1.
Clarêncio movimentou a destra, indicando-nos o quadro sublime a desdobrar-se
sob a nossa vista.
Doce melodia que enorme conjunto de meninos acompanhava, cantando um
hino delicado de exaltação do amor materno, vibrava no ar.
2 Aqui e ali, sob tufos de
vegetação verde-clara, muitas senhoras sustentavam lindas crianças nos
braços.
— É o Lar da Bênção, — informou o instrutor, satisfeito. — Nesta hora, muitas
irmãs da Terra chegam em visita a filhinhos desencarnados. Temos aqui
importante colônia educativa, misto de escola de mães e domicílio dos
pequeninos que regressam da Esfera carnal.
3 O Ministro, porém, interrompeu-se,
de improviso.
Nossas companheiras pareciam agora tomadas de jubilosa aflição.
Vimo-las desgarrar, de inopino, qual se fossem atraídas por forças irresistíveis, precipitando-se para os anjinhos que cantarolavam alegremente. Enquanto a que nos era menos conhecida enlaçava louro petiz, com infinito contentamento a expressar-se em lágrimas, dona Antonina abraçou um pequeno de formoso semblante, gritando, feliz:
— Marcos! Marcos!…
— Mãezinha! Mãezinha!… — Respondeu a criança, colando-se-lhe ao peito.
4 Clarêncio fez sinal para
as irmãs vigilantes, que se responsabilizavam pelos entretenimentos
no parque, como a solicitar-lhes proteção e carinho para as nossas associadas
de excursão, e disse-nos, em seguida:
— O pequeno Júlio não se encontra no grupo. Ainda sofre anormalidades que lhe não permitem o convívio com as crianças felizes. Acha-se no lar da irmã Blandina. Rumemos para lá.
2. Em poucos minutos, chegávamos diante de pequenino castelo muito alvo, em que se destacavam as ogivas azuis, coroadas de trepadeiras em flor.
2 Atravessamos extenso jardim,
embalsamado de aroma.
Rosas opalinas, ignoradas na Terra, de mistura com outras flores, desabrochavam profusamente.
3 A irmã Blandina recebeu-nos
sorridente, apresentando-nos uma senhora simpática que lhe fora avozinha
no mundo.
Mariana, nossa nova amiga, cumprimentou-nos, bondosa.
Findas as saudações usuais, Clarêncio tocou, direto, no assunto.
Desejávamos avistar o pequeno Júlio, que havia desencarnado por afogamento.
4 Blandina, que em plena juvenilidade
trazia nos olhos os característicos de sublime madureza de espírito,
respondeu gentilmente:
— Ah! Com muito prazer!
5 E, encaminhando-nos a iluminada
peça, ornamentada de róseos enfeites, onde um menino repousava num leito
muito branco, explicou, sem afetação:
— Nosso Júlio, até hoje, ainda não se refez completamente. Ainda grita sob pesadelos inquietantes, como se estivesse a sofrer sob as águas. Chama pelo pai constantemente, apesar de parecer mais receptivo ao nosso carinho. Insiste pela volta a casa, todos os dias.
6 Acercamo-nos do berço largo
em que descansava.
O menino lançou-nos um olhar de atormentada desconfiança, mas, contido pela ternura da irmã que o assistia, permaneceu mudo e impassível.
— Ainda não se mostrou em condições de partilhar os estudos com os outros?
— Perguntou o Ministro, interessado.
— Não, — informou a interpelada, solícita, — aliás, os nossos benfeitores Augusto
e Cornélio, que nos amparam frequentemente, são de parecer que ele não
conseguirá adquirir aqui qualquer melhora real, antes da reencarnação
que o aguarda. Traz a mente desorganizada por longa indisciplina.
7 Bem humorada, acrescentou:
— É um paciente difícil. Felizmente, dispomos da cooperação de nossa devotada Mariana, que o adotou por filho espiritual, até que retorne ao lar terrestre. Foi preciso segregá-lo neste quarto, tamanha é a gritaria a que se entrega por vezes.
8 — Mas não tem recebido o
tratamento magnético aconselhável? — Indagou Clarêncio, atencioso.
— Diariamente recebe o auxílio necessário, — esclareceu Blandina, com humildade,
— eu mesma sou a enfermeira. Passes e remédios não faltam.
9 — E a irmã conhece o caso
em suas particularidades?
