O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Almas em desfile — Hilário Silva — F. C. Xavier / Waldo Vieira — 2ª Parte


17

Pica-pau

I


1 Quando o Dr. Crisanto Rosa, engenheiro moço e recém-casado, chegou à sede do serviço, encontrou o Pica-Pau na improvisada estação.

— Doutor, quero levar suas malas.

2 Dona Moema, a esposa, teve um movimento de recuo.

O homem que assim falava era horrível. As mãos retorcidas e o rosto monstruoso no corpo, que gingava de estranho modo, davam notícia de pavorosas queimaduras.

3 O Dr. Crisanto não gostou da recepção.

Dispensou rudemente.

— Não preciso, — explicou, sério.

4 O pobre homem, contudo, voltou à carga:

— Ora, doutor, deixe-me carregar! Já estou esperando o senhor há tantos dias.

5 Tanta humildade transpareceu da voz suplicante, que o engenheiro sorriu, vencido, entregando-lhe parte da bagagem.

E Pica-Pau, suportando peso enorme, saiu carregando três grandes malas, na direção da graciosa casa de madeira que esperava o novo chefe.

6 O Dr. Crisanto fora comissionado para dirigir o avanço da grande rodovia interestadual em construção, e deveria morar ali, em plena mata, entre as famílias de alguns trabalhadores.

Não haveria, porém, dificuldade maior. A poucos quilômetros, vilarejo florescente e movimentado fornecia de tudo.

7 O engenheiro e a esposa, encantados, ocuparam a residência pequenina que os aguardava, e Pica-Pau, sempre agitado e alegre, gingava daqui para acolá.

Sem que o casal lhe pedisse, varreu as adjacências da casa, fez lume no fogão externo, conseguiu grande porção de lenha cortada e retirou larga quantidade de água do poço.

8 Dona Moema, modificada pelo comportamento dele, ofertou-lhe alguns restos de refeição, que o servidor humilde comeu com vontade.


II


1 A noite começava a descer, fria e rápida.

Sentara-se Pica-Pau numa tora de madeira, ao pé da casa, com a cabeça apoiada nas mãos, quando o Dr. Crisanto e a esposa o chamaram à sala.

— Pica-Pau, sei que você tem esse nome, porque mo disseram quando cheguei… — começou o engenheiro.

— É sim, doutor. Meu trabalho é na lenha. Todos me chamam Pica-Pau…

— E onde é que você mora?

— Não tenho lugar certo.

— Onde dorme?

— Desde que a turma da estrada chegou, durmo nas máquinas.

2 O engenheiro fitou a esposa, expressivamente, e continuou:

— Conversei com Moema a seu respeito. Não lhe posso dar abrigo em casa, mas temos a coberta do despejo. Se você quiser dormir lá, temos colchão…

3 Pica-Pau mostrou o sorriso de quem descobrira a felicidade.

— Quero sim — foi toda a resposta.

— Moema ficou satisfeita pelo modo com que você agiu hoje… Precisamos de alguém para serviço caseiro…

— Posso ajudar, sim senhor.

— E quanto recebe você por mês?

— Ora, doutor, não pense nisso, — replicou alegre, — trabalharei para o senhor a troco de comida…

4 Marido e mulher entreolharam-se comovidos.

E, desde então, Pica-Pau foi o serviçal amigo, instalado no telheiro.

5 O Dr. Crisanto, por mais que indagasse, não colheu outra notícia senão aquela que toda a gente conhecia.

Pica-Pau fora vítima de queimaduras em cidade distante e aparecera, por ali, como um tipo anônimo.

6 O engenheiro, condoído, já que lhe receberia a cooperação, submeteu-o a exame de saúde por um dos médicos de serviço e o médico atestou-lhe absoluta sanidade física.

— Foi pena queimar-se tanto, — disse o clínico bem-humorado, — podia ser um gigante no serviço.


III


1 Pica-Pau mostrava-se agora outro.

Dona Moema, reconhecida, mandava ajustar para ele as roupas e os sapatos que o marido lançasse ao desuso.

