Caros aflitos,
Falo por último junto a esta fossa aberta, que contém os despojos mortais daquele que, entre nós se chamava Allan Kardec.
Falo em nome de sua viúva, daquela que foi sua companheira fiel e ditosa, durante trinta e sete anos de uma felicidade sem nuvens e sem mesclas, daquela que compartilhou de suas crenças e de seus trabalhos, bem como de suas vicissitudes è alegrias; que, hoje só, se orgulha da pureza dos costumes, da honestidade absoluta e do sublime desinteresse de seu esposo. É ela que nos dá a todos o exemplo de coragem, de tolerância, de perdão das injúrias e do dever cumprido escrupulosamente.
Falo também em nome de todos os amigos, presentes ou ausentes, que seguiram passo a passo a carreira laboriosa que Allan Kardec sempre percorreu honradamente; daqueles que querem honrar sua memória, lembrando alguns traços de sua vida.
Primeiramente quero dizer-vos por que seu envoltório mortal foi para aqui conduzido diretamente, sem pompa e sem outras preces senão as vossas! Precisaria de preces aquele cuja vida inteira não foi senão um longo ato de piedade, de amor a Deus e à Humanidade? Não bastaria que todos pudessem unir se a nós nesta ação comum, que afirma a nossa estima e a nossa afeição?
A tolerância absoluta era a regra de Allan Kardec. Seus amigos, seus discípulos pertenciam a todas as religiões: israelitas, maometanos, católicos e protestantes de todas as seitas; de todas as classes: ricos, pobres, sábios, livres-pensadores, artistas e operários, etc.… Todos puderam vir aqui, graças a esta medida que não compromete nenhuma consciência e que será um bom exemplo.
Mas, ao lado desta tolerância que nos reúne, devo citar uma intolerância, que admiro? Fá-lo-ei, porque, aos olhos de todos, ela deve legitimar esse título de mestre, que muitos dentre nós lhe atribuímos. Essa intolerância é um dos caracteres mais salientes de sua nobre existência. Ele tinha horror à preguiça e à ociosidade; e este grande trabalhador morreu de pé, após um labor imenso, que acabou ultrapassando as forças de seus órgãos, mas não as do seu espírito e do seu coração.
Educado na Suíça, naquela escola patriótica em que se respira um ar livre e vivificante, ocupava seus lazeres, desde a idade de quatorze anos, a dar aulas aos seus camaradas que sabiam menos que ele.
Vindo para Paris, † e sabendo falar alemão tão bem quanto francês, traduziu para a Alemanha os livros da França que mais lhe tocavam o coração. Escolheu Fénelon para o tornar conhecido, e essa escolha denota a natureza benévola e elevada do tradutor. Depois, entregou-se à educação. Sua vocação era instruir. Seus sucessos foram grandes e as obras que publicou, gramática, aritmética e outras, tornaram popular o seu verdadeiro nome, o de Rivail.
Não satisfeito em utilizar suas notáveis faculdades numa profissão que lhe assegurava uma tranquila comodidade, quis que aproveitassem os seus conhecimentos aqueles que não podiam pagar, e foi um dos primeiros a organizar, nesta época de sua vida, cursos gratuitos, ministrados na rua de Sèvres, † nº 35, nos quais ensinava Química, Física, Anatomia comparada, Astronomia, etc.
É que havia tocado em todas as ciências e, tendo-as bem aprofundado, sabia transmitir aos outros o que ele mesmo conhecia, talento raro e sempre apreciado.
Para este sábio dedicado, o trabalho parecia o elemento mesmo da vida. Por isso, mais que ninguém, não podia suportar a ideia da morte tal qual então a apresentavam, tendo como resultado um eterno n sofrimento ou uma felicidade egoísta e eterna, mas sem utilidade, nem para os outros nem para si mesmo.
Era como predestinado, bem o vedes, para espalhar e vulgarizar esta admirável filosofia que nos faz esperar o trabalho no além-túmulo e o progresso indefinido de nossa individualidade, que se conserva melhorando-se.
Soube tirar dos fatos, considerados ridículos e vulgares, admiráveis consequências filosóficas e toda uma doutrina de esperança, de trabalho e de solidariedade, semelhante ao verso de um poeta que ele amava:
Transformar o chumbo vil em ouro puro.
Sob o esforço de seu pensamento tudo se transformava e engrandecia, aos raios de seu coração ardente; sob sua pena tudo se precisava n e se cristalizava, a bem dizer, em frases de deslumbrante clareza.
Tomava para seus livros esta admirável epígrafe: Fora da caridade não há salvação, cuja aparente intolerância ressalta a tolerância absoluta.
Transformava as velhas fórmulas e, sem negar a feliz influência da fé, da esperança e da caridade, arvorava uma nova bandeira, ante a qual todos os pensadores podem e devem inclinar-se, porque esse estandarte do futuro leva escritas estas três palavras:
Razão, Trabalho e Solidariedade.
É em nome desta mesma razão que ele colocou tão alto, em nome de sua viúva, em nome de seus amigos que eu vos digo a todos que não mais olheis esta fossa aberta. É para mais alto que devemos erguer os olhos, para encontrar aquele que acaba de nos deixar! Para conter esse coração tão devotado e tão bom, essa inteligência de escol, esse espírito tão fecundo, essa individualidade tão poderosa, bem o vedes vós mesmos, medindo-a com os olhos, esta fossa seria demasiado pequena, e nenhuma seria bastante grande.
Coragem, pois! e saibamos honrar o filósofo e o amigo, praticando suas máximas e trabalhando, cada um no limite de suas forças, para propagar aquelas que nos encantaram e convenceram.
[1]
Errata. — Número de maio de 1869, página
145, linha 19, em vez de: et certain, leia-se: éternel.
[2] Errata.
— Mesma página, linha 31, em vez de: tout se pressait, lede:
tout se précisait. — N. do T.: As emendas apontadas por
Kardec já foram feitas nos lugares correspondentes da tradução brasileira.