O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Entre a Terra e o Céu — André Luiz


35

Reerguimento moral

(Sumário)

1. Consoante o programa traçado, regressamos, no dia imediato, estagiando primeiramente no lar de Zulmira, cuja posição orgânica era mais aflitiva.

2 A pobre senhora mostrava-se mais pálida, mais abatida.

O médico cercara-a de drogas valiosas, entretanto, a infortunada criatura demorava-se em profunda exaustão.

3 Amaro e Evelina desvelavam-se, preocupados, todavia, a torturada mãezinha deixava-se morrer. Diante da nossa apreensão manifesta, o Ministro apenas afirmou:

— Aguardemos. Numa equipe, quase sempre a melhora de um companheiro pode auxiliar a melhora de outro. A recuperação de Silva, ao que me parece, influenciará nossa amiga, na defesa contra a morte.

4 Não se delongou por muito tempo na intervenção magnética.

Sem detença, procuramos o domicílio do enfermeiro, encontrando-o superexcitado quanto na véspera, mas abnegadamente assistido pelas freiras que persistiam, dedicadas, na oração.

5 As religiosas desencarnadas acolheram-nos com carinho, comunicando que o doente prosseguia em desespero.

Clarêncio, contudo, assegurou-lhes otimista que Mário passearia conosco e, após entreter-se, voltaria melhor.

6 Em seguida, abeirou-se do enfermo e, tocando-lhe a fronte com a destra, orou sem alarde.

Qual se recebesse preciosa transfusão de forças fluídicas, Silva aquietou-se como por encanto.

Revelou-se mais calmo, não obstante entristecido.

A expressão facial que lhe denunciava a sublevação interior transformou-se-lhe no semblante em dolorosa serenidade.

7 Nosso orientador desenvolveu alguns passes de auxílio e notificou:

— Silva experimenta enorme necessidade de ouvir a palavra de Antonina, contudo, está hesitante. Afirma-se intimamente envergonhado. Crê-se responsável pela morte da criança e teme o contato com a nobreza espiritual de nossa irmã, apesar de sentir-se arrastado para ela. Buscaremos, porém, auxiliar-lhes a reaproximação.

8 Acariciou a fronte do moço atormentado e acentuou:

— O desabafo descarregar-lhe-á a atmosfera mental, favorecendo-lhe o alívio e a recepção de elementos renovadores.

9 Em seguida, o instrutor abraçou-o, envolvendo-o em amorosa solicitude. Aquele amplexo afetuoso e longo figurou-se-nos um apelo às energias recônditas do rapaz que, de imediato, levantou-se e vestiu-se.

10 Ignorando como explicar a si mesmo a súbita resolução que o movia, desceu para a rua, seguido de perto por nosso cuidado, e tomou o carro que o transportaria até à residência da simpática família que o acolhera carinhosamente na antevéspera.

11 Antonina e os filhos abriram-lhe os braços, alegremente.

A pequena Lisbela, encantada, dependurou-se-lhe ao pescoço, depois de um beijo comovente.

Achava-se ainda acamada, mas refeita e feliz.

12 Qual se convivesse com Mário, de longo tempo, a dona da casa fitou-o, apreensiva.

Preocupada, anotou-lhe o abatimento, enquanto o hóspede parecia esmolar-lhe, em silêncio, ajuda e compreensão.

13 Percebendo-lhe a angústia oculta, a jovem viúva induziu-o à conversação particular, em singelo recanto da sala, onde atendia com os filhinhos ao culto da oração.

14 O enfermeiro pediu-lhe desculpas por tratar de assunto pessoal e, começando por justificar a sua ausência na véspera, de frase a frase entrou na faixa dolorosa do próprio coração, desabafando…

15 Lembrou que ali, junto dela, recebera ensinamentos da mais elevada significação para ele e, por esse motivo, não vacilava em descerrar-lhe o espírito desolado, implorando compaixão e socorro.

Tentando confortá-lo, a interlocutora escutou-lhe a narrativa até ao fim.

