1. Nos Planos da erraticidade, onde me encontrava, poucos eram os seres cuja mente, em toda a intensidade das suas vibrações, já havia desabrochado o domínio das lembranças relativas às existências passadas.
2 Nesses tempos imediatos
ao post-mortem, repontados de impressões físicas, as quais persistem
em algumas entidades anos a fio, a vida é quase cópia da existência
da personalidade terrena 3
e foi assim que conheci inúmeros companheiros, que duvidavam dos ensinamentos
dos mestres quando se referiam aos pretéritos longínquos; e alguns deles
me asseveravam não poderem admitir a multiplicidade das existências
da alma. 4 Semelhantes
crenças eram o atestado da ignorância de quantos as abrigavam, pois,
como nos Planos terrestres, ou nas regiões que vos são ainda imponderáveis,
a Natureza não dá saltos.
5 Naquele ambiente misturavam-se
os protestantes, os católicos, os professos de outras seitas, inclusive
espíritos que militam nas hostes do materialismo mais avançado na superfície
da Terra, e se aquelas falanges de almas não eram más, também não eram
perfeitas. Não discutiam acaloradamente, mas cada uma preferia guardar
os seus pontos de vista em matéria religiosa, acariciados durante a
vida inteira pela mais estranha devoção.
2. É verdade
que nós, os católicos, não encontráramos o purgatório e os seus instrumentos
de suplício depurador, nem o inferno e as suas tenazes demoníacas, ou
o paraíso lotado de anjos e virgens. 2
Os protestantes de certas escolas reconheceram-se despertos, sem o sono
em que se diz estarem mergulhados os mortos, à espera do juízo final.
3 Nós, os religiosos, não
acharemos o que nos prometiam as nossas Igrejas, como os ateus não encontrarão
o nada em que acreditaram. A posição de todos, porém, nesse assunto,
era de expectativa, segundo presumi, e cada qual se escorava nas suas
interpretações pessoais, à espera de que os acontecimentos corroborassem
as suas desconfianças.
4 A ignorância, de
que dávamos testemunho com as nossas dúvidas em face daquilo que os
pregoeiros da verdade nos vinham ensinar, era oriunda de nossa persistência
no atraso espiritual, infensos a toda ideia nova e arraigados em concepções
que precisávamos banir para sempre, em benefício do nosso progresso.
5 Essa resistência
obstava a necessária amplitude de estado vibratório do nosso Espírito
para que nele desabrochassem as recordações adormecidas. É assim que
justifico a ignorância havida com respeito ao passado.
3. Através destas
palavras reconhecereis como se faz preciso a difusão das verdades espiritualistas
no mundo; só elas servem de base a todos os edifícios religiosos, escoimando
a mente de fardos perigosos.
2 Habituada a acatar incondicionalmente
os ensinamentos da Igreja, mantinha também as minhas vacilações quanto
à crença nas existências passadas. Por que não me lembrava delas, já
que não possuía mais o corpo terreno? Já que a morte me havia arrebatado
dos Planos materiais, era natural que não tivesse justificativa aquele
esquecimento.
3 Entretanto, todos
os mentores espirituais que nos dirigiam, discorriam sobre o nosso pretérito
longínquo… Falavam dos compromissos a resgatar, das dívidas penosas,
das lutas necessárias ao nosso desenvolvimento.
4. Intrigada com esses problemas procurei, como sempre fiz, apelar para as almas beneméritas que nos guiavam em nossa ignorância. Um desses mestres explicou-me:
— “A descrença e a hesitação de que vos achais possuída é, ainda, questão das
ideias reflexas, das quais só o tempo, aliado ao bom desejo, vos poderá
despojar. 2 A vossa
mente é quase a mesma que no mundo vos caracterizava. É preciso meditar
muito sobre esta condição, porque as impressões que trouxestes podem
perdurar por largo tempo, caso não desejeis com sinceridade evitar essa
ignorância e cegueira espirituais.”
3 Solicitei a sua assistência
e auxílio ao que ele prometeu coadjuvar no mesmo instante, a fim de
me certificar quanto à realidade das existências transcorridas.