Bamboleante como sempre, era visto aqui e ali, no vilarejo próximo, transportando grandes sacolas para compras, ou no jipe de serviço, dando adeus com as mãos recurvas.

2 Observando-o, o engenheiro e a esposa notaram que o servidor possuía apenas um hábito profundamente arraigado. Todas as noites, antes do sono, enquanto o Dr. Crisanto permitisse o funcionamento do motor para a luz elétrica, relia um livro surrado.

3 Certa feita, o casal aproximou-se para ver, e ficou sabendo.

Pica-Pau compulsava um exemplar de “O Evangelho segundo o Espiritismo”.

— Então, você gosta desse livro? — Perguntou o chefe, sorrindo.

— Sim, doutor, — respondeu, acanhado, — é a única coisa que eu tenho…

4 E acariciando o volume ensebado:

— Este livro me consola e me ajuda a pensar…

— Você é espírita? — Indagou Dona Moema, com inflexão de respeito.

— Sou um pobre homem que já lutou muito, — respondeu Pica-Pau, — mas encontrei no Espiritismo o sossego da alma. Se posso responder à pergunta, Dona Moema, digo que sou espírita, com muito desejo de praticar o que o Espiritismo me ensina…

5 Conquanto não abraçassem os mesmos princípios, os amigos louvaram-lhe a fé, bondosos e tolerantes.

6 Dona Moema passou a esperar o primogênito e era de ver-se a dedicação de Pica-Pau.

O apagado trabalhador desdobrava-se em concurso espontâneo.

Abeirando-se da “délivrance”, a jovem senhora foi conduzida pelo esposo à casa de parentes no Rio.


IV


1 Começou, então, para Pica-Pau uma experiência nova.

Distante da esposa, o Dr. Crisanto não era o mesmo homem.

Sem dúvida não diminuíra a consideração para com ele, mas estava diferente. Correto na profissão, mudara a vida particular.

2 Noite a noite, o engenheiro, como que faminto de novidade, buscava a cidadezinha próxima e embriagava-se, levianamente, em companhia de supostos amigos.

Num certo sábado, porque as horas avançassem madrugada a fora, sem que o chefe voltasse, Pica-Pau fez cinco quilômetros a pé.

3 Procurou, aflitamente, e encontrou-o num bar.

— Doutor, — disse ao engenheiro, — vim chamá-lo.

— Que há?

4 E Pica-Pau engrolou a voz:

— Chegou um portador com notícias de D. Moema…

5 O chefe aboletou-se no jipe e os dois viajaram, cada qual com a sua própria ansiedade.

Em casa, porém, Pica-Pau falou, desconcertado:

— Doutor, perdoe-me… Não há mensageiro algum… Estava preocupado com o senhor…

6 O Dr. Crisanto, algo transtornado pelo copo farto, gritou:

— Era o que faltava… Você, dirigindo! Não encomendei fiscalização alguma!… Não me consta que espíritas andem mentindo… Nunca mais faça isso!…

7 Pica-Pau, humilhado, preparou-lhe o café forte e o assunto ficou encerrado.

Entretanto, no sábado seguinte, repetiu-se o problema.

8 Às duas da madrugada, Pica-Pau, arfando de fadiga, ante a longa caminhada, alcança o bar, surpreende o chefe, e avisa, desapontado:

— Doutor, a casa das máquinas está pegando fogo.

9 O engenheiro, desconfiado, atende; e ambos se põem novamente no jipe.

Mas, em caminho, o diretor do serviço fala, nervoso:

— Pica-Pau, se você estiver mentindo, pagará caro…

10 Chegando à casa das máquinas e observando a tranquilidade ambiente, fez um gesto interrogativo, ao que Pica-Pau respondeu, encabulado:

— Doutor, reconheço que menti, mas não posso ver o senhor nessa vida…

— Ah! não me pode ver? — Replicou o Dr. Crisanto, irado. — Então não veja…

11 E vibrou-lhe tremendo pescoção ao pé do ouvido. Pica-Pau rodou sobre os calcanhares e caiu com um filete de sangue a escorrer-lhe da boca, mas não reagiu.