16 Mário reportou-se à juventude, comentou os problemas psíquicos de que se via rodeado, desde a infância, descreveu-lhe o amor que nutrira pela moça que o abandonara em pleno sonho, relacionou as provas que lhe haviam castigado o brio de rapaz, salientou o esforço que despendera para recuperar-se e, por fim, extremamente conturbado, explanou sobre o reencontro com a ex-noiva e com o ex-rival, junto do pequenino agonizante… 17 Referiu-se ao ódio inexplicável que sentira pelo anjinho moribundo, encareceu os benefícios do culto evangélico em sua alma incendiada de revolta e amargura, expondo-lhe a convicção de haver contribuído para a morte da criancinha que detestara, à primeira vista…

Guardava a impressão de haver descido a tormentoso inferno moral.

18 Antonina sentiu por ele a piedade amorosa com que as mães se dispõem ao soerguimento espiritual dos filhos sofredores e rogou-lhe serenidade.

Silva, contudo, em pranto convulsivo, era um doente que reclamava mais ampla intervenção.

19 Atraída irresistivelmente para ele, a nobre amiga deixou de sublinhar o tratamento com a palavra “senhor” e, fazendo-se mais íntima, obtemperou, carinhosa:

— Mário, quando caímos é preciso levantar, a fim de que o carro da vida, em seu movimento incessante, não nos esmague. 20 Conhecemo-nos há dois dias, no entanto, sinto que profundos laços de fraternidade nos reúnem. Não acredito estejamos aqui juntos, obedecendo a simples acaso. Decerto, as forças que nos dirigem a existência impelem-nos aos testemunhos afetivos desta hora. Enxugue as lágrimas para que possamos ver o caminho… Compreendo o seu drama de homem rudemente provado na forja da vida, entretanto, se posso pedir-lhe alguma coisa, rogar-lhe-ia bom ânimo.

21 Fixando-o com mais doçura no olhar, prosseguiu, depois de leve pausa:

— Também eu tenho lutado muito. Lutado e sofrido. Casei-me por amor e vi-me espoliada em minhas melhores esperanças. Meu marido, antes de encontrar a morte, relegou-nos a dolorosa penúria. Quando mais intensa era a nossa agonia doméstica, vi um filhinho morrer ao toque das aflitivas provações que nos flagelavam a casa… 22 Graças a Deus, todavia, reconheço que seríamos tão somente ignorância e miséria sem o auxílio da dor. O sofrimento é uma espécie de fogo invisível, plasmando-nos o caráter. Não se deixe abater, assim. Você está moço e as suas realizações no mundo podem ser as mais elevadas…

23 — Mas estou certo de que sou um assassino!… — Soluçou o rapaz, desacoroçoado.

— Quem poderia confirmá-lo? — Exclamou Antonina, com mais ternura na voz. — É indispensável recordemos que, atento à profissão, atendeu você a um menino completamente entregue ao domínio do crupe. O pequenino Júlio, à sua chegada, já estaria ofegante, sob as asas da morte.

— Mas, e a impressão? E o remorso? Sinto-me derrotado, aflito… Tenho medo de mim mesmo…

24 A nobre senhora fitou o hóspede com a admirável segurança que lhe era peculiar e falou, firme:

— Mário, você acredita na reencarnação da alma?

E porque o interlocutor a contemplasse, com estranheza, continuou sem ouvir-lhe a resposta:

— Todos somos viajores no grande caminho da eternidade. O corpo de carne é uma oficina em que nossa alma trabalha, tecendo os fios do próprio destino. Estamos chegando de longe, a revivescer dos séculos mortos, como as plantas a renascerem do solo profundo… 25 Naturalmente, você, Amaro, Zulmira e Júlio estão recapitulando alguma tragédia que ficou distanciada no espaço e no tempo, mas viva nos corações. E, mediante o carinho de sua confissão espontânea, não duvido de minha participação em algum lance da luta que motivou os acontecimentos da atualidade. 26 Amor e ódio não se improvisam. Resultam de nossas construções espirituais nos milênios. Provavelmente, alguma responsabilidade me compete nos serviços em cuja execução você se comprometeu. Nossa confiança imediata, nossa associação neste assunto sem qualquer base prévia, essa simpatia fraternal com que você vem a mim e o interesse com que lhe ouço a exposição me autorizam a admitir que o presente está refletindo o passado. E, em razão disso, ofereço-me para cooperar com o seu esforço de algum modo…

27 — Colaborar? — Atalhou o moço, quase alucinado, — é impossível… O menino está morto…

Envolta nas irradiações de Clarêncio, Antonina alegou com sensatez:

— E quem nos diz que Júlio não possa voltar à Terra? Quem nos pronunciará incapazes de algo fazer a benefício da criancinha que partiu?