5. Pediu que
me conservasse mentalmente numa atitude passiva e, com as mãos sobre
a minha fronte, colocou-se na posição de magnetizador. A princípio senti
a sensação de abalo, mas sem o mais leve traço de sono ou de inconsciência,
experimentando antes um extraordinário aumento de lucidez e observando
maior agudeza de percepções, comecei, então, a ver, não exteriormente,
mas em meu íntimo, uma série de coisas e de acontecimentos a que me
sentia indissoluvelmente ligada sem o saber. 2
Vi seres aos quais me pressentia jungida por inquebrantáveis algemas
e lhes ouvi a voz terrível ou acariciadora… Eu ia compreendendo todos
esses fatos que se sucediam uns aos outros.
3 Ah! Se vi algo nesses panoramas
retrospectivos que me trouxe gratos prazeres ao coração, também enxerguei
as misérias de minhalma necessitada de esclarecimento e redenção e,
— se não é possível relatar todas as visões daqueles minutos em que
me coloquei sob o império da excitação vibratória provocada pela bondade
do meu guia com os seus poderosos fluidos, — posso dizer-vos de uma
cena tocante, eternamente gravada em meu Espírito.
6. Experimentei
nessas sensações de volta ao passado o vácuo de meu coração envenenado
pela atração dos gozos mundanos, antes de retornar ao orbe para minha
derradeira encarnação; vi-me como um ser errante, sem destino, crucificado
pelo isolamento e pela condenação da consciência poluta. 2
Perambulando, mas retida no mesmo lugar como se fora chumbada ao solo,
encontrei alguém que reconheci ser um Espírito querido à minha existência.
Aproximei-me, então, depois de longa ausência, daquela que me serviu
de mãe, a quem conhecestes. Como me sensibilizou vê-la naquela situação
de humildade, lutando com mil asperezas num destino de pobreza ingrata!
3 Acerquei-me daquela jovem
de faces maceradas nos trabalhos e lembrei as alegrias mentirosas de
que fomos partícipes no passado. Tive ímpetos de incitá-la a abandonar
as tristezas da sua vida material, mas uma voz imperiosa ordenou que
eu me prostrasse de joelhos.
4 Contemplei genuflexa o seu
semblante cheio de serena grandeza no infortúnio e chorei, chorei, muito,
exclamando:
— “Oh! tu que já sorveste comigo, na taça das efêmeras felicidades da Terra,
o mesmo vinho de envenenado sabor, e que hoje resgatas na túnica dos
pobres e dos humilhados as dívidas de outrora, ajuda-me em meus bons
desejos… Eu quero também esconder nos trapos da plebe anônima e sofredora
as úlceras da minha enorme desdita. 5
Lavarei com lágrimas as nódoas da minha consciência, seja eu sangue
do teu sangue, carne da tua carne! Dá-me das tuas vestes e das tuas
preocupações, dá-me dessas dores que hoje te crucificam e desses desgostos
que desfazem os teus enganos e ilusões, porque só eles, só esses sofrimentos
salvadores, balsamizarão as minhas feridas, devolvendo-me a paz consoladora.
6 “Recebe-me, ó Espírito bem
amado, afaga-me em teu carinhoso regaço para eu adormecer esquecendo!…
Eu tenho necessidade de olvido numa luta nova!…”
7 Nessas rogativas sinceras,
vi que o rosto daquela mulher se cobria de lágrimas; pensamentos tristes
e amargosos envolviam-na. É que os meus apelos repercutiam no seu coração.
8 Chorando, chorando, senti-me
exausta de forças, sem poder erguer-me da prostração; vibrações de uma
brisa misteriosa varriam, entretanto, do meu cérebro esgotado, as mágoas
e as preocupações.
9 Eu perdia a consciência
de mim mesma… É que dava o primeiro passo para o meu renascimento na
Terra e, segundo os meus desejos, aquela mulher me recebia em seu seio
para, igual a ela, sorver o fel da provação redentora e, imitando-a,
fui também mãe para sofrer e me redimir.
Maria João de Deus