1. — Entre os homens que, por seus escritos, prepararam o advento definitivo do Espiritismo, há os que tiraram suas crenças sobre os nossos princípios, da tradição e do ensino, enquanto outros chegaram a essas convicções por suas próprias meditações, com a ajuda da inspiração divina.
Dupont de Nemours, escritor quase esquecido hoje, e cujos trabalhos julgamos um dever assinalar aos nossos leitores, admirador e adepto das doutrinas de Leibnitz, partidário da escola teosófica, foi, certamente, no fim do século passado, um dos mais eminentes precursores dos ensinamentos da Doutrina Espírita atual.
Afirmamos com a mais inteira certeza: seria difícil encontrar, quer entre os seus contemporâneos, quer entre os pensadores de nossa época, um escritor que tenha compreendido melhor, somente pela força do raciocínio, os verdadeiros destinos da alma, sua origem provável, e as condições morais e espirituais de sua existência terrena.
Ninguém melhor do que ele expressou em termos viris e bem sentidos, o papel de Deus no Universo, a harmonia e a justiça infinitas das leis que governam a criação, a progressão sem limites que rege todos os seres, desde o infusório invisível até ao homem, e do homem até Deus; ninguém apreciou melhor a importância de nossas comunicações com o mundo invisível, nem melhor concebeu a natureza das provações, das recompensas e das expiações humanas. Antes dele, certamente, jamais a pluralidade das existências foi mais bem afirmada, a necessidade da reencarnação e o esquecimento do passado mais bem estabelecidos, a vida do espaço mais bem determinada.
Dupont de Nemours considera os animais como irmãos mais novos da Humanidade, como os elos inferiores da cadeia contínua pelos quais o homem teve de passar antes de chegar ao estado humano. Eis aí um pensamento que lhe é comum com o do seu mestre Leibnitz. Esse grande filósofo sustenta a possibilidade, para o Espírito humano, de ter animado os vegetais, depois os animais. Faremos lembrar que não há qualquer analogia entre esse sistema, incessantemente progressivo, e o da metempsicose animal para o futuro, que evidentemente é absurda. Entregamos sem comentário, aos nossos leitores, esta concepção, que se acha nas obras de grande número de filósofos contemporâneos, reservando-nos exprimir mais tarde a nossa opinião a respeito.
Enquanto esperamos, sentimo-nos felizes por ver agregar-se ao volumoso dossiê reunido pelo Sr. Allan Kardec sobre essa interessante questão, as reflexões e as comunicações de que ela poderia ser objeto, quer da parte dos espíritas isolados, quer dos grupos e das sociedades, que julgarem oportuno estudá-la.
2. — As passagens seguintes, extraídas da principal obra de Dupont de Nemours, a Filosofia do Universo, dedicada ao célebre químico Lavoisier, provarão melhor do que os mais longos comentários, seus direitos ao reconhecimento e à admiração dos espiritualistas em geral e, mais particularmente, dos espíritas.
Epígrafe: Nada de nada; nada sem causa; nada que não tenha efeito.
Página 41 e seguintes: Não existe acaso.
“Que seres inteligentes possam ser produzidos por uma causa ininteligente, isto é absurdo; por acaso, é uma expressão imaginada para ocultar a ignorância. Não existe acaso: nem mesmo nos mais insignificantes acontecimentos, nem mesmo nas chances do jogo. Mas, porque ignoramos as causas, supomos, cremos, dizemos que há acaso e calculamos até mesmo o número de nossas inabilidades como chances do acaso, embora essas inabilidades não sejam acasos, mas efeitos físicos de causas físicas postas em movimento por uma inteligência pouco esclarecida.
“Que todos os seres inteligentes tenham o poder, mais ou menos considerável, não de desnaturar, mas de arranjar, combinar, modificar as coisas ininteligentes, é o que nos provam todos os nossos trabalhos e os dos animais, nossos irmãos.
“Rejeitamos a palavra e a ideia de acaso, como vazias de sentido e indignas da filosofia. Nada acontece, nada pode acontecer senão conformemente às leis.
Teoria do perispírito.
“Duas espécies de leis físicas nos chocaram: as que comunicam o movimento à matéria inanimada e que são objeto das ciências exatas, e as que lhe imprimem pela vontade os seres inteligentes.
“Pareceu-nos que esta maneira de imprimir o movimento devia ligar-se à extrema expansibilidade de uma matéria muito sutil, e encontramos um exemplo disto na máquina a vapor e na pólvora; mas continua a mesma dificuldade, pois não é mais compreensível que uma inteligência, uma vontade, paixões, tornem expansível a matéria mais sutil como a mais compacta. Entretanto, o fato é constatado com tanta frequência por cada um dos nossos movimentos, que nos vimos forçados a reconhecer na inteligência esta força, mais ou menos considerável, conforme a organização dos Espíritos que dela são dotados.
