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1 Falava como um rei da tribuna e da praça… (1) n
“Dominar ou ferir” — era em tudo o seu lema.
Entretanto, no Espaço, em desventura extrema,
Tolera a multidão que o persegue e amordaça. (4)
2 Exposto à zombaria e aos golpes de quem passa,
Ele que era o senhor da palavra suprema,
Jungido à humilhação, por mais suplique ou gema, (7) n
Ouve as acusações de inimigos em massa…
3 Como alguém que padece, abandonado à míngua,
Sofre as chagas da ideia e os tormentos da língua,
Rogando ao Pai de Amor lhe amenize a derrota!… (11)
3 E o Senhor, em lhe ouvindo a oração dolorida,
Permite-lhe escolher outro berço e outra vida.
Ele agradece em pranto… E renasce idiota.
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1 “Fogo! Fogo!…” — esbraveja o inquisidor, fremente, n
Torvo olhar na expressão implacável e crua.
Coleia a chama enorme e, trágica, flutua n
A subir e bailar qual rúbida serpente.
2 — “Piedade, meu Deus!…” — choram vítimas, rente
Ao fogo que lhes rompe a carne viva e nua.
Estorcem-se de horror, ante os gritos da rua,
E somem-se, a bradar: — “Inocente! Inocente!…” n
3 O tempo voa e abate o verdugo do povo…
Ordena a Grande Lei que ele nasça de novo n
Para que o lume vivo o experimente e encangue;
4 E o terrível algoz na prova a que se aferra,
Aos singultos de dor, arrasta sobre a Terra
O corpo torturado em brasas cor de sangue!… n
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1 — Senhora, compaixão! — a moça triste implora.
— Não merece perdão a mulher que se aluga!…
Acabarei contigo, infame sanguessuga!…
Grita no espancamento a impassível senhora.
2 A vítima doente anseia, tomba e chora, n
Tremendo, a soluçar, sob o pé que a subjuga…
Rompe-se um grande vaso… E o sangue rola em fuga.
A morte arranja o fim… Tudo é silêncio agora…
3 A ré que ninguém viu, como se nada houvera,
Continua a viver qual flor na primavera,
Mas a Lei vigilante assinala-lhe a trilha.
4 E antes que a dama nobre em remorsos se adentre,
A alma da moça triste acolhe-se-lhe ao ventre
E ela estende-lhe o seio, enlaçando-a por filha…
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1 — “Para a glória do Cristo!” — era-lhe o emblema de ouro
Ao clangor de clarins, alaúdes e avenas,
Fosse na espada em Roma e no livro em Atenas
Ou a empinar o corcel no campo verde-louro. n
2 Comandante e senhor, bramia: — “Guerra ao mouro!”
E exterminava, em fúria, as hostes sarracenas,
A estender sangue e pranto em cárceres e penas,
Com que supunha erguer o Evangelho vindouro…
3 Um dia a morte chega… Espírito liberto,
O impiedoso tirano ouve Jesus de perto
Que lhe fala de amor ao peito rude e bravo…
4 Chora… Atende… Depois retorna à Terra e escuta:
— “Para a glória do Cristo!” — e, entregue à nova luta
Investe noutro corpo a estamenha do escravo.
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1 “Uma esmola, senhor, que me alivie os males!…” n
E o marajá responde humilhando o mendigo:
— “Um pária é maldição na viagem que eu sigo!
Afasta-te, infeliz! Não me fites, nem fales!…”
2 Ao sonido marcial de clarins e timbales,
A caravana parte, em busca de outro abrigo…
E o grande hindu, lembrando um rei vaidoso e antigo,
Fulge no palanquim por montanhas e vales.
3 Mas o príncipe morre… E o Tribunal Divino
Impõe-lhe vida nova… É um pária sem destino,
Que traz agora a dor qual fogo atado ao lenho…
4 E no mesmo lugar que ele, mísero, empesta,
Implora a um marajá que se retira em festa:
— “Uma esmola, senhor, para as chagas que eu tenho!…”
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Preito de amor à irmã aprisionada no leito há trinta anos…
1 Revejo-te a brilhar no fausto de outras eras…
No trono de cetim, sob o dossel de opalas,
Gravas horrendas leis, e o povo, ao proclamá-las,
Deita pranto e suor nas provações severas…
2 Ninfa adulada e loura, em róseas primaveras,
Fragrâncias orientais suavíssimas trescalas,
E contraste, irrisão! quando surges e falas,
Epopeias de dor em fúria transverberas…
3 Depois de longo tempo, augusta soberana,
Encontrei-te a chorar… Tristonha ruína humana,
Enferma e sem ninguém que te incense ou idolatre!
4 Mas reencarnada, assim, desditosa e esquecida,
Lavaste o coração, purificaste a vida
E fulges qual estrela entre as sombras do catre!
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[1] Antônio VALENTIM da Costa MAGALHÃES — Romancista, poeta, crítico literário, polemista, teatrólogo, contista e jornalista. Bacharel pela Faculdade de Direito de S. Paulo, Valentim Magalhães advogou durante alguns anos no Rio de Janeiro, onde foi professor de Português e, depois, de Pedagogia na Escola Normal. Diretor-fundador do célebre jornal literário — A Semana — e membro fundador da Academia Brasileira de Letras, o suave poeta de Rimário exerceu poderosa influência nos meios culturais do País. Colaborou em diversos diários importantes do Rio e de S. Paulo. Segundo Péricles Eugênio da Silva Ramos (Pan., III, pág. 29), foi V. Magalhães um dos poetas mais representativos da poesia socialista. (Rio de Janeiro, Gb, 16 de Janeiro de 1859 — Rio de Janeiro, Gb, 17 de Maio de 1903.)
BIBLIOGRAFIA: Cantos e Lutas; Rimário; Quadros e Contos; Horas Alegres; etc.
[2] Versos 1-4. - Observe-se que os verbos no pretérito imperfeito e no presente do indicativo, respectivamente, demonstram bem a situação do verdugo de ontem e do sofredor de hoje.
[3] Versos 7-11. - Elipse: “Jungido à humilhação por mais (que) suplique ou gema” e “Rogando ao Pai de Amor (que) lhe amenize a derrota!…” — Cf. nota nº 3, pág. 135.
[4] Verso 15 - Epizeuxe.
[5] Verso 17 - Note-se o efeito deste “enjambement”. Como que chegamos a ver a rúbida serpente a subir e a bailar, coleante e trágica.
[6] Verso 22 - Ricochete: “… — “Inocente! Inocente!…”
[7] Verso 24 - Grande Lei. Refere-se o poeta à Lei de Causa e Efeito.
[8] Verso 28 - brasas cor de sangue: o pênfigo ou “fogo selvagem”, como é conhecido entre nós.
[9] Verso 33 - Leia-se do-en-te, em três silabas.
[10] Verso 46 - Note-se a sinalefa: “Ou a em/pi/nar/ o/ cor/cel/ no/ cam/po/ ver/de-/lou/ro.”
[11] Verso 57 - Ler assim este verso:
“U/ma es/mo/la,/ se/nhor,/ que/ me a /li/vi/e os/ ma/les!…”