1 Conta-se que alguns apóstolos do bem tanto se ergueram na virtude que, pela extrema sublimação de suas almas, conseguiram atingir o limiar do Santuário Resplendente do Cristo.
2 Voltariam ao mundo, no prosseguimento da obra de amor em que se entrosavam, no entanto, convocados pelos poderes angélicos, poderiam excursionar felizes pelas vizinhanças do Lar Divino.
3 Bem-aventurados pela glória e pela bondade, constituíam provisoriamente no Céu toda uma assembleia de beleza e sabedoria.
4 Missionários ocidentais ostentavam dalmáticas imponentes, lembrando as instituições religiosas a que haviam pertencido, enquanto que os santos do Oriente exibiam túnicas liriais. Veneráveis sacerdotes das igrejas católicas e protestantes confundiam-se com patriarcas judeus e budistas. Admiráveis seguidores de Confúcio e insignes devotos de Maomé entendiam-se uns com os outros.
5 Muito acima das interpretações humanas, tendentes à discórdia, alcançavam, enfim, a suprema união na esfera dos princípios.
6 Exornava-se cada um com a mensagem simbólica dos templos que haviam representado. Anéis, cruzes, báculos, auréolas, colares, medalhas e outras insígnias preciosas destacavam-se do linho e da púrpura, da seda e do ouro, faiscando ao sol em que se banhavam.
7 Entretanto, um deles destoava do brilhante conjunto.
Era um antigo servidor do deserto que não se filiara a igreja alguma. Ibraim Al-Mandeb fora apenas devotado irmão dos infelizes que vagueavam nas planícies arenosas da Arábia.
8 Não possuía qualquer sinal que o recomendasse ao respeito e à consideração. Trazia os pés descalços, em chaga e pó. Na veste rota, mostrava as manchas sanguinolentas das crianças feridas que havia conchegado de encontro ao peito. As mãos magras e hirsutas pareciam forradas em couro de camelo, tão calejadas se achavam no rude trabalho de assistência aos viajantes perdidos. Os cabelos grisalhos e imundos falavam de longas peregrinações sob a tempestade, e o rosto enrugado e rijo era a pesada moldura de dois olhos belos e lúcidos, mas encovados e tristes, guardando pavorosas visões das dores alheias que ele havia socorrido, abnegado e atento.
9 Isolado no festim, o ancião notou que dois anjos examinavam a assembleia, fazendo anotações num pergaminho celestial.
10 Depois de analisarem todos os circunstantes, um por um, abeiraram-se dele, estranhando-lhe a desagradável presença.
11 — Amigo, — interrogou um dos emissários, — a que igreja pertenceste na Terra?
— Para que a pergunta? — Inquiriu o forasteiro com humildade.
12 — O Senhor deseja entender-se com um dos visitantes do Lar Divino e estamos relacionando, por ordem, os nomes daqueles que mais profundamente o amaram no mundo…
— Não se preocupem então comigo! — Clamou o anônimo beduíno. — Nunca pude consagrar-me ao culto do Senhor e sinceramente ignoro por que razão fui guindado até aqui, quando não posso ter lugar entre os eleitos da fé.
13 — Que fizeste entre os homens?
— Que o Senhor me perdoe a ingratidão e a dureza, — suspirou o velhinho, — mas o sofrimento de meus irmãos não me deu oportunidade de pensar nele… Nunca pude refletir na sublimidade do Paraíso, porque o deserto estava cheio de aflição e lágrimas!…
14 Vendo que o estranho peregrino prorrompera em pranto, o anjo que se mantivera silencioso opinou, compreensivo:
— Em verdade, não podemos situar-te na relação dos que amaram o Benfeitor Eterno, mas colocaremos teu nome no pergaminho, como alguém que amou imensamente os semelhantes.
15 O ancião, mergulhando a cabeça nas mãos ossudas, soluçou reconhecido, enquanto os companheiros presentes comentavam o estranho procedimento daquele que fizera bem sem se lembrar sequer da existência de Deus.
16 Contudo, depois de longos minutos de expectação, vasto grupo de mensageiros divinos penetrou o átrio engalanado de flores, em cânticos de júbilo, trazendo larga faixa com um nome grafado em caracteres de luz.
Era o nome do velho Ibraim Al-Mandeb.
Pretendia o Senhor conversar com ele.
Irmão X
(Humberto de Campos)