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1 Pede a ostra colada à pedra em que se escalva:
— “Ajuda-me, Senhor! Sou larva triste e feia!…”
Nisso, o mergulhador pisa o lençol de areia,
Qual fulmíneo titã, no abismo verde-malva.
2 Pensa, encantada, a pobre: — “Eis alguém que me salva…”
O homem, contudo, ataca e a mísera baqueia.
Depois, sofre, na tona, o facão que a golpeia,
Fere, insulta, escarnece e lanha, valva em valva.
3 Mas, em vez de revolta, a vítima indefesa
Oferta-lhe, ao cair, por troféu de beleza,
A pérola que brilha entre os arpões e os rascos… n
4 Essa é a história do amor que se alteia, sublime;
Inda mesmo a sangrar, sob a injúria do crime,
Beija e enriquece as mãos dos seus próprios carrascos.
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1 Rogava o barro a sós, preso a lodosa charpa:
— “Liberta-me, Senhor, do lixo que me escorna!
Ai de mim que sou lama envilecida e morna!…”
Veio a chuva e, oh! beleza! o brejo vibra e zarpa.
2 A água que dormia em túmida madorna
Põe-se, turva, a correr no solo que se escarpa,
Atormenta-se, luta e vai, de farpa em farpa,
Como pranto de dor que, súbito, se entorna…
3 Agita-se e obedece, escrava à gleba obscura,
Beija os rijos punhais da rocha em que se apura,
Abraça as provações e canta a bendize-las!
4 Depois, é fonte ao mar, qual poema divino!…
Alma, a história do charco é a história do destino
Que nos arrasta, além para além das estrelas… n
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[1] ARTUR Gonçalves DE SALES — Depois de ter assentado praça no 9º Batalhão de Infantaria e tentado matricular-se na Escola Militar, no Rio de Janeiro, Artur de Sales voltou a Salvador, onde, em 1905, recebeu o diploma de aluno-mestre, da Escola Normal. Exerceu o magistério primário “em aprendizados agrícolas”. Foi um dos fundadores da Academia de Letras da Bahia, aí ocupando a cadeira nº 3. A obra poética de A. de Sales, a princípio simbolista, passou depois a ser concebida parnasianamente. Suas poesias, em geral abrangendo temas populares, revelam-lhe o grande interesse pelas coisas do mar. Considerado “admirável plástico do verso” por Jackson de Figueiredo, foi ainda Artur de Sales, na expressão de Eugênio Gomes, um “ébrio de Shakespeare”, traduzindo-lhe, em versos alexandrinos, a peça Macbeth. (Cais Dourado, Salvador, Bahia, 7 de Março de 1879 — Salvador, 27 de Junho de 1952.)
BIBLIOGRAFIA: Poesias (1901-1915); Poemas Regionais; etc.
[2] Verso 11 - rasco (de rascar, raspar, desbastar): “garfo de ferro, na extremidade de uma vara, para a apanha do mexilhão.”
[3] Verso 28 - Para que possamos apreciar o gosto do poeta para as rimas raras e os versos alexandrinos, vamos transcrever-lhe apenas duas estâncias do poema “A Lagoa” (apud Pan., V, págs. 55-56):
“Tramas de ouro de sol, quase apagada frágua
Veste a lagoa. Um mundo azoinante de insetos
Zune e zumbe, cruzando-a. Os caniços inquietos
Vão e vêm, alongando esguias sombras na água.
O silêncio, magoando o ar sonolento e morno,
Espalha em tudo o alor das cousas fugidias;
A vez e vez, rompendo-o, asas passam, tardias.
Esmaece, agoniza a paisagem de em torno.”
Observe-se, ainda, que o esquema rimático é idêntico no soneto de hoje e no famoso poema de suas Poesias.