciência. 13 Os médicos e enfermeiros que nos rodeiam estão plenamente justificados, quanto ao propósito de resguardar-nos contra quaisquer tipos de preocupação com a vida exterior. O menor vinco de aflição na tela mental de nossas impressões do momento, assim penso, nos traria talvez grande prejuízo às emoções e ideias, qual ocorre à pequena distorção que desfigura a simetria das ondas elétricas.

— É possível.

14 Expressiva pausa caiu entre os dois.

Após fundo mergulho no mundo de si mesmo, Ernesto rompeu o intervalo:

— Evelina, quando você entrou na crise terrível de que me fala, ter-se-á confessado antes? Que lhe teria dito o sacerdote? Recebeu dele quaisquer conselhos?

15 A interlocutora assustou-se, perante a angústia com que semelhantes inquirições eram moduladas e contra-indagou:

— Oh! Porquê? Porquê, meu amigo? Confessei-me antes do desmaio, sempre que pude… mas, porque procura saber? Para chasquear?

16 Fantini, porém, não brincava. Os olhos dele entremostravam indisfarçável mal-estar.

— Não se amofine. Pergunto por perguntar, — devaneou ele, tamborilando os dedos da mão esquerda sobre o tripé que se erguia à frente, — numa conjuntura perigosa, qual a que atravessamos, toda a assistência é pouca… Lembrei-me de que você tem uma religião e de que ainda sou um homem sem fé…


3. Ernesto ainda não rematara de todo a última frase, quando uma jovem, num grupo de três que caminhavam a curta distância, se rojou ao chão, como quem fora subitamente acometida por violento acesso de histeria, gritando em meio de manifesta agonia mental:

2 — Não!… Não posso mais!… Quero minha casa, quero os meus!… Minha mãe?!… Onde está minha mãe? Abram as portas!… Bandoleiros! Quem é bastante corajoso aqui para derrubar comigo estes muros? A polícia!… Chamem a polícia!…

3 Tratava-se, inquestionavelmente, de um caso de loucura, mas havia tanto sofrimento naquela voz que os circunstantes mais próximos se levantaram, espantadiços.

4 Uma senhora, irradiando paciência e bondade, exibindo na blusa as insígnias de enfermeira da casa, surgiu de chofre, abriu caminho no grupo de curiosos que começava a adensar-se e inclinou-se, abraçando, maternalmente, a menina revoltada. Sem o mínimo impulso à repreensão, soergueu-a, notificando com inexcedível brandura:

5 — Filha, quem lhe disse que não voltará a sua casa? Que não reverá sua mãe? Nossas portas jazem abertas… Venha comigo!…

— Ah! irmã, — suspirou a jovem repentinamente asserenada por aquelas mãos fortes e boas que a enlaçavam, — perdoe-me!… Perdoe-me! Não tenho razão de queixa, mas estou com saudades de minha mãe, sinto falta de casa! Há quanto tempo estou aqui, sem qualquer dos meus? Sei que sou doente, recebendo o benefício da cura, mas porque não tenho notícias?!…

6 A assistente ouviu calma e apenas prometeu: — Você as terá…

Passando-lhe, em seguida, o braço carinhoso acima dos ombros, concluiu:

— Por agora, vamos ao repouso!…

7 A menina, como quem surpreendera na benfeitora alguma recordação do calor materno de que sentia exacerbada carência, encostou a loura cabeça ao peito que lhe era ofertado e retirou-se, soluçando…


4. Evelina e Ernesto, que haviam acorrido para o auxílio possível, contemplaram o quadro, entre aflitos e magoados.

2 Em ambos, a sede de esclarecimento.

Que ilação recolher da súplica chorosa da doentinha atribulada pela ausência do ninho doméstico? Que hospital era aquele? Um pronto-socorro para alienados mentais? Um nosocômio destinado à recuperação de desmemoriados?

3 Num impulso de curiosidade que não mais pôde sopitar, abeirou-se Evelina de uma senhora simpática que acompanhara a cena, denotando aguda atenção, e cujos cabelos grisalhos lhe recordavam a cabeleira materna, e assuntou com discrição:

— Desculpe-me, senhora. Não nos conhecemos, mas a aflição em comum nos torna familiares uns aos outros. A senhora pode dar alguma informação, acerca da pobre menina perturbada?

— Eu? Eu? — Redarguiu a interpelada.

4 E advertiu:

— Minha filha, eu aqui, praticamente, não sei da vida de ninguém.

— Mas escute, por favor. Sabe onde estamos? Em que instituto?

5 A matrona achegou-se mais para perto de Evelina que, a seu turno, recuou para junto de Fantini, e cochichou:

— A senhora não sabe?

Ante o assombro indisfarçável da senhora Serpa, dirigiu o olhar penetrante para Ernesto e aduziu:

— E o senhor?

— Nada sabemos, — comunicou Fantini, cortês.

— Pois alguém já me disse que estamos todos mortos, que já não somos habitantes da Terra…

6 Fantini sacou o lenço do bolso para enxugar o suor que passou a escorrer-lhe abundantemente da testa, enquanto Evelina cambaleou, prestes a desfalecer.

7 A desconhecida estendeu os braços à companheira e recomendou, preocupada:

— Minha filha, contenha-se. Temos aqui dura disciplina. Se mostrar qualquer sinal de fraqueza ou rebeldia, não sei quando voltará a este pátio…

— Repousemos! — Interveio Ernesto.

8 E dando o braço a Evelina, ao passo que a dama prestimosa ajudava a escorá-la, rumaram os três para largo assento próximo, sob grande fícus, onde passaram a descansar.


André Luiz



[1] [Sinal de interrogação muda.]


Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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