28 — Como? Como? — Indagou, atônito, o infeliz.

— Escute, Mário. O egoísmo não se revela feroz tão somente em nossas alegrias. Muitas vezes, comparece também, asfixiante e terrível, em nossas dores. Isso se verifica, quando em nossa mágoa pensamos apenas em nós. Você se declara delinquente, amargurado, vencido, qual se fosse um herói repentinamente arrojado do altar da admiração pública à poeira da desconsideração.  29 Admito que concentrar demasiada atenção em culpas imaginárias é mera vaidade a encarcerar-nos na angústia vazia. Enquanto lastimamos a nossa imperfeição, perdemos a hora que seria justo utilizar em nossa própria melhoria.

30 E, modificando a inflexão de voz, que se fez algo mais firme, acrescentou:

— Você já meditou no padecimento dos pais feridos pela separação? Já refletiu nos sonhos maternos, despedaçados? Por que não estender fraternos braços aos progenitores na sombra do infortúnio? 31 Creio na imortalidade da alma e na redenção dos nossos erros, penso que a renovação do dia é um símbolo da graça do Senhor sempre repetida em nosso caminho, para que lhe aproveitemos o tesouro de bênçãos no crescimento ou no reajuste… 32 Por que não visitar você o lar de nossos desventurados amigos, nesta hora em que naturalmente precisam de carinho e solidariedade? É possível que a Divina Bondade esteja reservando ali algum serviço para o seu propósito de elevação. Quem sabe? A volta de Júlio pode efetuar-se. Para isso porém, será necessário reerguer o ânimo materno…

33 Passando da energia de conselheira à ternura de irmã, aduziu, carinhosa:

— Deixaria você a outrem o privilégio de semelhante serviço?

— Não tenho coragem! — Lamentou o rapaz, chorando.

— Não, Mário! Em ocasiões dessas, não é a coragem que nos falha e sim a humildade. Nosso orgulho neste mundo, apesar de inconsequente e vão, é por demais envolvente e excessivo. Não sabemos liberar a personalidade segregada no visco de nosso exagerado amor próprio. Em suma, aprisionamos o coração na escura fortaleza da vaidade e não sabemos ceder…

34 Apegando-se ao socorro moral que lhe era lançado, o enfermeiro suplicou, pesaroso:

— Antonina, creio em sua amizade e na elevada compreensão que flui de suas palavras. Ajude-me! Não vim aqui senão rogar auxílio e discernimento. Exponha você mesma o que devo fazer. Dê-me um plano. Perdoe-me a intimidade, tenho sido um homem sem fé… Não tenho autoridades ou amigos para quem apelar… Não nos conhecemos senão há dias, mas encontrei em seu coração e em sua casa algo novo para meu pobre espírito… Suporte-me e ampare-me por amor de Deus, em cuja providência você crê com tanta sinceridade!…

35 A jovem viúva, sentindo-se verdadeiramente irmã dele, acariciou-lhe as mãos quais se fossem velhos conhecidos, e agora, igualmente em lágrimas de emotividade e reconhecimento, convidou-o a visitarem juntos o casal sofredor, na noite seguinte.

36 Confiaria Henrique e Lisbela aos cuidados de uma parenta e seguiriam para a residência de Amaro, em companhia de Haroldo. Desejava auxiliá-lo, a ele, Mário, na justa recuperação, e, para esse fim, estimaria acompanhá-lo, de maneira a ser mais útil.

37 O moço aceitou a gentileza, exultante.

Estava convencido de que, ao lado de Antonina, encontraria uma solução.

Um sorriso de reconforto assomou-lhe aos lábios e foi assim que deixamos o enfermeiro atormentado, sob a eclosão de nova e abençoada esperança.


André Luiz


Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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