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1 Era a última hora para a cabeça estática
Que pensava, apesar de tudo.
O corpo anestesiado no suor denso e álgido
Não movia sequer leve ponta do dedo.
2 Os olhos haviam parado dentro das órbitas,
Mas no imóvel espelho das pupilas
Aumentara a visão com estranha potência,
Sob a ação de outros raios.
3 Teto, paredes, portas desapareceram como por encanto n
E comecei a ver, pela gaze das lágrimas,
Antigas afeições que imaginava mortas…
4 Velhos amigos meus vinham, prestos, do Além, a enxugarem-me o pranto.
Encontrara o outro mundo! E quis gritar, eufórico,
Mas a garganta seca era apenas silêncio. n
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1 Foge à ilusão da forma que te ilude
Entre sombras e lápides terrenas.
Surpreenderás, na carne, sonho apenas n
De infância, mocidade e senectude…
2 Ri-se o berço… Depois, a juventude
É ligeira estação de horas serenas…
Depois, ainda, as lágrimas e as penas
Da velhice a chorar o inverno rude…
3 Que a aspereza da estrada pouco importe…
Segue, de coração piedoso e forte,
Plantando o amor na Terra vasta e rica!
4 Marca a esparzir o bem de escala a escala!
O bem — o dom de paz que te assinala;
Somente o bem é a luz de amor que fica.
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[1] ARTUR RAGAZZI — Poeta largamente relacionado e estimado nos ambientes literários é sociais de Belo Horizonte. Italiano de nascimento, veio com os pais, ainda menino, para o Brasil, fixando-se em Ouro Preto. Em 1897, inaugurada a nova capital mineira, aí passou a residir até ao fim de sua existência. Foi uma das principais expressões do alto comércio de Belo Horizonte e elemento de valor nos círculos literários que nessa cidade se formaram à sombra de Alphonsus de Guimaraens e de Mendes de Oliveira. “Poeta de largos recursos,” — di-lo a Folha de Minas, em 5 de Novembro de 1948 — “era também Artur Ragazzi uma alma pura e sensível a todas as manifestações do calor humano.” Em vários jornais e revistas mineiros e cariocas saíram estampadas as suas produções líricas, “donde rescendem impulsos sinceros de uma inspiração privilegiada, a par de notável poder de expressão verbal”. (Veneza, Itália, 31 de Julho de 1879 — Belo Horizonte, Minas Gerais, 4 de Novembro de 1948.)
BIBLIOGRAFIA: Cavaleiro Andante; Coivara Acesa; algumas inéditas.
[2] Verso 9 - Observe-se a enumeração.
[3] Verso 14 - Neste soneto assaz original, em que se associam versos alexandrinos, hexassílabos e hipérmetros de grande beleza, o poeta descreve-nos o momento final da vida na carne, quando no “imóvel espelho das pupilas” já não mais vislumbrava as paredes, o teto, as portas, mas apenas os seus velhos amigos desencarnados.
[4] Verso 17 - Leia-se sur-preen-de-rás, com sinérese.