1.
Hilário, aderindo à renovação da palestra, indagou da irmã Blandina
se ela era a dirigente do parque em que nos achávamos, ao que ela informou,
com humildade:
2 — Não me atribua tamanho
crédito. Tenho tarefas variadas aqui e alhures, entretanto, sou mera
servidora. O nosso educandário guarda mais de duas mil crianças, mas,
sob a minha guarda, permanecem apenas doze. 3
Somos um grande conjunto de lares, nos quais muitas almas femininas
se reajustam para a venerável missão da maternidade e conosco multidões
de meninos encontram abrigo para o desenvolvimento que lhes é necessário,
salientando-se que quase todos se destinam ao retorno à Terra para a
reintegração no aprendizado que lhes compete.
4 — E a direção central?
— Inquiriu meu colega, esmiuçador.
— Não reside aqui. O parque é uma das várias dependências de vasto estabelecimento de assistência e educação, do qual somos hoje tutelados. No fundo, nossa casa é uma larga escola, dotada com todos os recursos indispensáveis ao nosso aproveitamento. Os melhores processos de habilitação espiritual funcionam conosco, em benefício dos que vão renascer na carne e dos que se dirigirão, mais tarde, às Esferas Superiores.
2. — Mas possuem aqui até mesmo os cursos primários de alfabetização?
2 — Como não? — Falou
nossa jovem amiga. — Precisamos movimentar todas as medidas de despertamento
espiritual ao nosso alcance. A cultura intelectual pode não ser condição
básica de nossa felicidade, no entanto, é imperativo de engrandecimento
de nossa alma. Quem não sabe ler, não sabe ver como deve.
3 E, sorrindo, acrescentou:
— A evolução, a competência, o aprimoramento e a sublimação resultam do trabalho
incessante. Quanto mais se nos avulta o conhecimento, mais nos sentimos
distanciados do repouso. A inércia opera a coagulação de nossas forças
mentais nos Planos mais baixos da vida. O serviço é a nossa bênção.
3. Nesse instante, com referências tão sublimes ao trabalho, voltamo-nos instintivamente para a devotada Mariana, que se mantinha silenciosa, ao nosso lado.
Estaria ela ligada aos compromissos de proteção à infância?
2 À pergunta que Hilário desfechou,
com delicadeza fraternal, respondeu polidamente:
— Quanto a mim, coopero com minha neta nos serviços que lhe foram conferidos aqui, entretanto, a minha tarefa pessoal mais importante se verifica num templo católico, a que me vinculei profundamente, quando de minha última reencarnação.
3 Aquela afirmativa excitava-nos
a curiosidade. A alusão a um “templo católico” denunciava filiação sectária.
Mariana, efetivamente, emudecera, enquanto Blandina se confiava a precioso extravasamento de suas elevadas emoções. Estariam, ali, espiritualmente divorciadas uma da outra?
4 A venerável irmã, que mostrava
o halo de simpatia das mulheres admiráveis quando alcançam a madureza,
sorriu, benevolente, e acentuou:
— Não estranhem. Partilho com Blandina o estudo das leis divinas para renovar-me em espírito, com vistas ao grande futuro, mas o amor que ainda trago por velhos companheiros de luta humana constrange-me a larga demora, em serviço de cooperação, na antiga casa de fé religiosa a que me afeiçoei.
5 — Aliás, — ponderou
o Ministro, sensato, — o auxílio divino é como o Sol, irradiando-se
para todos. As instituições e as almas que se voltam para o Pai Celestial
recebem o suprimento de recursos de que necessitam, segundo as possibilidades
de recepção que demonstrem.
6 Interessado, porém, nos
apontamentos que surgiam, cada vez mais valiosos, Hilário indagou:
— Em que base se formará o processo de auxílio nas igrejas? Com o impedimento de nossa comunicação direta, como será possível cooperar em favor dos nossos irmãos católicos romanos?
7 — Muito simplesmente,
— esclareceu Mariana, prestimosa, — o culto da oração é o meio mais
seguro para a nossa influência. A mente que se coloca em prece estabelece
um fio de intercâmbio natural conosco…
8 — Mas não de maneira
ostensiva, — alegou o nosso companheiro, estudioso.
— Pelo pensamento, — explicou a interlocutora, respeitável. — A intuição
beneficia em toda parte, e, quanto mais alto é o teor de qualidades
nobres na criatura, mais ampla é a zona lúcida de que se serve para
registar o socorro espiritual. 9
O culto público, indiscutivelmente, qual vem sendo levado a efeito,
nos tempos modernos, não favorece o contato das forças superiores com
a mente popular. Os interesses rasteiros, conduzidos à igreja, constituem
sólido entrave contra o auxílio celeste. 10
E a preocupação de riqueza e pompa, quase sempre mantida pelo sacerdócio
nos ofícios, inutiliza por vezes os nossos melhores esforços, porque,
enquanto a atenção da alma se prende a exterioridades, as forças contrárias
ao bem e à luz encontram facilidades positivas para a cultura do fanatismo
e da discórdia. Ainda assim, superando tais obstáculos, é sempre possível
algo fazer em benefício do próximo.
4.
— Durante a missa, por exemplo, — prosseguiu Hilário, observador, —
é viável o seu trabalho de cooperação?
2 Mariana fixou uma expressão
facial de bom humor e aduziu:
— Somos grandes falanges de aprendizes da fraternidade, em ação. Por mais desagradáveis se nos mostrem os quadros de luta, a nossa obrigação é servir.
