1 Existiu um rei, amigo da sabedoria, que, depois de grande trabalho para subjugar a natureza inferior, convidou um filósofo para socorrê-lo no aperfeiçoamento da palavra. 2 Conseguira indiscutível progresso na arte de sublimar-se. Fizera-se portador de primorosa cultura e, tanto no ministério público, quanto na vida privada, caracterizava-se por largos gestos de bondade e inteligência. 3 Fazia quanto lhe era possível para exercer a justiça, segundo os padrões da reta consciência, e demonstrava inexcedível carinho na defesa e proteção do povo, através de reiteradas distribuições de lã e trigo, a fim de que as pessoas menos favorecidas pela fortuna não sofressem frio ou fome. 4 Não sabia acumular tesouros exclusivamente para si e, em razão disso, obedecendo às virtudes sociais de que se fizera o exemplo vivo, instituíra escolas e abrigos e incentivara a indústria e a lavoura, desejando que todos os súditos, ainda os mais humildes, encontrassem acesso à educação e à prosperidade.
5 No círculo das manifestações pessoais, contudo, o valoroso monarca se sentia atrasado e hesitante.
Não sabia disfarçar a cólera, não continha a franqueza rude e nem sopitava o mau humor.
6 Admirado e querido pelas qualidades sublimes que pudera fixar na personalidade, sofria, no entanto, a mágoa e a desconfiança de muitos que passaram a temer-lhe a frase contundente.
7 Interessado, porém, na própria melhoria, solicitou ao filósofo que lhe acompanhasse a lide cotidiana.
Quando se descontrolava, caindo nas amargas consequências do verbo impensado, o orientador observava, com humildade:
8 — Poderoso senhor, tenha paciência e continue trabalhando no aprimoramento das próprias manifestações. A expressão serena e sábia revela grandeza interior que reclama tempo para ser devidamente consolidada. Quem alcança a ciência de falar, pode conviver com os anjos, porque a palavra é, sem dúvida, a continuação de nós mesmos.
9 O monarca não se conformava e, em desespero passivo, confiava-se a rigoroso silêncio, que prejudicava consideravelmente os negócios do reino.
10 De semelhante posição vinha roubá-lo o filósofo, advertindo, respeitoso:
— Amado soberano, a extrema quietude pode traduzir traição aos nossos deveres. A pretexto de nos reformarmos espiritualmente, não será lícito desprezar os nossos compromissos com o progresso comum. Fale sempre e não desdenhe agir! O verbo é a projeção do pensamento criador.
11 O rei voltava a conversar, beneficiando o extenso domínio que lhe cabia dirigir, mas lá chegava outro momento em que se perdia na indignação excessiva, humilhando e ferindo ministros e vassalos que desejaria ajudar sinceramente.
12 Lamentando-se, aflito, vinha o filósofo conselheiral, afirmando, prestimoso:
— Grande soberano, tenha paciência consigo mesmo. O reajustamento da alma não é obra para um dia. Prossiga, esforçando-se. Toda realização pede o concurso abençoado das horas… O rio deixaria de existir sem a congregação das gotas… Guarde calma, muita calma e não desanime…
13 O monarca, no entanto, desacoroçoado, depois de regular experimentação com o filósofo, exonerou-o das funções que ocupava e expediu dois emissários às suas províncias extensas para que lhe trouxessem a palácio algum homem incapaz de se irritar. 14 Pretendia entrar em contato com o espírito mais equilibrado de suas terras, a fim de melhor orientar-se no autoburilamento.
15 Os mensageiros iniciaram as investigações, mas impacientavam-se desiludidos. O homem que observavam ponderado na via pública era colérico no lar. Quem se revelava gentil em casa, costumava irar-se na rua. Alguns se mostravam distintos e agradáveis junto da família consanguínea, todavia, eram azedos no trato social. Diversos exibiam formosa máscara de serenidade com os estranhos, no entanto, dirigiam-se aos domésticos com deplorável aspereza.
16 Depois de trinta dias de porfiada pesquisa, descobriram, jubilosos, o homem que nunca se exasperava.
Seguiram-no, cuidadosamente, em toda parte.
Nunca falava alto e mantinha silêncio comovedor, no domicílio que lhe era próprio e fora dele.
17 Durante quatro semanas foi examinado sob atenção vigilante, não perdendo um til na conduta irrepreensível.
Trabalhava, movimentava-se, alimentava-se e atendia aos menores deveres, imperturbavelmente.
18 Apressaram-se os mensageiros em levar a boa-nova ao monarca, e o rei, satisfeito, convocou assessores e áulicos de sua casa para receber a personagem admirável, com a dignidade que lhe era devida.
19 O vassalo venturoso foi trazido à real presença, entretanto, quando o soberano lhe dirigiu a palavra, esperando encontrar um anjo num corpo de carne, verificou, sob indefinível assombro, que o homem incapaz de irritar-se era mudo.
20 Sob o respeito manifesto de todos, o rei sorriu, desapontado, e mandou buscar novamente o filósofo, resignando-se a ter paciência consigo mesmo, a fim de aprender a conquistar-se pouco a pouco.
Irmão X
(Humberto de Campos)