1.
O relógio terrestre assinalava meia-noite e três quartos, quando tornamos
ao singelo domicílio de Antonina.
A casinha dormia, calma.
2 Acocorado a um canto, o
velho Leonardo mantinha-se na sala, pensando… pensando…
Adensamo-nos,
ante a visão dele, e, reconhecendo-nos, ergueu-se e começou a gritar:
— Ajudai-me, por amor de Deus! Estou preso! Preso!…
3 Clarêncio, bondoso, convidou-o
a acomodar-se na poltrona simples e induziu-o à prece.
O velhinho, contudo, alegou total esquecimento das orações que formulara no mundo, crendo que apenas lhe serviriam as palavras decoradas, mas o orientador, elevando a voz, com o intuito evidente de sossegá-lo na confiança íntima, pronunciou comovente súplica à Divina Providência, implorando-lhe proteção e segurança para quem se mostrava tão desarvorado e tão infeliz.
4 Emocionados com aquela petição
que nos renovava igualmente as disposições interiores, observamos que
o avô de Antonina se aquietara, resignado.
5 Clarêncio, logo após a oração,
começou a aplicar-lhe forças magnéticas no campo cerebral.
O paciente revelou-se mais intensamente abatido.
A cabeça pendeu-lhe sobre o peito, desgovernada e sonolenta.
6 Fitando-nos de modo significativo,
o Ministro ponderou:
— A corrente de força devidamente dinamizada no passe magnético arrancá-lo-á da sombra anestesiante da amnésia. Poderemos, então, sondar-lhe o íntimo com mais segurança. Assistido por nossos recursos, a memória dele regredirá no tempo, informando-nos quanto à causa que o retém junto da neta, aclarando-nos, ainda, sobre prováveis ligações que nos conduzirão à chave do socorro, a benefício dele mesmo.
7 — Mas o retrocesso
das recordações poderá verificar-se de improviso? — Indagou Hilário,
perplexo.
— Sem dúvida, — respondeu o instrutor, — a memória pode ser comparada
a placa sensível que, ao influxo da luz, guarda para sempre as imagens
recolhidas pelo Espírito, no curso de seus inumeráveis aprendizados,
dentro da vida. 8 Cada
existência de nossa alma, em determinada expressão da forma, é uma adição
de experiência, conservada em prodigioso arquivo de imagens que, em
se superpondo umas às outras, jamais se confundem. 9
Em obras de assistência, qual a que desejamos movimentar, é preciso
recorrer aos arquivos mentais, de modo a produzir certos tipos de vibração,
não só para atrair a presença de companheiros ligados ao irmão sofredor
que nos propomos socorrer, como também para descerrar os escaninhos
da mente, nas fibras recônditas em que ela detém as suas aflições e
feridas invisíveis.
— Quer dizer então que…
10 A frase de Hilário, porém,
se lhe apagou nos lábios, porque o Ministro atalhou, completando-lhe
a conceituação:
— A mente, tanto quanto o corpo físico, pode e deve sofrer intervenções para reequilibrar-se. Mais tarde, a ciência humana evolverá em cirurgia psíquica, tanto quanto hoje vai avançando em técnica operatória, com vistas às necessidades do veículo de matéria carnal. No grande futuro, o médico terrestre desentranhará um labirinto mental, com a mesma facilidade com que atualmente extrai um apêndice condenado.
11 Hilário arregalou os olhos,
espantado, feliz. E exclamou, em voz quase gritante:
— Ah! Freud, como viste a verdade!… Como detinhas a razão!…
12 O orientador fixou-o, paternalmente,
e aduziu:
— Freud vislumbrou a verdade, mas toda verdade sem amor é como luz
estéril e fria. Não bastará conhecer e interpretar. É indispensável
sublimar e servir. O grande cientista observou aspectos de nossa luta
espiritual na senda evolutiva e catalogou os problemas da alma, ainda
encarcerada nas teias da vida inferior. 13
Assinalou a presença das chagas dolorosas do ser humano, mas não lhes
estendeu eficiente bálsamo curativo. Fez muito, mas não o bastante.
O médico do porvir, para sanar as desarmonias do espírito, precisará
mobilizar o remédio salutar da compreensão e do amor, retirando-o do
próprio coração. Sem mão que ajude, a palavra erudita morre no ar.
