1 A alma clamou cansada ao corpo, um dia:
— “Porque me prendes, barro vil e escuro?
Quem te sustenta por lodoso muro,
Acalentando a noite que me espia?
2 Quem te mandou, algema da agonia,
Escravizar-me o sonho vivo e puro?
Quem te criou, cadeia de monturo,
Excitando-me a dor e a rebeldia?”
3 E o corpo respondeu, calmo e sublime:
— “Eu sou, na Terra, a cruz que te redime,
Não me interpretes por sinistra grade…
4 Deus modelou-me lâmpada de lodo, n
Na qual és chama do Divino Todo
Para fulgir além, na Eternidade…” n
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[1] ANTERO Tarquínio DE QUENTAL — Grande poeta português, A. de Quental teve especial predileção pelo soneto. Segundo Eça de Queirós, era ele “um Gênio e era um Santo”. “É um poeta que sente,” — di-lo Oliveira Martins — “mas é um raciocínio que pensa. Pensa o que sente; sente o que pensa.” E Adolfo Casais Monteiro acrescenta: “e vive o que sente e pensa.” Vítima de terrível hipocondria, suicidou-se. Sobre a vida de Antero, publicou-se em 1948 uma das mais completas obras: Antero de Quental, subsídios para a sua biografia, por José Bruno Carreiro, em dois grandes volumes, edição do Instituto Cultural de Ponta-Delgada, Lisboa. (Ponta Delgada, Ilha de S. Miguel, arquipélago dos Açores, 18 de Abril de 1842 — Aí desencarnou em 11 de Setembro de 1891.)
BIBLIOGRAFIA: Sonetos de Antero; Odes Modernas; Primaveras Românticas; Os Sonetos Completos de Antero de Quental; etc.
[2] Verso 12 - Aliteração em l.
[3] Para que possamos observar o seu modo peculiar de compor sonetos — servindo-se do diálogo, — vamos transcrever-lhe os dois tercetos do famosíssimo “Solemnia Verba” (apud Rot. I, pág. 221):
“Porém o coração, feito valente
Na escola da tortura repetida,
E no uso do penar tornado crente,
“Respondeu: Desta altura vejo o Amor!
Viver não foi em vão, se é isto a vida,
Nem foi de mais o desengano e a dor.”