1 O Senhor tomou lugar no tribunal da sua justiça e, examinando os documentos que se referiam às atividades das personalidades eminentes sobre a Terra, chamou o Anjo da Morte, exclamando:
— “Nos meados do século findo partiram daqui diversos servidores da Ciência que prometeram trabalhar em meu nome, no orbe terráqueo levantando a moral dos homens e suavizando-lhes as lutas. Alguns já regressaram, enobrecidos nas ações dignificadoras, desse mundo longínquo. Outros, porém, desviaram-se dos seus deveres e outros ainda lá permanecem, no turbilhão das dúvidas e das descrenças, laborando no estudo.
2 “Lembras-te daquele que era aqui um inquieto investigador, com as suas análises incessantes, e que se comprometeu a servir os ideais da Imortalidade, adquirindo a fé que sempre lhe faltou?
— “Senhor, aludis a Charles Richet, reencarnado em Paris, em 1850, e que escolheu uma notabilidade da medicina para lhe servir de pai?”
— “Justamente. Pelas notícias dos meus emissários, apesar da sua sinceridade e da sua nobreza, Richet não conseguiu adquirir os elementos de religiosidade que fora buscar em favor do seu próximo. 3 Tens conhecimento dos favores que o Céu lhe tem adjudicado no transcurso da sua existência?
— “Tenho, Senhor. Todos os vossos mensageiros lhe cercaram a inteligência e a honestidade com o halo da vossa sabedoria. 4 Desde os primórdios das suas lutas na Terra, os Gênios da Imensidade o rodeiam com o sopro divino de suas inspirações. Dessa assistência constante lhe nasceram os poderes intelectuais, tão cedo revelados no mundo. A sua passagem pelas academias da Terra, que serviu para excitar a potência vibratória de sua mente, em favor da ressurreição do seu tesouro de conhecimentos, foi acompanhada pelos vossos emissários com especial carinho. 5 Ainda na mocidade, lecionou na Faculdade de Medicina, obtendo a cadeira de fisiologia. Nesse tempo, já seu nome, com os vossos auxílios, estava cercado de admiração e respeito. As suas produções granjearam-lhe a veneração e a simpatia dos seus contemporâneos. De 1877 a 1884, publicou estudos notáveis sobre a circulação do sangue, sobre a sensibilidade, sobre a estrutura das circunvoluções cerebrais, sobre a fisiologia dos músculos e dos nervos, perquirindo os problemas graves do ser, investigando no círculo de todas as atividades humanas, conquistando o seu nome a admiração universal.”
6 — “E em matéria de espiritualidade — replicou austeramente o Senhor — que lhe deram os meus emissários e de que forma retribuiu o seu espírito a essas dádivas?”
— “Nesse particular, exclamou solícito o Anjo, muito lhe foi dado. Quando deixastes cair, mais intensamente, a vossa luz sobre os mistérios que me envolvem, ele foi dos primeiros a receber-lhe os raios fulgurantes. Em Carqueiranne, † em Milão † e na ilha Ribaud, † muitas claridades o bafejaram, junto de Eusápia Paladino, † quando o seu gênio se entregava a observações positivas, com os seus colegas Lodge, † Myers † e Sidgwick. † De outras vezes, com Delanne, † analisou as célebres experiências de Alger, que revolucionaram os ambientes intelectuais e materialistas da França, que então representava o cérebro da civilização ocidental.
7 “Todos os portadores das vossas graças levaram as sementes da Verdade à sua poderosa organização psíquica, apelando para o seu coração, a fim de que ele afirmasse as realidades da sobrevivência; povoaram-lhe as noites de severas meditações, com as imagens maravilhosas das vossas verdades, porém apenas conseguiram que ele escrevesse o “Tratado de Metapsíquica” e um estudo proveitoso a favor da concórdia humana, que lhe valeu o Prêmio Nobel da Paz em 1913. n
8 “Os mestres espirituais não desanimaram nem descansaram nunca em torno da sua individualidade; mas apesar de todos os esforços despendidos, Richet viu, nas expressões fenomenológicas de que foi atento observador, apenas a exteriorização das possibilidades de um sexto sentido nos organismos humanos. Ele que fora o primeiro organizador de um dicionário de fisiologia, não se resignou a ir além das demonstrações histológicas. Dentro da espiritualidade, todos os seus trabalhos de investigador se caracterizam pela dúvida que lhe martiriza a personalidade. Nunca pôde, Senhor, encarar as verdades imortalistas, senão como hipóteses, mas o seu coração é generoso e sincero. 9 Ultimamente, nas reflexões da velhice, o grande lutador se veio inclinando para a fé, até hoje inacessível ao seu entendimento de estudioso. Os vossos mensageiros conseguiram inspirar-lhe um trabalho profundo, que apareceu no planeta como “A Grande Esperança” e, nestes últimos dias, a sua formosa inteligência realizou para o mundo uma mensagem entusiástica em prol dos estudos espiritualistas.”
