Neste inverno, no teatro das Fantasias Parisienses, n
foi encenada uma encantadora opereta intitulada O Elixir de Cornélio
[L’élixir
du docteur Cornélius: opérette en un acte par Henri Meilhac … Por
Émile Durand, Henri Meilhac, Arthur Delavigne - Google Books.],
na qual a reencarnação é o próprio cerne da intriga.
Eis o relato que dela nos deu o Siècle, em seu número de 11 de fevereiro de 1868:
“Esse Cornélio é um alquimista que se ocupa particularmente da transmigração das almas. Tudo quanto lhe contam a respeito ele escuta com ouvidos ávidos, como se a coisa tivesse acontecido. Ora, ele tem uma filha que não esperou sua permissão para arranjar um pretendente. Não; mas ele recusa o seu consentimento. Como fazer, então, para vencer a sua resistência? Uma ideia: o apaixonado lhe narra que sua filha, antes de ser sua filha, há muito tempo, era um lansquenê, n dado a aventuras e frequentador de ruelas. Nessa mesma época ele, o apaixonado, era uma jovem encantadora, que foi enganada pelo aventureiro. Os papéis se inverteram e ele lhe pede para devolver a sua antiga honra. “Ah! vós me dizeis tanto!” responde, convencido, o velho doutor. E eis como um casamento a mais se realiza diante do público, que tantas vezes se encarrega de substituir o Sr. prefeito.
“A música é alegre como o assunto que a inspirou. Notou-se mais particularmente a serenata, as quadras de Cornélio, o dueto cômico e o final, escritos simplesmente e facilmente.”
Como se vê, a trama repousa aqui, não apenas no princípio da reencarnação, mas, ainda, na mudança de sexo.
Os assuntos dramáticos se esgotam e muitas vezes os autores ficam embaraçados para sair dos lugares-comuns. A ideia da reencarnação vai oferecer-lhes, em profusão, situações novas para todos os gêneros; aberto o caminho, é provável que todos os teatros logo tenham sua peça sobre a reencarnação.
No fim de maio o Teatro Francês encenou uma peça na qual a alma representa o papel principal; é o Galo de Mycille, pelos Srs. Trianon e Eugène Nyon. Eis o enredo:
Mycille é um jovem sapateiro remendão de Atenas; em frente à sua tenda, mora um jovem magistrado, o arconte Eucrates, numa encantadora mansão de mármore. O pobre sapateiro inveja em Eucrates as suas riquezas, sua mulher, a bela Cloé, sua prima, seus numerosos escravos. O opulento arconte, envelhecido precocemente, tolhido pela gota, inveja em Mycille sua boa figura, sua saúde, o amor desinteressado que lhe dedica uma linda escrava, Doris. Mycille tem um galo que lhe deu a jovem Doris e que, por seu canto matinal, desperta o arconte. Este ordena aos escravos que batam no sapateiro, caso este não faça o galo calar-se; por sua vez o sapateiro quer bater no galo; mas nesse momento o animal se metamorfoseia em homem: é o filósofo Pitágoras, cuja alma viera animar o corpo do galo, segundo a sua doutrina da transmigração. Momentaneamente tomou sua forma humana para esclarecer Mycille sobre a tolice da inveja que ele tem da posição de Eucrates. Não podendo convencê-lo, lhe diz: “Dar-te-ei o meio de te esclareceres por tua própria experiência. Apanha esta pena que fizeste cair de meu corpo de galo; enfia-a na fechadura da porta de Eucrates: logo a porta se abrirá; tua alma passará para o corpo do arconte e, reciprocamente, a alma do arconte passará para o teu corpo. Contudo, antes de fazer qualquer coisa, aconselho-te a refletir bem. Então Pitágoras desapareceu. Mycille reflete, mas a sede do ouro o arrasta e, instigado por diversos incidentes, decide-se e a metamorfose se opera. Eis, pois, o sapateiro transformado no rico arconte, mas doente e gotoso, e o arconte feito sapateiro. Essa transformação leva a uma porção de complicações cômicas, em consequência das quais cada um, descontente com a sua nova posição, retoma a que tinha antes.
Como se vê, essa peça é uma nova edição da história do sapateiro e do financista, já explorada sob tantas formas. O que a caracteriza é que, em vez de ser o sapateiro em pessoa, corpo e alma, que toma o lugar do financista, são as duas almas que mudam de corpo. A ideia é nova, original, e os autores a exploram espirituosamente. Mas não é absolutamente tomada da ideia espírita, como se havia dito; é tirada de um diálogo de Luciano: O sonho e o galo. Não falamos deste senão para realçar o erro dos que confundem o princípio da reencarnação com a transmigração das almas, ou metempsicose.
A peça de Cornélio, ao contrário, é inteiramente espírita, embora a pretensa reencarnação do jovem e da moça não passem de uma invenção de sua parte para chegar aos seus fins, enquanto esta dela se afasta por completo. Em primeiro lugar, o Espiritismo jamais admitiu a ideia da alma humana retrogradando na animalidade, porque seria a negação da lei do progresso; em segundo lugar, a alma só deixa o corpo com a morte. Quando, depois de algum tempo passado na erraticidade, recomeça uma nova existência, passa pelas fases ordinárias da vida: nascimento, infância, etc., e não por efeito de uma metamorfose ou substituição instantânea, que só se vê nos contos de fadas, que não são o Evangelho do Espiritismo, digam o que disserem os críticos, que dele pouco sabem.
Todavia, embora os dados sejam falsos na sua aplicação, não deixam de ser baseados no princípio da individualidade e da independência da alma; é a alma distinta do corpo e a possibilidade de reviver num outro envoltório posto em ação, ideia com a qual sempre é útil familiarizar a opinião. A impressão que daí fica não é perdida para o futuro e é mais salutar que a das peças onde se encenam a pouca vergonha das paixões.
[1]
[O teatro das Fantasias Parisienses foi construído em 1864 no
Boulevard des Italiens †
e em 1878 tornou-se o Teatro das Novidades.] †
[2] N. do T.: Soldado alemão que, nos séculos XV e XVI, servia na França como mercenário.