Página 51 e seguintes: Solidariedade; voz interior.
“Cada boa ação é uma espécie de empréstimo feito ao gênero humano; é um adiantamento, posto num comércio onde nem todas as expedições aproveitam, mas onde a maior parte traz retornos mais ou menos vantajosos, de sorte que ninguém as multiplica sem que elas produzam em massa um grande benefício.
“A consciência está no âmago do coração humano, o ministro perpétuo do Criador. Ela estabelece uma alma na alma para julgar a alma. Parece que há um nós que agita e um outro nós que decide se o desejo é honesto, se a ação é boa. Nada de felicidade quando eles não estão de acordo, quando o mais impetuoso dos dois deixa de respeitar o melhor e o mais sábio, pois este não perde os seus direitos; pode ceder passageiramente num combate, mas tira sua desforra; nasceu para comandar e finalmente comanda. Pode recompensar, quando os homens oprimem e julgam punir. Pode punir, quando os homens acumulam elogios e multiplicam as recompensas. A sociedade não vê e não deve julgar senão as ações. Além disso, a consciência vê e julga as intenções e os motivos. Faz corar pelo reconhecimento mal adquirido e pela reputação usurpada.
Página 127 e seguintes: Existência e comunicação dos Espíritos desencarnados
“Existem apenas os homens que tenham recebido esse poder protetor das ações honestas e que sejam susceptíveis do sentimento que os excita, que os dirige? Serão os mais engenhosos, os mais nobres, os mais ricos em sensações e em faculdade de todos os cidadãos do Universo, de todos os seres inteligentes criados? Sim, dos que nos são conhecidos. Mas, conhecemos todos os seres? Conhecemos ao menos os que habitam nosso globo? Possuímos o sentido que seria necessário para os conhecer? Talvez o orgulho ainda responda sim; e será um orgulho insensato.
“Homem, tua visão mergulha abaixo de ti; distingues perfeitamente a gradação ininterrupta estabelecida pelos matizes imperceptíveis, entre todos os animais… O progresso deve parar em ti? Ergue os olhos, és digno deles: pensas, nasceste para pensar. Ousas comparar a distância assustadora que reconheces entre ti e Deus, com a distância tão pequena que me fez hesitar entre ti e a formiga? Este espaço imenso é vazio?
“Não é, não pode ser; o Universo não tem lacuna. Se está cheio, o que o preenche? Não podemos sabê-lo; mas, desde que o lugar existe, nele deve achar-se alguém ou qualquer coisa. Por que não temos nenhum conhecimento evidente desses seres, cuja conveniência, analogia, necessidade no Universo chocam a reflexão, a única que no-los poderia indicar? Desses seres que nos devem superar em perfeição, em faculdades, em força, tanto quanto superamos os animais da última classe e as plantas?… É que nos faltam os órgãos e os sentidos necessários para que a nossa inteligência se comunique com eles, embora eles possam muito bem ter órgãos próprios para nos identificar e influenciar, assim como identificamos e dominamos raças inteiras de animais que nos ignoram, e que não são inferiores a nós senão em pequeníssimo número de sentidos. Que pobreza não ter senão cinco ou seis, e ser apenas homens! Podemos ter dez, cem… e é assim que os mundos abarcam os mundos e que são classificados os seres inteligentes.
“O que fazemos pelos nossos irmãos mais novos (os animais)… os gênios, os anjos (permiti-me empregar nomes em uso para designar seres que adivinho e que não conheço), esses seres que valem bem mais do que nós, o fazem por nós… Mas não suponhais, entretanto, que trato de puros Espíritos os seres que nos são superiores…
“Sabemos perfeitamente que as nossas paixões e a nossa vontade movem nosso corpo por um meio que nos é desconhecido e que parece contrariar fortemente as leis da gravitação, da física, da mecânica, etc. Basta isto para compreendermos qual deve ser no mundo e sobre nós a ação das inteligências sobre-humanas que podemos conhecer por indução e pelo raciocínio, em comparação ao que somos com outros animais, mesmo assaz inteligentes, e que não fazem de nós a mínima ideia.
