1. Depois de nos adaptarmos à vida livre dos Espaços, quando o ser não se encontra debaixo de paixões absorventes e a sua consciência se despovoa das lembranças penosas, compreende-se quão sublimes são os atributos das almas, ornamentos luminosos do incomparável dom divino da inteligência.
2 Uma das faculdades, acerca
da qual ouvia maravilhosas dissertações, era a que fornecia ao Espírito
o poder de penetrar o passado longínquo, não para se examinar individualmente,
mas para o estudo de épocas, de costumes, de civilizações, de raças,
lendo a história viva da evolução humana. 3
Eu ainda não me aventurara nesse terreno para o qual me julgava balda
de forças; todavia, alguns estudiosos sentiam com tamanha intensidade
a sede de auscultar o pretérito da humanidade, que solicitavam o auxílio
de mestres aptos a coadjuvá-los para isso.
2. Organizavam-se,
então, reuniões no ambiente em que me encontrava, onde vários mentores
espirituais operavam, como se fossem êmulos de Mesmer, em experiências
magnéticas. 2 Espíritos
desejosos de relação com o passado entregavam-se passivamente como os
sujets nesses estudos, com a diferença de que não perdiam a consciência
do seu “eu”, conservando-se atentos a todo o ensinamento.
3 Esses estudos não eram,
pois, completamente análogos aos vossos; representavam somente o esforço
de uns para que se despertasse com mais rapidez a consciência espiritual,
em toda a grandeza do seu poder vibratório.
3. Sabendo contudo
que, com a ajuda do recolhimento em preces constantes, cada um de
per si, paulatinamente, poderia fazer as suas investigações, esperei
pacientemente a minha vez. 2
A princípio, quando me entregava a esses exercícios, parecia-me adquirir
um segundo estado mental em que os meus pensamentos eram coisas movimentadas,
ativas e palpáveis. Nada havia neles de abstrato ou de imaginário, caracterizando-se
todos os elementos por traços especiais.
3 Até hoje não sei se os
quadros por mim lobrigados eram um retrospecto de minhalma às suas próprias
existências passadas ou se fui observadora de paisagens, fotografadas
para sempre nos raios da luz que nos circundavam em toda a parte.
4. Vi, primeiramente, os quadros atinentes ao passado local da cidade em que nascera, os quais são em demasia sem relevo para que a eles me refira.
2 A minha visão, porém, foi
ampliando-se estendendo-se no espaço e no tempo com relação à existência
da pátria. Contemplei, emocionada, em razão do fenômeno que se operava,
os seus grandes acontecimentos históricos como revoluções intestinas,
lutas com o estrangeiro, fatos políticos e sociais.
3 Vi o desenrolar de muitas
cenas, donde se irradiaram efeitos benéficos ou nefastos para todo o
país, porém a tudo assistia admirada de não ver as solenidades e pompas
de que se faz a história acompanhar nos seus erros descritivos.
5. Em quase nenhuma das personalidades que se me deparavam aos olhos, via a auréola de glória que a posteridade lhes havia dado; ao contrário, pude constatar que inúmeros daqueles, que são venerados pelos homens com o incenso de um falso patriotismo, não passavam de míseras almas fracassadas em seu bons propósitos, conservando-se, além dos véus físicos, famintas de luz e de paz.
2 O que mais me comoveu nos
quadros animados, que eu via da existência coletiva da nacionalidade,
foram os rasgos de heroísmo, os romances de miséria e dor, as páginas
sangrentas da escravidão do Brasil. 3
Vi seres crucificados em suplícios dantescos, perseguidos por dores
lancinantes, infligidas por senhores desalmados e cruéis; mas pude saber
também que naquelas vestes de infortúnio e padecimentos se ocultavam
antigos dominadores e verdugos da humanidade em eras de antanho, os
quais resgatavam penosamente as dívidas de outrora.
6. Poderosos e déspotas romanos, inquisidores da Igreja, algozes das coletividades, inúmeros tiranos de todas as épocas buscaram a purificação pelos trabalhos do cativeiro, dominando climas bravios, devassando florestas inóspitas e afrontando vexames na procura de sua redenção moral.
