I
1 Envergonhava-se.
Tivera funerais pomposos.
Mas não valia a capa protetora dos amigos desencarnados.
2 Deixara nome, tradição, legados, necrológios brilhantes.
E, sem dúvida, distribuíra fartas sobras da existência regalada, confortando a muitos.
3 No fundo, porém, João Martinho não se sentia bem consigo mesmo.
Roubara dos parentes, num processo de herança, para começar a fortuna. E depois, no comércio, fora homem de memória curta e mão leve.
4 Isso tudo, agora, era assim como cravo de fogo enterrado na consciência.
“Martinho, você foi hoje carinhosamente lembrado na Terra.”
“Martinho, alguém está agradecendo as suas doações.”
5 Amigos revezavam-se, ofertando-lhe notícias confortadoras, mas sempre recebiam estas respostas lamentosas:
“Sim, mas eu furtei.”
“Sim, mas fui um ladrão.”
6 Era desse modo que o pensamento dele reagia.
Contudo, ante o bem que fizera, estava perdoado. Perdoado por todos. Entretanto, por dentro não se desculpava.
7 Aumentando a cultura espiritual, não aguentou as acusações silenciosas que lhe nasciam da cabeça, como borralho de fogão sereno, e pediu o retorno. Recomeçar era a grande esperança.
8 E Martinho recomeçou…
II
1 Decorridos quarenta anos, João Martinho podia ser visto em novo corpo de carne.
Funcionário de banco, não conseguia realizar os próprios ideais.
2 Parecia um devedor insolvável, diante da família.
Desde cedo, começara a trabalhar, ajudando o pai doente.
3 E depois que o pai desencarnou, foi o amparo das irmãs menores. Devia fazer prodígios para não se endividar no fim do mês. E, após o casamento das duas manas mais velhas, caíra enferma a própria mãezinha, com paraplegia irremediável.
4 João procedia corretamente.
Tudo a tempo e a hora.
5 Surgiu, porém, a ocasião em que passou a sentir prolongada agonia moral.
Um companheiro, que lhe partilhava as responsabilidades em serviço, desviava somas enormes. Emitia vales e forjava documentos falsos, cujas cópias atirava na cesta.
6 Antevendo complicações futuras, Martinho retirava todos os papéis comprometedores, do depósito de lixo, e os guardava.
7 Rara a semana em que não chegava a casa, com várias peças na direção do arquivo. Possuía no aposento um cofre particular, com fundo falso, cujo segredo somente ele, Martinho, conhecia.
8 E nesse último escaninho amontoava as provas da culpabilidade do amigo infeliz.
9 Em sã consciência, não podia formular acusações prematuras. O rapaz talvez tivesse “costas quentes”, e poderia ser considerado caluniador “se levantasse a lebre”, antes da hora. Era preciso, no entanto, defender-se. Uma hora difícil poderia chegar.
10 Durante quatro meses, a situação perdurava inquietante, quando veio o inesperado…
O moço leviano conheceu a morte num desastre, em noite de farra.
III
1 Era setembro…
Martinho pensou no imperativo do esclarecimento.
Mas seria justo acusar um morto, do qual ninguém lhe pedia contas?
Calou-se e esperou…
2 Eis que surge, porém, o fim de ano.
Balanço ativo.
Martinho preparou a papelada para qualquer circunstância.
3 Quando a tomada de contas no banco ia em meio, o correto funcionário sofre um choque profundo.
A casa humilde em que reside é assaltada, enquanto assiste à desencarnação da mãezinha no hospital.
4 Desolado, João verifica que o assaltante carregara todos os objetos de valor, inclusive o cofre em que deitava os documentos íntimos.
5 Desconfiança terrível incendeia-lhe o crânio.
Decerto, o colega morto tinha cúmplices.
E os cúmplices haviam fingido uma “limpa” em regra.
6 Desfigurado, volta ao banco, depois de haver solucionado os problemas do funeral materno, e encontra a bomba estourada.
O diretor chama-o a falas.
7 Naturalmente esperara dois dias, em consideração à sua dor de filho.
Mas coloca o assunto em telas claras.
8 João foi responsabilizado pelo desfalque de um milhão e duzentos mil cruzeiros.
Martinho alarmou-se, rogou, reclamou e chorou, mas não conseguiu articular qualquer defesa.
IV
1 Recolhido à cadeia correcional, onde foi condenado a dois anos de prisão, depois de rumoroso processo, Martinho tentou o suicídio.
2 Amigos, contudo, puseram-lhe nas mãos a literatura espírita.
E Martinho devorou livros, narrativas, conceitos e ideias…
Acalmou-se.
3 Descobriu o poder da prece.
Acolheu a prova, como o boi recebe a canga.
4 Aceitou a reencarnação. No íntimo, estava convicto de que fora vítima desse ou daquele companheiro interessado em livrar-se da justiça, mas compreendeu que devia perdoar.
5 Ainda assim, a mudança de vida alterou-lhe a saúde.
A tuberculose ganhava área e o coração fatigado parecia motor falhando…
6 No dia garoento em que saiu do cárcere, depois de cumprida a pena, era uma sombra.
Raros fios de cabelos desciam da calva procurando ocultar-lhe a orelha.
7 Caminhava dificilmente.
Tossia.
Suspirava por um caldo quente.
8 Cambaleando quase, atingiu a moradia da única irmã casada que ainda lhe possibilitava ligação, mas recebeu apelo injusto.
9 — João, — disse ela, — aqui estão vinte cruzeiros para você. É tudo o que eu tenho, mas não posso hospedá-lo. Meu marido não compreenderia. Temo ofensas. Volte amanhã. Conversarei com ele hoje à noite e veremos o que será possível fazer.
10 Martinho, humilhado, foi ao bar próximo.
Tomou um café e começou a perambular.
Receava buscar amigos.
11 Cansado, trêmulo, vendo que a noite baixava, procurou, procurou… até que viu velha casa abandonada num terreno baldio de bairro pobre.
Conseguiu jornais velhos, aqui e ali, e entrou, disposto a dormir.
12 Num canto de parede semiderruída tropeçou em algo.
Abaixou-se.
Surpreendido, tateou o objeto.
13 Era um cofre, sem dúvida! Carregou-o para local menos escuro.
Espantado, verificou que era o antigo cofre de sua propriedade, largado ali por alguém…
14 Fora violado, escancarado, mas percebeu que o fundo falso não fora aberto.
Gastou tempo e força e acabou descerrando o escaninho.
15 E todos os documentos que o inocentavam apareceram.
Agora, percebia que toda a suspeita em torno dos amigos do Banco era realmente infundada.
Fora pilhado, sim, por malfeitores vulgares.
16 Martinho, fatigado, contemplou os papéis que lhe teriam sido preciosos, anos antes.
Deitou-se no piso escalavrado. Releu todos, um por um.
Em seguida, acendeu um fósforo e queimou-os em monte.
17 Escurecera de todo.
Por muito tempo, Martinho orou e pensou…
E, por fim, a tosse.
Depois, o silêncio.
18 Martinho enlanguescera.
E, a princípio, só as formigas e os cães tomaram conhecimento de que havia no local um corpo morto, como feixe de ossos moles renteando um punhado de cinzas.
Hilário Silva