Lágrimas rolavam-lhe dos olhos, quando viu que o Dr. Crisanto movimentava o veículo, de volta ao vilarejo distante.


V


1 Na manhã imediata, o engenheiro acreditava que o servidor estivesse longe, mas, com surpresa, viu Pica-Pau abeirar-se dele, de rosto inchado, a trazer-lhe calmamente a bandeja do café.

2 Dona Margarida, a arrumadeira, ao vê-lo assim, perguntou, admirada:

— Mas Pica-Pau, onde é que você arranjou esse rosto?

— Dor de dentes, Dona Margarida…

— Dor de dentes, na sua idade? — Voltou ela, irônica.

— É sim, senhora… Ainda tenho alguns cacos…

3 A discrição e a humildade de Pica-Pau comoveram o Dr. Crisanto, que mostrou expressiva melhora.

4 Depois de dois meses, no entanto, quando já se achava em vésperas de buscar a esposa e o filhinho recém-nato, o engenheiro voltou às noitadas alegres.

Pica-Pau notou o perigo, mas não se mexeu.

5 O serviço esperava a visita de várias autoridades, quando o Dr. Crisanto, certa noite, foi procurado no bar por Pica-Pau.

O pobre dizia-lhe, inquieto:

— Doutor, com o pagamento atrasado há dois meses, os operários estão acusando o senhor e planejam uma cilada…

6 O engenheiro riu-se, francamente.

— Que cilada?

— Querem dinamitar a ponte em construção… É preciso salvar o nome do senhor… O pessoal não tem razão…

7 O Dr. Crisanto desferiu gargalhada irritante e observou:

— Suas mentiras, Pica-Pau, não pegam mais… Ponha também a sua bomba…

O portador fez uma expressão de amargura e regressou, coxeando, coxeando…

8 Não havia, porém, decorrido duas horas, quando pequena comissão veio de jipe, à procura do chefe, com a dolorosa notícia.

Pica-Pau, ao tentar o salvamento da grande construção sobre o rio, conseguira preservar a ponte, mas sofrera terrível acidente: ao arrastar a banana explosiva colocada na edificação por mãos criminosas, verificara-se o estouro e teve os braços decepados, além de ferimentos por todo o corpo.

9 Horrivelmente surpreendido, o Dr. Crisanto voltou à pressa.

Trazido em padiola improvisada, Pica-Pau estava no telheiro em que se acolhia. A cama pobre empapava-se de sangue, embora os primeiros curativos tivessem sido feitos.

Arrasado de dor, o engenheiro compreendeu a gravidade da situação.

10 Trancou-se no recinto humilde com o ferido, que pousava nele os grandes olhos, e rogou:

— Pica-Pau, perdoe-me pelo amor de Deus! como não pude compreender você a tempo?!…

— Ora, doutor, não pense nisso! — Respondeu o mutilado em voz sumida, — tudo está bem…

— Não! Não! Punirei os culpados!

— Não faça isso! Desculpe sempre, doutor… Ninguém é mau porque deseje…

— Mas foi um crime…

— Ora, doutor, quem pode julgar? — Falou o acidentado, com voz doce, como se quisesse acariciar o chefe com a palavra, já que não podia fazê-lo com as mãos. — Às vezes, quem colocou a dinamite na ponte é um homem doente… obsidiado… é preciso perdoar…

11 O Dr. Crisanto não teve coragem de prosseguir exasperado, e perguntou, emocionado:

— Que quer você que eu faça, Pica-Pau?