2. O Ministro, contudo, calou-se, dando-nos a entender que o momento não comportava digressões filosóficas.
2 Acariciou, ainda por alguns
instantes, a cabeça do ancião e, em seguida, chamou-o, de manso:
— Leonardo, recorda! Volta ao Paraguai, onde adquiriste o remorso que hoje te retalha o coração! A dor, quase sempre, é culpa sepultada dentro de nós… Retrocedamos ao ponto inicial de teu sofrimento!… Recorda! Recorda!…
3 O velhinho, diante de nosso
intraduzível assombro, acordou de olhos transtornados.
Ergueu a fronte, mas seu rosto alterara-se de maneira sensível.
Sustentava, iniludivelmente, os traços fundamentais, mas fizera-se mais jovem.
4 Registando a surpreendente
transfiguração, Hilário interferiu, perguntando:
— Oh! Que força mágica será esta?
Nosso orientador fitou-o, sereno, e esclareceu:
— Não nos esqueçamos de que temos diante de nós o veículo espiritual,
por excelência vibrátil. O corpo da alma modifica-se, profundamente,
segundo o tipo de emoção que lhe flui do âmago. 5
Isso, aliás, não é novidade. Na própria Terra, a máscara física altera-se
na alegria ou no sofrimento, na simpatia ou na aversão. 6
Em nosso Plano, semelhantes transformações são mais rápidas e exteriorizam
aspectos íntimos do ser, com facilidade e segurança, porque as moléculas
do perispírito giram em mais alto padrão vibratório, com movimentos
mais intensivos que as moléculas do corpo carnal. 7
A consciência, por fulcro anímico, expressa-se, desse modo, na matéria
sutil com poderes plásticos mais avançados.
3. Clarêncio relanceou o olhar pelo recinto e acrescentou:
— Entretanto, não nos descuidemos do serviço a fazer.
2 Nesse ínterim, Leonardo
soerguera-se.
Parecia animado de estranha energia.
O corpo, não obstante continuar obscuro e pastoso, revelava-se desempenado.
3 Repentinamente refeito,
vigoroso e móbil, clamou:
— Lola! Lola! Estás aqui? Sinto-te a presença… Onde te ocultas? Ouve-me! Ouve-me!
4 Com inexprimível espanto,
vimos dona Antonina escapar do aposento, no corpo espiritual com que
a divisáramos na véspera.
Avançou ao nosso encontro, extremamente surpreendida, e, avistando o avô transfigurado, como se fosse tangida no imo da personalidade por misteriosa influência, estampou súbita alteração facial, renovando-se igualmente aos nossos olhos.
As linhas do semblante modificaram-se, de inopino, e vimo-la realmente mais bela, todavia, menos serena e menos espiritualizada.
5 Favorecendo-nos o máximo
proveito nas observações, o Ministro falou em voz baixa:
— Nossa irmã exige tão somente leve auxílio magnético para lembrar-se. Basta-lhe a emotividade anormal do reencontro para cair na posição vibratória do passado, de vez que ainda não se encontra quitada com a Lei.
6 Aterrada, Antonina rojou-se
de joelhos aos pés do ancião que se rejuvenescera ao influxo dos passes
de Clarêncio e gritou:
— Leonardo!… Leonardo!…
7 Ele, porém, irradiando no
olhar ódio e padecimento intraduzíveis, bradou:
— Enfim!… Enfim!…
E prorrompeu em pranto convulso.
8 Estupefatos, ouvimos Clarêncio
que nos informava, generoso:
— Repararam? Antonina é Lola Ibarruri reencarnada. Leonardo está vinculado
a ela por laços de imenso amor. Ambos procedem de lutas enormes, na
teia infinita do tempo. 9
A mulher irresponsável de ontem, hoje é mãe amorosa e digna, à procura
da própria regeneração. Tendo abandonado outrora o marido, foi induzida
a desposar um homem animalizado, com quem se encontra igualmente enleada
por laços do pretérito e que, em não a entendendo agora, votou-a ao
esquecimento. Recebeu, contudo, antigos associados de destino por filhos
do coração, que conduz para o bem. Em contraposição às facilidades delituosas
do passado, atravessa atualmente aflitivos obstáculos para viver.
10 Simpatia incoercível
inclinou-nos para aquela mulher em provas tão ríspidas.
O ensinamento que a vida ali nos ofertava era efetivamente sublime.
A voz do orientador, no entanto, era clara e segura a recomendar:
— Ajudemos. O momento determina auxiliar.
André Luiz