— Sim, conheço. Eulália tem vindo até nós. Lastimo que a mãezinha de nosso doente não esteja em condições de ampará-lo. Creio que o concurso dela poderia insuflar-lhe novas forças. Entretanto, com exceção da irmãzinha que se lembra dele nas orações, ninguém mais da família o ajuda.
10 — Mãezinha! Mãezinha!… —
clamou o pequeno, em voz rouca, erguendo-se e enlaçando Blandina, pálido
e inquieto.
— Que te incomoda, meu filho?
— Dói-me a garganta… — lamentou-se o rapazinho.
11 A jovem benfeitora abraçou-o,
osculando-lhe os cabelos, e recomendou:
— Não te aflijas. Como é que um moço de teu valor pode chorar, assim por nada? Imagina! Temos três médicos em casa. É impossível que a dor não fuja apressada.
12 Logo após, sentou-o numa
poltrona e solicitou a colaboração de Clarêncio.
O Ministro, cuidadoso, pediu-lhe abrisse a boca e, surpreendidos, notamos que a fenda glótica, principalmente na região das cartilagens aritenóides, apresentava extensa chaga.
13 O orientador aplicou-lhe
recursos magnéticos especiais e, em poucos instantes, Júlio voltou à
tranquilidade.
— Então? — Falou Blandina, amparando-o, afetuosa, — onde está agora
a garganta dolorida? E, visivelmente satisfeita, acrescentou:
— Já agradeceste ao nosso benfeitor, meu filho?
14 O menino, hesitante, caminhou
para o Ministro, beijou-lhe a destra com respeitoso carinho e balbuciou:
— Muito agradecido.
Blandina ia dizer algo, mas Júlio correu para o seu regaço, choramingando:
— Mãezinha, tenho sono…
15 A abnegada jovem acolheu-o,
com ternura, reconduzindo-o ao repouso.
Quando tornou à sala, Clarêncio informou que doara ao enfermo energias anestesiantes. Notara-o fatigado, resolvendo, por isso, induzi-lo ao descanso.
16 E, talvez porque nos percebesse
o cérebro esfogueado de indagações, quanto àquela minúscula garganta
ferida, depois da morte do corpo, o Ministro explicou:
— É pena. Júlio envolveu-se em compromissos graves. Desentendendo-se
com alguns laços afetivos do caminho, no século passado, confiou-se
a extrema revolta, aniquilando o veículo físico que lhe fora emprestado
por valiosa bênção. Rendendo-se à paixão, sorveu grande quantidade de
corrosivo. Salvo, a tempo, sobreviveu à intoxicação, mas perdeu a voz,
em razão das úlceras que se lhe abriram na fenda glótica. 17
Ainda aí, não se conformando com o auxílio dos colegas que o puseram
fora de perigo, alimentou a ideia de suicídio, sem recuar. Foi assim
que, não obstante enfermo, burlou a vigilância dos companheiros que
o guardavam e arrojou-se a funda corrente de um rio, nela encontrando
o afogamento que o separou do envoltório carnal. Na vida espiritual,
sofreu muito, carregando consigo as moléstias que ele mesmo infligira
à própria garganta e os pesadelos da asfixia, até que reencarnou, junto
das almas com as quais se mantém associado para a regeneração do pretérito.
Infelizmente, porém, encontra dificuldades naturais para recuperar-se.
Lutará muito, antes de incorporar-se a novo patrimônio físico.
18 Registávamos
aqueles apontamentos com dolorosa admiração. Uma criança doente é sempre
um espetáculo comovedor.
Não nos atrevíamos a manifestar nossos pensamentos de estranheza, todavia, o prestimoso amigo, assinalando-nos decerto as dúvidas, acentuou:
19 — Há poucos instantes,
comentávamos a sublimidade da Lei. Ninguém pode trair-lhe os princípios.
A Bondade Divina nos assiste, de múltiplas maneiras, amparando-nos o
reajustamento, mas em todos os lugares viveremos jungidos às consequências
dos próprios atos, de vez que somos herdeiros de nossas próprias obras.
20 O assunto constituía
preciosa sugestão para interessantes estudos, mas, antes de enunciar
qualquer pergunta, busquei aspirar, a longos haustos, as baforadas frescas
de vento, que carreavam para o recinto vagas sucessivas de agradável
perfume.
André Luiz