12|10|1985
1 Querida Lúcia, peço a Deus nos abençoe!
2 Sei que você está acompanhada por nosso Sérgio, por nossa Sarita e por nossa Nilza. n A eles os meus pensamentos de paz, com as minhas preces ao Senhor Jesus pela felicidade de todos os nossos.
3 Você não imagina como é grande o nosso anseio de transmitir notícias capazes de auxiliar na preservação da tranquilidade da família. Tenho recebido todas as suas anotações, escritas como que em segredo, para que eu consiga permanecer informada das suas lutas de filha e mãe, na atualidade.
4 Creio que o amor colocado por Deus no coração das mães não lhes permite o descanso com que tanta gente sonha inutilmente. De maio até agora, sinto como se estivéssemos todos sob uma tempestade que, graças aos Céus, está sendo amainada gradativamente. 5 Dos seus bilhetes, destaco aqueles em que você me falou do desejo de morrer de qualquer modo, o que me assustou bastante, porque semelhante propósito não pode surgir em nossa confiança na justiça de Deus, que tudo rege para nosso bem. Filha querida, suporta as provações com serenidade e coragem! 6 Sofro muito, mas sofro com calma, em observando os obstáculos que se interpuseram entre a paz e a nossa casa, sempre resguardada pela união de todos. Sofro porque sou mãe e a certeza dessa condição não me dá tréguas ao pensamento, de vez que será impossível para mim ver você em constantes inquietações, sem mover-me para prestar-lhe auxílio.
7 Tenho procurado fortalecê-la e escorá-la em todos os dias de nossa luta. Tudo será resolvido na proteção da Divina Providência. Seus bilhetes sobre a nossa Tuquinha n me tomam atenção. Entendo os seus empecilhos para se dirigir a cada filho, na dimensão exata do que se faz necessário dizer a cada um. Peça à nossa Luizinha para sossegar o pensamento, às vezes cansado, sem justos motivos. Ela me compreenderá no que lhe digo nos momentos de solidão em nosso quarto. Se eu pudesse, retomaria o meu corpo doente para estar em casa, entretanto, sei igualmente que preciso exercitar a paciência e a conformação.
8 Você deseja saber como se deu o meu afastamento de casa, logo depois da separação definitiva de meu pobre corpo enfermo. A bondade infinita de Deus, por Seus mensageiros, impediu o mal-estar de que me veria possuída se fosse obrigada a seguir aquele cortejo do entardecer. 9 Fiquei em nossa casa mesmo, no leito que o José, com o apoio de alguns amigos, me improvisou, em um dos cantos do aposento amplo. Passei por breve sono, do qual despertei muito aflita a chamar por você, mas a presença de minha mãe, Maria de São João de Deus, ao meu lado, me impunha reserva e sobriedade. 10 Chorando muito, perguntei a ela por que não me retiravam dali, daquele retângulo, como que formado de algodão ou de neblina densa, que não conseguia compreender…
11 Quero transmitir a nossa conversação a você e a quem possa aproveitar os ensinamentos que recebi.
— Minha mãe — disse agoniada — por que estou retida em meu próprio quarto, quando acreditei que ficaria livre do ambiente de meus sofrimentos na enfermidade longa?…
12 Ela explicou:
— Luiza, você ainda apresenta muito peso para sair com facilidade.
— Peso? — Repliquei. Meu corpo fatigado não era mais que um feixe leve de ossos…
— Não me refiro a isso. — tornou minha mãe. — Reporto-me ao seu coração, pesado de angústia, acumulando recordações dolorosas e carregando pesares que a prendem ao lar…
13 Eu não sabia que as mágoas revelam peso nocivo à vida íntima e não voltei às indagações. Depois de seis dias, ouvi minha mãe solicitando ao José que providenciasse a vinda de um carro para minha retirada. Estranho, para mim, é que ela esclareceu ao término das recomendações:
14 — Ela podia perfeitamente usar o pensamento para dispensar qualquer veículo, entretanto, minha filha, sempre lutando sob as dificuldades naturais na criação da família, não teve oportunidade e nem tempo para exercícios mentais que lhe seriam fáceis no desdobramento das orações…
15 Sempre chorosa e calada, a breve tempo fui conduzida por minha mãe a um carro diferente daqueles que usamos na vida física. Ela e cinco amigas, ou colegas do serviço de assistência a que se dedicava, tomaram assento em dois bancos traseiros, enquanto que a mim foi reservada uma poltrona de grande tamanho junto ao motorista, a que se dá por aqui o nome de piloto.