7. Minha visão
estendia-se mais e mais e vi o solo brasileiro habitado pelos aborígenes,
admirando as suas bizarras manifestações de crença, sua maneira especialíssima
de viver, vi a chegada dos primeiros colonizadores e a luta que se travou
entre eles e os naturais. 2
Auscultando os pretéritos longínquos, tenho pessoalmente razões para
acreditar que o continente americano nada tinha de novo e que foi das
suas grandiosas extensões que saíram, aos magotes, os emigrantes para
a criação dos surtos civilizadores de outras terras.
3 Era para mim, portanto,
um mundo novo de sensações, poder regredir ao passado, sentir a ansiedade
dos agrupamentos coletivos e vibrar com a sua vida intensa.
8. Certa ocasião eu quis experimentar se não poderia ver algo fora dos assuntos relacionados com o recanto do mundo em que vivera e tomei para isto, um antigo documento guardado por egiptólogos com atenção e carinho.
2 Tratava-se de um
papiro, que trazia uma inscrição hieroglífica, da qual não pude saber
de relance a expressão textual; todavia, revirando-o nas mãos, senti
alguma coisa de extraordinário. 3
Entrei em relação com o estado vibratório do seu antigo possuidor quando
ali grafara o complicado texto e soube logo que se tratava de uma fervorosa
invocação a Horus, n
formulada por um sacerdote tebano, em momento de angustiosa expectativa.
4 O que senti, então,
foi algo comparável ao que experimentam todos quantos possuem o dom
da psicometria.
9. Relacionei-me
com a existência do sacerdote em apreço e senti as suas impressões no
instante em que formulara a sua rogativa… 2
Vi ao meu lado a grande pirâmide e não muito longe divisei o vulto da
esfinge gigantesca no deserto de areia, porém não trazia em si o vestígio
do tempo e das tempestades. Sobressaía do seu aspecto imponente, grandioso,
o esplendor das eras faraônicas… 3
Lobriguei no corpo majestoso da pirâmide uma porta lateral, onde penetrei
acompanhando aquele sábio egípcio em suas meditações profundas; atravessei
corredores sinuosos e câmaras escuras, repletas de ar sombrio, como
se fossem povoadas de espectros ameaçadores.
4 Chegada a certa altura,
desci por caminhos tenebrosos, onde haviam os maiores perigos para uma
alma encarnada; símbolos terríveis se apresentavam àquele iniciado e
admirei a coragem desse homem de nervos férreos, que não temia a sombra,
a ameaça e a morte.
5 Através de peripécias
inenarráveis, chegamos a um templo subterrâneo de regulares proporções,
entre cujas paredes se abrigavam muitos homens silenciosos, bizarramente
trajados. 6 Eu vi,
porém junto deles muitos seres espirituais; e dentre os presentes destacava-se
a figura majestosa e complacente de um velho que, certamente, era o
supremo hierofante ou grande sacerdote da comunidade. 7
Vi-o estender os braços horizontalmente, pronunciando palavras num idioma
para mim ininteligível mas das quais pude alcançar a essência, penetrando-lhe
o pensamento.
10. Assisti a
cerimônias extravagantes e esquisitas, regressando, depois de terminadas,
pelos mesmos caminhos a que me referi. 2
Aquele iniciado, ao grafar as ideias no papiro experimentava a lembrança
dos seus venerandos mestres. 3
As vibrações da sua mente haviam impregnado aquele objeto e a sua prece
estava ali patente e imortal.
4 Concluída a minha experiência,
ouvi a voz do meu guia a exclamar:
— “Considera, minha filha, como todas as coisas têm a sua história!…
5 A vida é o eterno
fenômeno dos jogos vibratórios e tempo virá em que as almas na Terra
compreenderão o papel do Espírito na sua esfera infinita de influenciação.
6 Nessa era nova,
os homens verão mais além e hão de construir, com os seus conhecimentos,
a felicidade eterna.”
Maria João de Deus
Nota — Deus egípcio, representado ora por um gavião, ora por um homem com cabeça de gavião.