1 A caminho do aeroporto, Aristeu Soares comentava com o amigo Alcides Mota os ensinamentos recolhidos na reunião mediúnica da véspera, e estabeleceu-se, de pronto, curioso diálogo.
— Creio absolutamente inoportuna qualquer pregação tendente a ferir-nos a independência, — falava Soares, decidido.
— Mas… — Volvia Mota, reticencioso.
2 — O assunto não comporta evasivas. Os Espíritos amigos que se comuniquem, que consolem, que instruam; no entanto, nada de fabricarem freios psicológicos, copiando as religiões do passado.
— Mas, estamos no estágio da reencarnação, à maneira de alunos na escola. Não sabemos tudo e nem dispensamos o auxílio de professores que nos apontem o caminho certo, para que venhamos a errar o menos possível..
3 — Ninguém aprende sem experimentar a lição por si próprio.
— A função do ensino será, decerto, conduzir-nos à experiência sem quedas desnecessárias.
— Você está procurando subterfúgios.
— Não, meu caro. Compreendamos que os bons Espíritos nos ajudam sem coação. A lei de Deus nos conclama a viver hoje de modo mais elevado que antes. Você, claro, não quererá repetir as mesmas faltas de passadas reencarnações…
4 — Isso é outra coisa. O ensinamento é luz para o íntimo. Concordo em que os benfeitores espirituais nos eduquem os sentimentos; entretanto, a meu ver, não é justo que se aproveitem do intercâmbio conosco para nos arredarem da regalia de proceder como quisermos… Serão bons amigos, sem dúvida; contudo, na maioria das vezes, fazem-se doces e afáveis para induzir-nos a uma posição de disciplina que não aprovo. Nada de exposições acerca de penas e lágrimas além-túmulo e de apelos constrangedores a essa ou àquela atitude, ante os princípios de causa e efeito, quais se devêssemos desempenhar o papel de crianças assombradas…
— Soares, Soares!… Você, ao que vejo, não percebe que os instrutores espirituais nos guiam para o bem, exclusivamente para o bem…
5 — Compreendo que se prove a imortalidade da alma e aceito a necessidade da convicção, mas não justifico advertências e avisos de amigos encarnados ou desencarnados. Se todos dispomos de livre arbítrio e se a própria Doutrina Espírita consagra a responsabilidade pessoal, por que motivo os discursos ou escritos de corrigenda ou reprovação?!…
6 Mota, porém, não esmorecia na sensata argumentação com que se impunha, e replicava, enquanto o ônibus deslizava, célere:
— Lembre-se de que estamos na Terra, “mundo de provas e expiações”. Somos na Humanidade os membros de uma só família, na obrigação de amparar-nos e defender-nos mutuamente. Em muitas ocasiões, em vez de agirmos com acerto, procedemos à feição de loucos… Ora, nem sempre cumpriremos o dever de solidariedade, oferecendo rosas e caramelos uns aos outros. Um companheiro, prestes a afogar-se, é salvo através de um choque providencial…
7 — Não. Nada de escapatória. Acidente é outra coisa. Refiro-me a conselhos que ninguém pede…
— Onde colocaremos, então, a medicina preventiva e os preceitos da ordem social? Num planeta, qual o nosso, não podemos ignorar o valor da polícia e da imunização.
— Não me venha com sofismas. Sou contra qualquer palavra da Terra ou do Mundo Espiritual que intente furtar-nos o direito irrestrito à liberdade de ação…
8 Nisso, o veículo parou e a conversa interrompeu-se, porque o avião estava quase a decolar.
Mais alguns minutos, e os dois companheiros se achavam a pleno céu, confortavelmente instalados no rumo da capital argentina.
9 Tudo corria às mil maravilhas, quando, a meio da noite, ambos viram certo companheiro de viagem, evidentemente enfermo e em momento de insânia, ajustando uma bomba, rente a si próprio, para suicídio espetacular.
10 Foi então que Mota falou para Soares, com excelente lógica:
— Agora, meu caro, recordemos nosso desacordo e examinemos a prova diante de nós. Tomamos medida contra o vizinho em delírio ou comprometemos, conscientemente, não apenas a nossa vida, como também a vida de dezenas de passageiros. E não é só. É preciso agir com prudência ou iremos todos pelos ares…
Aristeu concordou num sorriso amarelo:
— É… é…
11 E enquanto Mota se dirigia, cauteloso, ao comando da nave, para a solução pacífica do problema, foi o próprio Soares quem se abeirou, afetuosamente, do louco e, após identificar-lhe a condição de espírito revoltado, passou a adverti-lo com palavras de brandura e entendimento, chamando-o por “irmão”.
Irmão X
(Humberto de Campos)