16 Sempre conduzida por minha mãe, a sentir-me quase à maneira de uma criança, acomodei-me na poltrona, sem partilhar da conversação que se mantinha na intimidade do veículo. O carro deslizou, ao modo habitual do mundo, no entanto, após uma distância — que calculo de dois ou três quilômetros — o piloto imprimiu maior velocidade àquele refúgio rodante e o carro planou no ar, compreendendo eu que o veículo, para mim completamente desconhecido, se revestia de função dupla, porquanto evoluía rapidamente no mundo aéreo, talvez com mais segurança que na Terra comum.
17 Tão amargurada me achava que me abandonei à viagem “para o que desse ou viesse”, de vez que a minha contrariedade era um pesadelo que me situava entre o pesar e a cólera, que eu não conseguia disfarçar. Sentia-me na condição de inimiga irreconciliável da morte, que me afastara do convívio de casa.
18 Findos, talvez, uns quarenta minutos de voo, chegamos a uma praça, onde se levanta grande Instituto, construído com cinco frentes distintas e devidamente numeradas. Muita gente aguardava aquele engenho, que pousara no chão a uns três quilômetros da praça a que me refiro. E entre os circunstantes, que se mantinham discretamente afastados, reconheci muitos parentes e amigos, que me saudavam, mantendo-se um tanto longe, decerto pelas disciplinas ali estabelecidas, mas o meu estado de irritação era tamanho que baixei a cabeça para não ser obrigada a cumprimentar ou acenar para alguém.
19 Minha mãe percebeu o meu desagrado e me recomendou apoiar-me na bengala de que não me afastava nos tempos últimos. Mesmo mancando, sem olhar para os que nos observavam, entrei no Instituto, onde um quarto me fora reservado. Os detalhes são muitos e não devo alongar-me demais. Vim a saber, porém, que me achava numa organização católica para os reajustes de minhas forças. 20 Indaguei de minha mãe o porquê de minha localização ali, ao que ela me disse que, embora muito relacionada com os espíritas-cristãos, eu não dispunha de meios para me adaptar a uma Instituição dessa natureza, de vez que me habituara ao terço para as minhas preces, e que ali encontraria muitas criaturas amigas que comigo compartilhariam os assuntos predominantemente católicos; que isso seria uma posição transitória, até que eu me dispusesse a estudar e a pensar nos problemas da vida e dos destinos espirituais, sob outro prisma.
21 Tudo aceitei, sem qualquer reclamação, mas o meu Espírito, que voltara à sensibilidade infantil, derramava lágrimas e aflições incessantemente. Minha mãe me esclareceu que não me seria possível receber visitas enquanto não me modificasse para melhor e não opus qualquer resistência, porque a ideia da morte não me entrava com simpatia na cabeça. Depois de alguns dias, José veio comunicar-me que certa amiga, além de você mesma, me aguardava a cooperação possível.
22 Dessa vez foi ele quem me conduziu ao veículo que tentei descrever e deu ao piloto um endereço. Aquela estranha máquina deslizou em terra e, em seguida, voou, com grande velocidade. À medida que descíamos do ar para o chão terrestre, comecei a sentir a necessidade de apoio. As antigas doenças como que me retomavam…
23 José, prestimoso, apresentou-me a bengala, explicando que não se esquecera de trazer a minha escora. O carro percorreu pequena distância e reconheci Matozinhos. n Quanto mais perto de certa casa mais o coração me disparava no peito!
24 Depois da parada, entramos José e eu na residência. Fui encontrar a nossa Hermelita n nos últimos instantes do corpo. Ah, Lúcia, n você consegue imaginar a minha emoção? No aposento em que os filhos choravam discretamente, a nossa amiga pensava em mim como se eu valesse alguma coisa para lhe ser útil! Ela me pareceu em luta para desagarrar-se do corpo que a libertava e chorei por ela e por mim mesma!… Pode você calcular o que seja a dor das mães compelidas a deixar os filhos num adeus que não se sabe determinar?
25 À pequena distância de nossa amiga estava João, o esposo que a sustentava, e não longe, num círculo de orações, via-lhe o pai, que conheci com o nome de Juca Folheiro, e a querida mãe, Ritinha, com Ursinha, Maria e outros irmãos que, ao lado de familiares do João, irmanavam-se endereçando-lhe forças para se liberar do corpo já imóvel. Que podia eu fazer senão orar e chorar com aquela que sempre nos fora irmã pelo coração?