3 Finda ligeira pausa, continuou:
— Quando a missa obedece a pura convenção social, funcionando como exibição de vaidade ou poder, a nossa colaboração resulta invariavelmente nula.
4 E, sorrindo:
— Que teríamos a fazer num ato bajulatório, em que os devotos da fortuna
material ou da perversidade incensam a desregrada conduta de pessoas
inescrupulosas? Há missas solenes de consagração a políticos astuciosos
e a magnatas do ouro que, em verdade, são reais sacrilégios, em nome
do Cristo. 5 Por outro
lado, há missas de almas que constituem escárnio à dor dos que foram
recolhidos pela morte, quais as que são mandadas celebrar por parentes
ambiciosos que, por vezes, até mesmo se alegram com a ausência do morto,
ávidos que se mostram de lhes pilharem os despojos, na corrida a testamentos
e cartórios. 6 Essas
missas fortemente adubadas a dinheiro estão para eles tão frias, como
os túmulos em que se lhes asilou a carne desfigurada. 7
Mas, se o ato religioso é simples, partilhado por mentes e corações
sinceros, inclinados à caridade evangélica e centralizados na luz da
oração, com os melhores sentimentos que possuem, o culto se reveste
de grande valor, pelas vibrações de paz e carinho que arremessa na direção
daquele a quem é endereçado. 8
Frequentemente, as missas humildes, realizadas aos primeiros cânticos
da manhã, são as mais favoráveis ao nosso concurso. Podemos, com mais
segurança, articular as possibilidades ao nosso alcance e ambientá-las
a benefício daqueles que esperam de nós o amparo necessário.
5. Hilário pensou alguns instantes, valendo-se do intervalo que surgira na conversação e obtemperou:
2 — Possuímos nas igrejas
a questão do patrocínio. Imaginemos que determinado templo foi erguido
à memória de Gerardo Majela. Isso expressa uma obrigação para o grande
místico europeu?
— Certamente não se trata de uma obrigação escravizante, mas de um serviço
que lhe honra o nome e que merecerá dele certo reconhecimento mesclado
de responsabilidade. 3
Devemos reconhecer, contudo, que o trabalho do bem, qualquer que ele
seja, permanece ligado a Jesus. No entanto, se algum servo do Senhor
está ligado a obra por fazer, tanto quanto lhe seja possível desdobrar-se-á
para enriquecê-la de bênçãos.
4 — Mas… e na hipótese de
algum santuário surgir, dedicado a suposto herói da virtude? Figuremos
alguém da Terra sendo conduzido ao altar por imposição da autoridade
humana, sem mérito bastante, à frente do Senhor… Os crentes encarnados
atribuir-lhe-iam poder de que não conseguiria dispor… Em que situação
estaria o templo que lhe fosse consagrado?
5 Mariana registou a pergunta,
cortesmente, e explicou:
— Numa contingência dessas, mensageiros de Jesus responsabilizar-se-iam pela instituição, distribuindo aí os benefícios adequados aos merecimentos e necessidades de cada um.
6.
— E o tipo de assistência? É de renovação espiritual ou de mero socorro
aos crentes encarnados?
2 — Ah! — Comentou
Mariana, sincera, — o trabalho é complexo e divide-se em múltiplos setores.
Não está limitado à Esfera da experiência física. 3
Inumeráveis são as almas que, desligadas do corpo, recorrem aos altares,
implorando esclarecimento… Outras, depois da morte, confiam-se a desequilibradas
emoções, invocando a proteção dos Espíritos santificados… 4
É preciso corrigir aqui e ajudar além… Agora, devemos injetar um pensamento
reconstrutivo nessa ou naquela mente extraviada, depois, é imprescindível
harmonizar circunstâncias, em favor desse ou daquele necessitado… 5
A maioria das pessoas aceita a religião, mas não se preocupa em praticá-la.
Daí nasce o terrível aumento das aflições e dos enigmas.
A lógica de Mariana encantava-nos.
7. Hilário, porém, prosseguiu indagando, perscrutador.
2 — Mas, apesar de consciente
da verdade que a separação do veículo físico nos impõe, acredita a irmã
que a organização católica é suficiente para conduzir o mundo moderno?
3 Ela sorriu com tristeza
e redarguiu:
— Meu amigo, entre cooperar e aprovar, há sensível diferença. A sociedade
ajuda a criança sem infantilizar-se. 4
As igrejas nascidas do Cristianismo caminham para grande renovação.
O progresso assim exige. As ideias de Céu e inferno e os excessos de
natureza política, na hierarquia eclesiástica, estabeleceram grandes
perturbações para a alma popular. 5
Entretanto, cabe-nos considerar as religiões que envelhecem como frutos
fortemente amadurecidos. A polpa alterada pelo tempo deve ser colocada
à margem, contudo, as sementes são indispensáveis à produção do futuro.
6 Auxiliemos as igrejas
antigas, em vez de acusá-las. Todos somos filhos do Pai Celestial e
onde houver o mínimo gérmen de Cristianismo aí surgirão recursos de
recuperação do homem e da coletividade para o Cristo, Nosso Senhor.
7 A conversação era fascinante
e as perguntas pareciam brilhar ainda, nos olhos de Hilário, maravilhado
tanto quanto nós, ante as elucidações que recebia, mas a hora esgotara-se.
Um sinal de Clarêncio fez-nos sentir que havíamos alcançado o momento da volta.
André Luiz