10 — “Pois bem, exclamou o Senhor: Richet terá de voltar agora a penates. Traze de novo aqui a sua individualidade para as necessárias interpelações.”
— “Senhor, assim tão depressa? — retornou o Anjo, advogando a causa do grande cientista — O mundo vê em Richet um dos seus gênios mais poderosos, guardando nele sua esperança. Não conviria protelar a sua permanência na Terra, a fim de que ele vos servisse, servindo à Humanidade?”
11 — “Não — disse o Senhor tristemente. — Se, após oitenta e cinco anos de existência sobre a face da Terra, não pôde reconhecer, com a sua ciência, a certeza da imortalidade, é desnecessária a continuação de sua estada nesse mundo. Como recompensa aos seus esforços honestos em benefício dos seus irmãos em humanidade, quero dar-lhe agora, com o poder do meu amor, a centelha divina da crença, que a ciência planetária jamais lhe concedeu nos seus labores ingratos e frios.”
12 No leito de morte, Richet tem as pálpebras cerradas e o corpo na posição derradeira, em caminho da sepultura. Seu Espírito inquieto de investigador não dormiu o grande sono.
Há ali, cercando-lhe os despojos, uma multidão de fantasmas.
Gabriel Delanne estende-lhe os braços de amigo. Denis e Flammarion o contemplam com bondade e carinho. Personalidades eminentes da França antiga, velhos colaboradores da “Revista dos Dois Mundos”, cooperadores devotados dos “Anais das Ciências Psíquicas” ali estão para abraçarem o mestre, no limiar do seu túmulo.
13 Richet abre os olhos para as realidades espirituais que lhe eram desconhecidas. Parece-lhe haver retrocedido às materializações da Vila Carmen; mas, ao seu lado, repousam os seus despojos, cheios de detalhes anatômicos. O eminente fisiologista reconhece-se no mundo dos verdadeiros vivos. Suas percepções estão intensificadas, sua personalidade é a mesma e, no momento em que volve a atenção para a atitude carinhosa dos que o rodeiam, ouve uma voz suave e profunda, falando do Infinito:
14 — “Richet — exclama o Senhor no tribunal da sua misericórdia —, por que não afirmaste a Imortalidade, e por que desconheceste o meu nome no seu apostolado de missionário da ciência e do labor? Abri todas as portas de ouro, que te poderia reservar sobre o mundo. Perquiriste todos os livros. Aprendeste e ensinaste, fundaste sistemas novos do pensamento, à base das dúvidas dissolventes. Oitenta e cinco anos se passaram, esperando eu que a tua honestidade me reconhecesse, sem que a fé desabrochasse em teu coração… Todavia, decifraste, com o teu esforço abençoado, muitos enigmas dolorosos da ciência do mundo e todos os teus dias representaram uma sede grandiosa de conhecimentos… 15 Mas, eis, meu filho, onde a tua razão positiva é inferior à revelação divina da fé. Experimentaste as torturas da morte com todos os teus livros e diante dela desapareceram os teus compêndios, ricos de experimentações no campo das filosofias e das ciências. E agora, premiando os teus labores, eu te concedo os tesouros da fé que te faltou na dolorosa estrada do mundo!”
16 Sobre o peito do abnegado apóstolo desce do Céu um punhal de luz opalina como um venábulo maravilhoso de luar indescritível.
Richet sente o coração tocado de luminosidade infinita e misericordiosa, que as ciências nunca lhe haviam dado. Seus olhos são duas fontes abundantes de lágrimas de reconhecimento ao Senhor. Seus lábios, como se voltassem a ser os lábios de um menino, recitam o “Pai Nosso que estais no Céu…” ( † )
Formas luminosas e aéreas arrebatam-no, pela estrada de éter da Eternidade e, entre prantos de gratidão e de alegria, o apóstolo da ciência caminhou da grande esperança para a certeza divina da Imortalidade.
Humberto de Campos
(Irmão X)
21 de janeiro de 1936.
[1] Certamente houve aí um lapso do Autor. Richet, apesar de ardoroso pacifista, não recebeu nenhum Prêmio Nobel da paz, mas sim o de Medicina, que lhe premiou a descoberta da anafilaxia (Nota da Editora).
Essa mensagem foi publicada primeiramente em 1935 pela LAKE e é a 8ª da 1ª Parte do
livro “Palavras do Infinito”