“Não podemos esperar agradar as inteligências de grau superior pelos atos que o próprio homem acharia odiosos. Não nos podemos gabar mais de os enganar como os homens, por um exterior hipócrita, que apenas faz tornar o crime mais desprezível. Elas podem assistir às nossas mais secretas ações; podem ser instruídas dos nossos solilóquios e mesmo dos nossos pensamentos não formulados. Ignoramos de quantas maneiras dispõem para ler no nosso coração; nós, cuja miséria, grosseria e inépcia limitam nossos meios de conhecer pelo toque, de ver, ouvir e por vezes analisar, conjecturar. Esta casa, que um célebre romano queria construir, aberta à vista de todos os cidadãos, existe e nela habitamos. Nossos vizinhos são os chefes e os magistrados da grande república, investidos do direito e do poder de recompensar e punir, o que para eles não é um mistério. E os que lhe penetram mais completamente as mínimas variações, as inflexões mais delicadas, são os mais poderosos e os mais sábios.
“Eles jamais nos abandonam; nós os encontramos sobretudo quando estamos sós. Acompanham-nos em viagem, no exílio, na prisão, no calabouço. Adejam em torno de nossa cabeça pensativa e tranquila. Podemos interrogá-los; e toda vez que o tentamos dir-se-ia que eles nos respondem. Por que não o fariam? Bem que os nossos amigos nos prestam semelhante serviço, mas só aqueles que nos inspiram um grande respeito.”
Página 161 e seguintes: Pluralidade das existências
“Se o verdadeiro nós não encerra senão a nossa inteligência, a nossa faculdade de sentir, de raciocinar; se o nosso corpo e os órgãos que o compõem não passam de uma máquina ao nosso serviço, isto é, a da inteligência que seria o nós; se os limites do poder presente desta inteligência não se devem à sua natureza inteligente, mas apenas ao maior ou menor grau de perfeição da máquina que lhe foi dada para reagir; se pode aperfeiçoar essa máquina e o partido que dela tira, a tese muda e todas as consequências devem mudar.
“Confesso que essa suposição me parece verdadeira e espero vos mostrar antes de terminar este escrito que é a que melhor se harmoniza com as leis gerais, com a ordem equitativa e cheia de razão que impera no Universo. Parece-me que o eu não é meu braço, nem minha cabeça, nem uma mistura de membros e de espírito, mas o princípio inteligente que caminha por minhas pernas, fere ou trabalha pelos meus braços, combina por minha cabeça, goza ou padece por todos os meus órgãos. Não vejo nestes senão condutores adequados para conduzir as sensações e servidores para meu uso. Nunca me convencerei de que o eu não seja outra coisa senão o que sente, pensa ou raciocina em mim.
“Se não me engano, e se não há outro Dupont além daquele que vos ama, onde está a dificuldade, senão quando sua casa for destruída? Ele procurará uma nova para a inteligência que lhe restar; ele a solicitará e a receberá, quer dos seres inteligentes que lhe são superiores, quer do Deus remunerador, quer mesmo de alguma lei da Natureza que nos seja desconhecida e que, para animar os corpos dos seres inteligentes superiores, daria prioridade aos princípios inteligentes que tivessem tido a melhor conduta num corpo de ordem inferior; àquele que fosse o mais elevado, acima do alcance comum dos outros seres inteligentes, atados de pés e mãos como ele, sob os órgãos de um animal da mesma espécie…”
Página 166 e seguintes: Origens animais.
“Talvez haja alguma indução a tirar da admirável semelhança encontrada entre certos homens e certos animais. Quando vejo meus olhos, minha fronte, meu nariz, meu queixo, o pescoço, o lombo, a marcha, as paixões, o caráter, os defeitos, as virtudes, a probidade, o orgulho, a doçura, a cólera, a preguiça, a vigilância e a teimosia de um cão de raça, não tenho qualquer repugnância em acreditar que outrora eu fui um cão leal, singularmente fiel e obediente ao meu dono, caçando maravilhosamente, acariciando os filhos à sua maneira, defendendo as colheitas, guardando o rebanho de dia e a porta à noite, levantando a pata contra os cães fraldiqueiros, valente a ponto de ousar atacar o tigre, com risco de ser por este comido, afrontando o javali e não tendo nenhum medo do loba Para essas boas qualidades, turvadas por alguns resmungos, algumas querelas descabidas e algumas carícias inoportunas, a gente se torna o animal que eu sou: em geral muito estimado, amado por algumas pessoas e as amando mais ainda; afinal de contas, muito feliz; inquieto algumas vezes por seus amigos, sensível a esses incidentes como um pobre cão que se chicoteia injustamente.
Esquecimento das existências anteriores.
“A lembrança da vida precedente seria um poderoso recurso para a que a segue; alguns seres superiores ao homem, quando estão em marcha gradual de perfeição e de adiantamento ininterrupto, talvez têm essa vantagem como recompensa por sua virtude passada; sem dúvida não pode ser concedida senão aos que ainda são provados e que devem subir a Deus, começando ou recomeçando novamente esta carreira, iniciativa de alta moralidade.”
[A. DESLIENS.]