26 Aproveitei o giro em que nos achávamos e pedi uma rápida vistoria em Pedro Leopoldo… Cheguei, pela primeira vez depois de minha saída, e pude abraçar você e Sarita, Luizinha, Caio e Sérgio, tendo ido ver Pingo e os nossos. Ao aproximar-me da mesa de refeições, notei que Oscar despertara e saía do aposento. Embora o meu esforço para não ser vista, ele me viu ligeiramente, sem conseguir ocultar a própria surpresa.
27 Minhas lágrimas naquele retorno breve me ensopavam o rosto e nunca imaginei que se pudesse chorar tanto num corpo que não era o mesmo que se usa na experiência física. Pensei, porém, na dor de Hermelita, num terrível esforço para ficar e, de certo modo, reconfortei-me, porque eu não era a única mãe a sofrer com a intromissão da morte.
28 Nos tempos últimos, aprendi a concentrar os meus próprios pensamentos na ânsia de estar em casa e recebi o prêmio de ir até lá, nas asas mágicas do pensamento, por enquanto, todas as vezes que assim o desejasse. É assim que não estou dependente de veículo algum e tenho podido acompanhar o nosso querido Sérgio na prova que lhe fere o coração. Sérgio, se você estiver me ouvindo, peça a Deus coragem e compreensão!
29 Querida Lúcia, não posso alongar-me, preciso terminar, mas preciso que você diga à Célia e à Cleusa que o passeio em companhia de Cândida n foi o primeiro que fiz depois de minha permanência aqui, mas desejo que ambas saibam que o nosso banho foi uma frustração! 30 As águas não nos alcançaram o corpo espiritual. Foi inútil o nosso desejo de sonhar com um banho idêntico aos nossos. A água no mundo físico é composta de matéria pesada, que passa por nosso corpo espiritual, sem atingir-nos. Cândida e eu tivemos de contentar a nós mesmas com o banho medicamentoso de vapores controlados de que ainda necessitamos na Instituição em que nos achamos.
31 Peço a você, querida Lúcia, dizer à Helena, a nossa Helena do Luciano, n para que não se magoe por não lhe haver escrito o nome em minhas notícias. Acontece que falando em Luciano e Pingo senti que me reportava ao mesmo tempo a ela e ao Nery. n Você note como é difícil tocar as teclas da memória depois da desencarnação… Escrever lembrando ocorrências e pessoas parece com o ato de fazer música na pauta. É preciso ter nota por nota nas recordações imediatas.
32 Envio muitos beijos à nossa Tuquinha e agradeço a ela continuar em nosso dormitório, como agradeço por seus cuidados mantendo o nosso refúgio doméstico nos lugares de sempre. Muito grata por haver você conservado as minhas rosas artificiais, que nos guardam tantos pensamentos e orações de paz e esperança.
33 Lembranças carinhosas ao nosso Caio, à Nilza e ao Sérgio. Prometo fazer o que eu puder para que ele encontre o emprego necessário. Estou vendo a nossa Ana Carmela n e peço a você dizer-lhe que o nosso Cláudio n receberá o amparo do Alto. Ela e o nosso amigo Horvânio n não podem desanimar!
34 Meus pensamentos de amor para Pingo e Luciano, com muito carinho a todos os netos.
35 Lembranças ao nosso Oscar e para você, querida Lúcia! Entranhado nesta folha de papel fica todo o coração de sua mãe, sempre a sua,
Luiza Xavier
Notas da editora:
[1] Refere-se ao neto Sérgio Luiz, à bisneta Sarita e à Nilza, que foi namorada e noiva de José Geraldo, filho de Lúcia. Nilza era uma pessoa muito querida pela família, especialmente por D. Luiza.
[2] Localidade mineira limítrofe a Pedro Leopoldo, distando desta apenas 6,5 quilômetros e, da capital, Belo Horizonte, 47 km.
[3] Cândida, como já mencionado em mensagem anterior, era a mãe de Célia e Cleusa. Foi casada com o farmacêutico José Martins, de Pedro Leopoldo. A família era muito amiga dos Xavier.
[4] Refere-se a Helena, esposa de seu filho Luciano.
[5] Nery era o marido de Maria Alice, a Pingo. Relembrando, o casal teve três filhos: Conceição, Julinho e Chiquitinho, já mencionados em mensagem anterior.
[6] Em referindo-se a Ana Carmela Aluotto Aleixo, sobrinha de D. Neném Aluotto Berutto, antiga presidente da União Espírita Mineira e grande amiga de Chico Xavier e de sua família.
[7] Em referência a Cláudio e Horvânio Aleixo, filho e marido, respectivamente, de Ana Carmela Aluotto Aleixo.