— Doutor, se o senhor puder, leia para mim uma página do Evangelho… Estou agora sem braços…

12 O engenheiro tomou o livro semigasto, e, abrindo na parte final, fez a leitura, entre lágrimas copiosas:


13 “Meu Deus, és soberanamente justo. O sofrimento, neste mundo, há, pois, de ter a sua causa e a sua utilidade. Aceito a aflição que acabo de experimentar, como expiação de minhas faltas passadas e como prova para o futuro. Bons Espíritos que me protegeis, dai-me forças para suportá-la sem lamentos. Fazei que ela me seja um aviso salutar; que me acresça a experiência; que abata em mim o orgulho, a ambição, a tola vaidade e o egoísmo, e que contribua para o meu adiantamento.” ( † )


14 Pica-Pau aquietara-se, muito calmo, mas o Dr. Crisanto, à maneira de louco, providenciou o resto da noite e, no dia seguinte, pela manhã, tomou o avião de serviço e rumou com o mutilado para o Rio, tentando salvar-lhe a vida.


VI


1 Era mais de meio-dia, quando Pica-Pau deu entrada no grande hospital carioca em que seria submetido a tratamento.

2 Dois médicos amigos do Dr. Crisanto, no entanto, abanaram a cabeça, depois de minuciosa inspeção.

O ferido avizinhava-se do fim.

3 Agoniado, o engenheiro foi à procura da família e contou à esposa e à velha mãezinha, Dona Maria Cecília, os sucessos amargos.

Ambas quiseram testemunhar carinho ao herói.

4 E, nas primeiras horas da noite, o trio se dirigia para o confortável quarto em que Pica-Pau encontrara acolhida régia.

Na luz indireta que clareava frouxamente o recinto, Dona Moema foi a primeira a cumprimentá-lo.

— Então, Pica-Pau, — falou, emocionada, — quando voltarmos, teremos mais alguém… Você vai ajudar-me a velar por nosso rapaz, que já estará crescidinho…

5 Ele voltou os olhos muito abertos e respondeu, lúcido:

Oh! sim… um belo menino… Deus o abençoe… Em seguida, o Dr. Crisanto apresentou-lhe a sua velha progenitora.

6 A encanecida senhora começou a dirigir-lhe palavras de consolo; entretanto, ao sentir-lhe a fixidez do olhar profundo, desconcertou-se, pouco a pouco, e emudeceu em pranto.

7 Ele, porém, com serenidade indescritível, passou a dizer, com muito esforço:

— Sim, Cecília, você não precisa perguntar… Sou eu mesmo… Pedro… Pedro, que você não vê há trinta anos… Deus escutou minhas preces… Não queria morrer sem nosso encontro… 8 Perdoe por todos os males… que causei a você… Eu era moço, Cecília… Moço e ignorante… Viciei-me em bebidas e esqueci o lar… humilhando você… Você tinha razão, não me querendo mais… Mas creia que piorei, perdendo você… Você foi o único amor de minha vida… 9 Perdoe tudo… Mudei muito, Cecília… Um dia… alcoolizado… fui vítima da maldade de alguns rapazes que me atearam fogo às vestes… Tratado num hospital, aí conheci a Doutrina Espírita, que reformou minha vida… 10 Passei a ser outro homem… Todavia, não tive coragem de procurá-la… Fiquei deformado… irreconhecível… Mas consegui seguir o nosso Crisanto nos últimos tempos… Continue vivendo para ele, Cecília…   11 Eu, agora… estou no fim… Mas a vida prossegue depois da morte… Um dia, Cecília, no mundo sem lágrimas, serei para você o que devo ser… Confiemos em Deus…

12 Entretanto, fosse pelo esforço enorme ou porque o Espírito do acidentado julgasse terminada a sua tarefa entre os homens, a cabeça de Pica-Pau tornara-se imóvel. Grossas lágrimas, a se lhe escorrerem dos olhos, agora desmesuradamente abertos, misturavam-se ao suor álgido…

13 Dona Maria Cecília, ajoelhada, em pranto silencioso, beijou-lhe a testa suarenta e Pica-Pau sorriu pela última vez.

O Dr. Crisanto, emocionado, tocou o braço materno e falou:

— Mas, mamãe, que houve?

14 A nobre senhora, no entanto, após cobrir carinhosamente o corpo hirto, pôde apenas responder, entre soluços:

— Este homem, meu filho, é seu pai…


Hilário Silva


Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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