1 Em Jerusalém, nos arredores do Templo, adornada mulher encontrou um nazareno, de olhos fascinantes e lúcidos, de cabelos delicados e melancólico sorriso, e fixou-o estranhamente.
2 Arrebatada na onda de simpatia a irradiar-se dele, corrigiu as dobras da túnica muito alva, colocou no olhar indizível expressão de doçura e, deixando perceber, nos meneios do corpo frágil, a visível paixão que a possuíra de súbito, abeirou-se do desconhecido e falou, ciciante:
— Jovem, as flores de Séforis encheram-me a ânfora do coração com deliciosos perfumes. Tenho felicidade ao teu dispor, em minha loja de essências finas…
3 Indicou extensa vila, cercada de rosas, à sombra de arvoredo acolhedor, e ajuntou:
— Inúmeros peregrinos cansados me buscam à procura do repouso que reconforta. Em minha primavera juvenil, encontram o prazer que representa a coroa da vida. É que o lírio do vale não tem a carícia dos meus braços e a romã saborosa não possui o mel de meus lábios. Vem e vê! Dar-te-ei leito macio, tapetes dourados e vinho capitoso… Acariciar-te-ei a fronte abatida e curar-te-ei o cansaço da viagem longa! Descansarás teus pés em água de nardo e ouvirás, feliz, as harpas e os alaúdes de meu jardim. Tenho a meu serviço músicos e dançarinas, exercitados em palácios ilustres!…
4 Ante a incompreensível mudez do viajor, tornou, súplice, depois de leve pausa:
— Jovem, por que não respondes? Descobri em teus olhos diferente chama e assim procedo por amar-te. Tenho sede de afeição que me complete a vida. Atende! atende!…
5 Ele parecia não perceber a vibração febril com que semelhantes palavras eram pronunciadas e, notando-lhe a expressão fisionômica indefinível, a vendedora de essências acrescentou um tanto agastada:
— Não virás?
6 Constrangido por aquele olhar esfogueado, o forasteiro apenas murmurou:
— Agora, não. Depois, no entanto, quem sabe?!…
A mulher, ajaezada de enfeites, sentindo-se desprezada, prorrompeu em sarcasmos e partiu.
7 Transcorridos dois anos, quando Jesus levantava paralíticos, ao pé do Tanque de Betesda, venerável anciã pediu-lhe socorro para infeliz criatura, atenazada de sofrimento.
O Mestre seguiu-a, sem hesitar.
Num pardieiro denegrido, um corpo chagado exalava gemidos angustiosos.
8 A disputada mercadora de aromas ali se encontrava carcomida de úlceras, de pele enegrecida e rosto disforme. Feridas sanguinolentas pontilhavam-lhe a carne, agora semelhante ao esterco da terra. Exceção dos olhos profundos e indagadores, nada mais lhe restava da feminilidade antiga. Era uma sombra leprosa, de que ninguém ousava aproximar.
9 Fitou o Mestre e reconheceu-o.
Era o mesmo mancebo nazareno, de porte sublime e atraente expressão.
10 O Cristo estendeu-lhe os braços, tocado de intraduzível ternura e convidou:
— Vem a mim, tu que sofres! Na Casa de Meu Pai, nunca se extingue a esperança.
11 A interpelada quis recuar, conturbada de assombro, mas não conseguiu mover os próprios dedos, vencida de dor.
O Mestre, porém, transbordando compaixão, prosternou-se fraternal, e conchegou-a, de manso…
12 A infeliz reuniu todas as forças que lhe sobravam e perguntou, em voz reticenciosa e dorida:
— Tu?… O Messias nazareno?… O Profeta que cura, reanima e alivia?!… Que vieste fazer, junto de mulher tão miserável quanto eu?
13 Ele, contudo, sorriu benevolente, retrucando apenas:
— Agora, venho satisfazer-te os apelos.
14 E, recordando-lhe as palavras do primeiro encontro, acentuou, compassivo:
— Descubro em teus olhos diferente chama e assim procedo por amar-te.
Irmão X
(Humberto de Campos)